Era uma vez uma Boneca

A menina ganhou uma linda boneca de pano: era branquinha, duas trancinhas nos delicados cabelos escuros, grandes olhos claros, a boquinha e o vestido eram vermelhos, e este último com detalhes de florzinhas. Foi amor à primeira vista; Maria amou o presente de aniversário! E, após sua festa depois daquele dia e com o passar das semanas, ela só tinha olhos para a tal boneca. Brincava de casinha, de mãe e filha e de super heroína. Vestia a boneca com uma pequena capa cor de rosa, resto de retalhos que sua mãe deixava cair na sala de costura. Ganhava impulso quando por milésimos de segundos seus pés não tocavam o chão e parecia voar. A boneca na qual deu o nome de Débora, lhe fazia companhia todos os dias, na escola e na hora do jantar. Maria comia e fazia de conta que dava comida para ela também. A mãe achava saudável, afinal era caçula e filha única do casal.

Débora dormia em cima de uma prateleira entre inúmeros brinquedos, mas na sua inanimada consciência sabia da sua importância. No entanto, Maria começou a ter repetidos sonhos em que a boneca ganha vida.

O sonho de toda filha caçula e sozinha era a de ter uma companhia, quem sabe uma irmãzinha. Maria só tinha a Débora.

- Eu tive um sonho com a Débora de novo, mamãe.

- E como foi, minha filha?

- Ela ia comigo para a escola e brincávamos muito como amigas!

- Isso é ótimo!

No outro dia, Maria confessou à mãe.

- Hoje eu brinquei só.

- Por que, filha?

- Porque minhas amigas não quiseram brincar comigo e a Débora.

Naquela noite, em sonho, Débora apareceu novamente, em sua forma viva e humana.

- Você não devia brincar com a Raquel; ela fala mal de você. Vai ter que resolver isso com ela!

- E o que eu faço?

Débora inclinou-se e cochichou em seu ouvido.

A mãe de Maria foi chamada na coordenação. Isso nunca havia acontecido antes!

- O que houve com minha filha?

- Felizmente nada mais... mas sua filha puxou o cabelo da amiga e ficou lhe mordendo!

A mãe de Maria ficou espantada. Era a primeira vez que a filha apresentava um comportamento tão violento.

Deixando a sala da diretoria, a mãe comentou:

- O que você fez, Maria?

- Ela estava falando mal de mim!

- Mas não se resolve assim, tudo se resolve com uma conversa e não agindo feito um animal! - disse visivelmente irritada.

- Não fique triste pelo que a sua mãe disse; ela não é da nossa idade e não pode entender nosso mundo. Que tal brincarmos um pouco?

Maria limpou as lágrimas e ficou empolgada com o convite de Débora.

Era tarde da noite quando o pai acordou para beber água e notou a luz do quarto da filha acesa. Aproximou-se e viu a menina sentada, de costas, brincando com a boneca.

- Você devia estar dormindo meu amor.

Ela não respondeu.

- Está chateada porque sua mãe brigou com você? Bom, eu não estou brigando com você, estou apenas pedindo que vá dormir agora. - e saiu.

Ele não sabia que Maria, embora brincasse com a boneca, estava de olhos fechados dormindo profundamente.

Na hora do recreio, uma das amigas de Maria pegou a boneca. A menina entrou em desespero quando viu que Débora não estava no local habitual.

- Desde que você ganhou esta boneca, não brinca mais com a gente. Até me machucou... Por que você está tão estranha? - disse Raquel.

- Não estou estranha!

- Está sim!

- Me da minha boneca!

- Não dou!

- Me dá!

- Ou nós ou essa boneca...

- Não!

Raquel jogou a boneca no meio da rua. Se a boneca fosse de porcelana, teria quebrado em vários pedaços. Maria correu, um carro buzinou e passou por cima da boneca. Ela recolheu a boneca, que sendo de pano continuou do mesmo jeito. Em lágrimas, se isolaram embaixo de uma árvore. Limpou a boneca mas quando virou o rosto de Débora, esta tinha um semblante triste: os grandes olhos brilhavam como se quisesse chorar e a boquinha em formato de C para baixo.

- Ela é estúpida! Não vou deixar mais nada acontecer com você. - acariciou o brinquedo.

A noite quando foi dormir, colocou a boneca ao seu lado, imaginando na sua inocência que ela se sentiria melhor no dia seguinte.

- Eu não suporto mais aquela Raquel! Olha o que ela fez comigo!

Débora mostrou vários cortes por todo corpo devido a queda no meio da rua. A boneca que tinha ganhado vida estava revoltada.

- Eu tenho sentimentos, sabia?

- Desculpa amiga!

- Imagina se eu fosse de porcelana...

De repente, Débora não era mais de pano e apareceu com a metade da cabeça de porcelana quebrada, um olho sobrando, sangrando muito andando na direção de Maria.

- Está vendo Maria!

- Para!

Ela mostrou os braços mutilados.

- VEM CÁ!

- Não quero ver!

- Deixa eu te mostrar o que acontece com quem mexe comigo!

- Não! Para! - gritava Maria - ME DEIXA EM PAZ!

Os pais de Maria acordaram com os gritos vindo do quarto.

No dia seguinte, a boneca amanheceu com o rostinho alegre de antes. E as duas brincaram normalmente.

Numa conversa entre o pai e a mãe de Maria, os dois resolveram levar a menina para uma escuta inicial com a psicóloga. O resultado não revelou nada fora do normal.

Naquela mesma noite, a mãe de Maria flagrou a menina andando pelo corredor escuro, não necessariamente sozinha mas na companhia da boneca.

- O que está fazendo aí, minha filha? Teve um pesadelo? Venha com a mamãe.

Ela pegou-a nos braços e deixou a boneca cair no chão.

- Oi, eu sou a Débora, a nova irmã de Maria.- disse a boneca.

- Quem? Você??

No final do corredor, a boneca apareceu na sua forma humana.

- Não gosto que nos separe! - ela se aproximava - ME DEIXA IRRITADA!

- Mas eu não… - a mãe de Maria tremia de medo.

Numa velocidade que não se pode perceber aquela coisa ficou muito perto do seu rosto.

Em choque, a mãe de Maria olhou para baixo e viu Débora costurando seu abdômen com agulha e linha da sala de costura, deixando uma grande poça de sangue no chão.

- Não brigue comigo mamãe! - ela encostou o dedo sujo e fino em seus lábios.

- NÃO! ME DEIXE EM PAZ! NÃO!

O pai de Maria acordou a esposa, que em prantos, soluçava.

- O que houve? O que deu em você?

- Meu Deus! Aquela boneca! Ela é horrível!

- Do que você está falando? - o marido não conseguia entender.

- A Débora!

- Olha o que você fez... acordou a Maria!

- Por que está gritando, mamãe?

- O que deu em você?! - o marido fez cara de reprovação.

- Nada minha filha! Foi só um pesadelo...- ela tirou o lençol para constatar que nada tinha acontecido à sua barriga: passou a mão sem marcas e sem sangue.

Pela manhã, o marido teve a iniciativa de fazer o café da manhã e aprontar a filha para ir à escola. A esposa levantou ainda atordoada da noite terrível, e ao passar pelo corredor sentiu um arrepio mas a boneca não estava mais lá. Olhou para os lados, procurou no quarto de Maria e nenhum sinal. Ao chegar na cozinha, viu a filha com um sorriso no rosto agarrada com a boneca.

Ela teve um mal pressentimento.

Levou a menina para a escola mas com uma louca vontade de tirar-lhe a boneca. Como fazer tal proeza se a filha nunca a abandonava? Resolveu acompanhar a rotina escolar. A diretora aproximou-se:

- Bom dia; a senhora está bem?

- Sim, estou sim... - Ela colocou o cabelo atrás da orelha.

- Parece um pouco cansada, distante...

- Você acha?

- Bom, ainda bem que sua filha está melhor, mas a Raquel está muito doente; segundo sua mãe, com uma pneumonia.

- Nossa, que horrível!

- Desde o episódio que as duas brigaram por causa de uma boneca...

A última palavra soou como uma ameaça. De repente, a mãe de Maria levantou bruscamente e foi em direção a filha, tomou a boneca de suas mãos e correu ao redor da escola para despistar Maria.

Longe dos olhos da menina, jogou a boneca numa lata de lixo. Respirou fundo e voltou para o pátio no fim da hora do intervalo.

- Mamãe! O que você fez com a Débora?

- É uma brincadeira de esconde esconde - sorriu nervosa.

- Ache ela para mim!

- Não; a graça da brincadeira é que temos que esperar até amanhã.

- Não! Eu preciso dela!

- Amanhã voltaremos!

- MÃE!

Ela colocou a filha no colo e devolveu a sala de aula. Sabia porém que ela não pararia de chorar tão cedo, no entanto melhor era uma filha chorando agora do que o pior acontecesse. Viu o caminhão de lixo passar e levou a lata de lixo embora.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 19/09/2019
Reeditado em 21/01/2021
Código do texto: T6749096
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.