Mais ou menos, disse o contador.

Tem esse cara no banho.

Esse contadorzinho medíocre. Esse sujeito ensaboando as pernas queria ser escritor. Mas sabe como são os pais, controlam tudo o que podem. Então virou contador.

Escritor? Primeiro faça algo que dê dinheiro, disse a mãe dele.

Mas esse cara, tirando o sabão do ouvido. Na maioria das vezes, tem essas paranoias. Essas ideias loucas que passam pela sua cabeça. Enquanto raspa os pelos do peito com uma gilete enferrujada, ele imagina essa cena, a qual tem a ver com esse outro sujeito desconhecido.

Esse sujeito que não sabemos quem é, pula em sua casa. Pula enquanto ele passa shampoo. Esse sujeito sem identidade vê a esposa do contador fazendo a janta, ele a agarra por trás. Força a pobre mulher a acompanha-lo até a sala.

Enquanto isso no banho, ele passa condicionador. Mas não no couro cabeludo, apenas nas pontas.

E continua pensando nessa possibilidade.

A possibilidade de que, esse suposto sujeito, pulou em sua casa, e está abusando de sua esposa. Pensa que agora, enquanto esfrega a cabeça em movimento circulares, sua mulher está sendo forçada a ficar numa posição desagradável, forçada a um ato deplorável.

Esse contador, de olhos fechados para que não caia nada em seus olhos, tem suas variações desta paranoia.

Por um momento. Passando o sabonete nas pernas e entre o traseiro. Observando o vapor manchar o box. Ele cogita de que esse sujeito desconhecido, na verdade é seu vizinho. O maldito vizinho.

O mesmo vizinho que todos os dias, grita bom dia e buzina para ele com seu carro do ano. O mesmo vizinho que todas as manhãs mostra o sorriso branco de três mil reais.

Esse cara mesquinho que continua gastando água e energia. Imagina que o vizinho não pulou o muro. Entrou pelo portão da frente. Beijou a nuca de sua esposa. Segurou ela pela cintura. Esse maldito vizinho a colocou sentada sobre a mesa. Esse maldito boa vida deixou as pernas dela no alto, abertas como uma flor. Esse maldito vizinho está lá. Suando como um porco, enquanto o arroz queima. Enquanto esse contador de merda, escova os dentes no banho.

Os pais queriam um médico. Um advogado. Um encarregado de maquinas. Sua mãe disse:

– Você vai precisar ter dinheiro.

Ela disse:

– Para ter uma família. Uma boa casa. Um bom carro.

Ela continuou:

– Traga orgulho para sua família.

E esse contador, o cara que não passou no exame de suficiência contábil. O sujeito sem CRC. No fundo, na realidade esse sujeito nem é mesmo um contador. Nem escritor. Nem advogado. Quem dirá médico.

Esse sujeito sem filhos. Sua mulher quer filhos, mas ele não. Sua mulher quer uma menina e um menino. Valentina e Enzo. Sua mulher quer um cachorro também. Sua mulher que trocar o liquidificar. Sua mulher quer um contador de verdade.

E o falso contador, ainda enrolando no banho. Passando água debaixo do braço, agora com axilas lisas e brancas. Passa a pensar que possivelmente que invadiu sua casa pode não ter sido o vizinho ou um desconhecido. Mas, a mulher de seu vizinho. Ela não invadiu. Esperou ele ir ao banho. Esperou sua mulher abrir o portão. Esperou que ele ligasse o chuveiro, para só então passar a mão na coxa de sua esposa. Esperou ele começar a cantarolar, para então colocar a língua no ouvido de sua mulher.

Ele imagina isso. Imagina as duas jogas no sofá em posições contrarias. Imagina que esse segredo já está entre elas a muito tempo. Pensa que talvez seu vizinho saiba disso. Que isso seja um trato entre eles. Um dia livre para agarrar a esposa ao lado. Esse trato perverso, imaginado por uma cabeça molhada, começa a levantar partes indevidas. Então ele balança a cabeça para essas ideias saírem de lá.

O chuveiro já não está mais ligado, contador passa a toalha sobre os ombros molhados.

Talvez, ele pensa, todo esse banho não seja real.

Talvez, ele pensa, ele está lá no sofá.

Seus pais não ligam mais. Envergonhados, eles dizem estar. Decepcionados, eles enfatizam. Tudo que queríamos era um filho competente, eles suplicam.

E na cabeça dele agora, ele está no sofá, quem está no banho é sua mulher. A água passa entre os seios dela e escorrem por sua barriga. O sabonete desliza por seus ombros, caminha pela nuca.

E ele está no sofá, em sua paranoia, com esse sujeito que invadiu sua casa. O sujeito o força a ficar de quatro no sofá, o sujeito aponta essa arma para ele. Esse sujeito encapuzado diz para ele ficar quieto. O sujeito armado abaixa as calças do contado até a coxa. O encapuzado abre o zíper. Com o cano da arma no pescoço o contadorzinho medíocre e sem um futuro estabelecido agoniza de dor quando o sujeito vem para frente. Agoniza quando o sujeito vai para traz.

Nessa paranoia, sua mulher cantarola no banheiro, a panela de pressão no fogo apita, a mulher grita para ele desligar o fogo, mas nessa paranoia o sujeitinho que os pais detestam o carinha sem CRC, chora no sofá. Sem nenhum pio. Chora em silencio. Chora pela dor. Pela vida. Por não ser escrito, nem mesmo contador, meio contador talvez.

Nesse calor do vai e vem, o sujeito com a arma tira seu capuz que cobre seu rosto. E o contador, olhando pelo canto dos olhos, assustado e chorando cada vez mais. Descobre que foi deflorado, por seu vizinho.

Então ele acorda. Num salto, como um espasmo.

Ele salta e sacode todo o corpo.

Estava no quarto esse tempo todo.

No fundo daquele escuro. Perdido naquele breu uma voz grave, grossa e arranhada como um radialista diz:

– Está tudo bem querido.

Respirando fundo ele responde:

– Está sim, foi só aquele pesadelo de novo.

O sujeito passa a mão na cintura dele e diz com uma risadinha leve:

– Sonhou que era meio contador de novo?