Minha Amiga Se Foi

Pegamos amizade na escola e fazíamos tudo juntas; fosse trabalho em classe, trabalho em casa, gincanas menos as aulas de educação física. Essa minha amiga até chegou a conhecer minha casa, meus pais e se simpatizou. Desde quando me mudei para aquela cidade sempre morei no centro, mais perto de tudo, ela no entanto morava mais distante, zona rural.

Minha amiga era de pele clara, poucas sardas nas bochechas, longos cabelos escuros em que usava um único penteado, uma trança lateral coberta por fixador. Um dia notei que a menina estava evasiva, evitava falar e quando mencionou as palavras "eu queria sair da cidade, ir para bem longe" eu fiquei preocupada. Quis saber o porquê mas novamente ela encolheu os ombros e ficou calada. Até que se distanciou e se ausentou da escola durante um tempo.

Certo dia, voltando da padaria caminhando na minha rua, a vi conversando com uns moleques de bicicleta mas ela não me viu. E até que um dia chegando em casa, ela me abordou, um pouco assustada, e perguntou se poderia se esconder em minha casa. Fiquei confusa. Perguntei "se esconder por que? se esconder de quem? Talvez eu tenha errado na resposta mas respondi que não. Ela ficou irada. Mas a levei até alguém que poderia ajudar, um amigo policial. Ele foi atencioso e questionador quanto ao que ela estava aprontando para pedir aquilo. O policial soube que ela era filha de um figurão da cidade, o fato de ela morar longe era porque sua casa era uma grande fazenda e a causa do seu comportamento rebelde: era filha única, uma menina muito mimada. Seu pai não lhe dava a devida atenção, perdeu a mãe, doente de cancer, e isso mexeu com toda sua estrutura. Se por um tempo ela se fingia de garota comportada na classe por outro lado perdia as estribeiras. O policial era casado e fez da minha amiga sua hospede. Ela ficou por lá, e aparentemente mais calma nos despedimos, passando a noite.

No dia seguinte, ela sumiu.

Eu estava na escola quando a professora me chamou em particular dizendo que um policial queria falar comigo. Implicou comigo querendo saber se eu tinha aprontado alguma coisa, e prontamente respondi que não, mas também não ousei citar o nome da minha amiga. Pensei que a ausência de mais uma aluna na sala de aula não fazia diferença para a professora, que estava mais ocupada falando da sua vida, aconselhando os mais novos com suas experiências azedas.

A professora se distanciou, mas o policial não perdeu tempo e já foi falando que minha amiga tinha desaparecido; podia ter saido pela porta ou fugido pela janela.

Procuramos por todo lugar. Varias viaturas saíram pela cidade em busca da menina branquinha de cabelo preto, de sorriso infantil e corpo de mulher. Não tínhamos nem uma foto, apenas perguntávamos aos moradores sobre essas características. E ainda pensei "será que o pai dela sabia do seu paradeiro?"

Tive que me juntar ao grupo de busca porque me senti na obrigação de achar minha amiga. Até que procuramos num lugar insólito, uma escola abandonada, frequentada por crianças da periferia, a encontramos desacordada com um pouco de droga ao lado. Ela era uma viciada. Após as investigações do policial, ele concluiu que a menina era mais uma dependente, de apenas catorze anos, com más amizades. Notamos que na omoplata direita, por causa da blusa cavada, tinha um hematoma.

O policial pediu que ela sumisse da cidade. No entanto eu pedi, apenas que ela voltasse para casa e não saisse da cola do seu pai.

Uma semana depois não a vimos mais.

Uma mistura de alivio e incerteza. E por mais calma que aparentasse eu sentia um embrulho no estômago, um aperto no peito, uma sensação estranha de que algo estava errado. Na escola, eu poderia jurar que a via passar pelo portão, lembrava varias vezes da sua risada quando estudávamos e escutávamos musicas.

Aquela duvida veio a tona quando novamente o policial me procurou. Ele havia atendido um chamado de emergencia em um bairro da periferia. Vizinhos chamaram a policia por causa de barulhos e gritos vindos da casa ao lado. Era uma casa de festa onde encontraram minha amiga morta com marcas de facada, hematomas na barriga, braços, costas e um machado enfiado no crânio, e ao lado do corpo um bilhete, uma ameaça. Ele quis me dar o papel para eu ler mas eu preferia que não.

Moral da história: você pode dar conselhos mas ninguém é obrigado a seguir.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 21/10/2019
Reeditado em 25/08/2020
Código do texto: T6775688
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