Melhor que fora.
Enquanto colocam o ponto invisível na minha orelha. Essa moça, uma
apresentadora de tevê, mundialmente famosa. Essa mulher de quase
dois
metros de altura sem salto alto.
Ela pergunta se está tudo bem.
Pergunta se quero mais maquiagem.
Essa mulher gritando, pedindo mais blush deve achar que eu não tinha
maquiagem no cativeiro.
Quando começamos a entrevista, ela sorri para uma plateia que não
existe. Do outro lado da tela você vai ouvir as palmas e risadas. Mas isso tudo
vem de um sujeito gorducho segurando um aparelho que ativa cada emoção
controladamente.
Esse mesmo gorducho colocou o ponto no meu ouvindo. Os dedos
dele estavam colando.
Deve ter sido horrível ficar dez anos presa, ele perguntou.
Imagino como deve ter sido.
Imagina nada. Ninguém sabe como é ficar lá. Estar debaixo de uma
casa, rabiscando a parede para saber que dia é hoje. Bebendo água de uma
pia e dormindo ao lado da privada. Passando horas e horas olhando para um
buraco na parede tentando absorver o sol e não perder o bronzeado.
A apresentado, agora em pé diz meu nome. Conta minha história.
Conta de um jeito melancólico. Fala sobre a dor de meus pais. Diz que é um
alívio
tudo ter acabado. Eu a vi escrevendo esse discurso. Eu a vi ensaiando,
eu dei umas dicas para ela:
– Passe a mão perto do olho como se tirasse uma lagrima.
Eu disse:
– Puxe um suspiro antes de dizer que tudo acabou.
Ela disse que eu devia ser atriz, ante
s de agradecer, eu respondi que
vou ser.
Quando mais nova, eu sonhava em ir para esses programas de
auditório. Sonhava em ver uma plateia de verdade rindo de algo engraçado
que provavelmente eu diria. Quando mais nova eu sonhava em ser rica,
esperava ter algum talento. Lembro que tocava piano, só não lembro de
como tocar.
Quando apresentadora gigante me chama para o palco, um jazz
começa a tocar. A falsa plateia bate palmas e assovia. Pulam de alegria. As
pessoinhas prezas nessas gravações devem estar pensando que vai entrar uma
branquela no palco. Uma necessitada de vitamina D. Uma moça lotada de
veias roxas pelos braços, pernas e pescoços.
Mas ao contrário disso, estou lá. Rosada. Maquiada. Usando um
Coppe e uma calça de cintura alta. Meu tênis é de uma marca que está me
patrocinando. Meus brincos são uma coleção que desenhei no cativeiro. Meu
cabelo é cuidado com produtos que não testam em animais. E o telefone que
aparece em sua tela é para uma ong que quer ajudar pessoas que passaram
pelas mesmas situações que eu.
Quando sento na poltrona de couro colante, a apresentadora ainda
sorrindo, pergunta como estou. Pergunta como estão meus pais. Ela quer
saber do momento agora. Se estou feliz.
Quando ensaiamos isso eu disse:
– Pergunte e olhe para a câmera.
Eu
disse:
– Crie afeto. Pergunte sobre meus pais.
Quando ensaiamos isso ela cheirava a caipirinha. Quando ensaiamos
isso ela chorou dizendo que seu casamento estava acabando. Ela disse que
sabia como eu me sinto, sabia o que era viver num cativeiro. Falava d
e seu
casamento. Dizia ser toxico. Ela chorava e depois sorria e então disse:
– O que mais devo perguntar?
No palco tinha essa brincadeira, uma gincana. Algo do tipo. Algo para
mostrar que eu não via televisão nesses dez anos.
Na tela apareceu o ator
mais loiro que já. Eu disse que não o conhecia.
Ela ria. Eles riam. Nó riamos.
No cativeiro. Eu via televisão. Eu lia livros. Eu comia arroz com bife.
Eu tomava sol.
Nesse programa de tevê que o cache é altíssimo.
– Lembro, num dia de chuva. –
Comecei a dizer.
– A chuva batia na
pequenina janela na parede esquerda. Uma chuva grossa e barulhenta. Eu
devia estar com apenas dois anos de cativeiro. –
As lagrimas escorriam pelas
minhas bochechas. –
Então eu tinha catorze anos. Presa naquele buraco.
Com catorze a
nos eu pensava nos garotos que queria ter beijado. Agora a
maioria está casada. Naquele buraco. No dia de chuva. Lembrei que era meu
aniversário.
Cai em lagrimas. Graças a Deus eu recusei o rímel.
Graças a Deus.
Um sujeito com fone de ouvido me entrega uma
caixa de lenços. A
apresentadora pede um sorrindo.
Ela pergunta:
– Você pensava muito no mundo de fora?
– Pensava. Muitos acham que eu vivi numa espécie de caverna de
Platão forçada. Olhando para uma parede sem lembrar de que o mundo real
existia. Muitos acham que eu não sai em nenhum momento da casa. Muitos
pensam coisas assim. Esperavam sair de lá uma garota magra e branca.
Os anéis que uso, são feitos de uma matéria reciclável.
Meu celular é de uma marca desconhecida que agora ganhará fama.
No seu televisor o número que aparece é do meu dentista.
A apresentadora, de um choro forçado passava para um sorriso
medonho.
Ela disse:
– Soubemos que ele raspava seu cabelo em todos os seus aniversario.
Ela disse:
– Soubemos que ele te chamava de filha.
Ela pergunta:
– Como foi isso?
As pessoas esperavam uma garota assustada. Depois de dez anos, elas
dizem, era pra eu ter alguma sequela de insanidade. Um trauma elas querem
dizer.
Quando minha mãe me abraçou disse algo sobre meu cheiro. Acredito
que naquele dia era um pouco de uísque com vinho. As pessoas fazem essas
perguntas, sobre abuso; sobre violência; sobre assédio;
Querem que eu seja um ícone de força e empoderamento.
Mas esquecem de ligar para esse número na sua tela, ligue agora e
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em produtos paras os pés.
Vai ficar fora dessa?
– Ele tinha essa mania. Tinha essa vontade de ser pai. Acredito que era
isso que ele queria me chamando de filha.
Uma lagrima escorre pela minha bochecha. A reporte passa o dedo
nos olhos secos dela. Olha p
para a câmera e diz:
– Isso é emocionante demais produção! Vamos para um intervalo e
voltamos logo.
A Falsa plateia bate palma junto com a música que toca para ir aos
intervalos. As pessoas passam por mim e apertam minha mão. Sorrisos e
tapinhas nas costas.
A apresentadora gigante caminha em minha direção com um sorriso
de milhões de reais.
Ela está feliz. Mas por que não estaria?
Quando o cativeiro começou foi horrível. O escuro. A prisão. O
silencio. Mas depois que você sai é como ter do fazer um desses retiros de
silencio. É como se o mundo só soubesse falar. Fazer barulho. Gritar.
Quando você vive sem precisar de dinheiro. Quando a comida é dada no
mesmo horário todo dia. Quando não há capitalismo. O mundo é um
grande maço de notas de cem. Sair de lá abriu meus olhos para isso.
Quando falei meu nome para a polícia. Os olhos do policial brilharam
a promoção que teria.
Quando a polícia correu para ligar, achei que era para os meus pais,
até ver o carro do canal local.
Quando você está preso e não sabe
quem é o ator mais bonito do ano.
Quando não sabe qual filme de herói estão fazendo. Quando não sabe que
serie estão dando a decima nona temporada. Quando não sabe dessas coisas,
percebe que o mundo não tem mais sentido sem essas coisas, do que com
elas.
A apresentadora diz:
– Você está indo muito bem.
Ela diz:
– Melhor do que esperávamos.
Eles esperavam que eu tivesse um ataque de pânico. Esperavam ver
minhas mãos tremendas. Esperavam que eu gritasse e corresse achando que
todo homem iria me colocar numa caixa com uma pequena janela.
Ela diz:
– Você foi forte e eu te invejo.
Essa vai ser a legenda da foto eu irá postar.
Ela diz:
– Se um dia eu tiver uma filha, espero que ela seja uma mulher incrível
como você.
Ninguém espera que a filha seja como eu. Ninguém espera ver a filha
posando para revistas. Ninguém espera que a filha escreva um livro sobre um
sequestro. Ninguém espera isso da filha.
Querem que elas casem. Façam um pequeno bebezinho. Esperam que
ela faça o almoço e a janta. Não esperam que ela trabalhe.
Ela diz:
– Voltamos do intervalo, com nossa querida Susan Ernesto.
Ela diz:
– Agora nos conte.
Ela diz:
– Soubemos sobre relações.
Eu digo:
– Não posso falar sobre isso aqui