Um conto de Carnaval

O confete e a serpentina caiam dos céus, o vento espalhava o brilho que no futuro seria quase impossível de remover dos corpos, agora suados e quentes, naquela noite de carnaval. A música alta era praticamente incompreensível para alguns, já levemente (ou completamente) alcoolizados foliões, era possivelmente alguma marchinha consagrada ou música da estação.

Em um grupo pequeno de amigos, entre danças e gemidos abafados em ruelas, naquele centro festivo alguém já não mais se identificava.

O empurra-empurra cansa quando o efeito do álcool baixa e a ressaca, para alguns organismos infelizes, já dava seu ar da graça. Ela já estava exausta de “fazer” aquela social.

- Minha cabeça parece que vai explodir... – Ela comentou próxima do ouvido de sua amiga – Não aguento mais ficar aqui.

- Mas são só nove horas da noite.

- Sim, só que chegamos aqui meio dia. – Ela pronunciou com entonação

- Eu não acho que a galera quer ir embora agora. – A amiga deu de ombros – Estamos pensando em ir à Lapa ver como está.

- Deus me livre! – Ela cobriu os olhos – Eu vou na frente, não tem problema.

- Mas é perigoso, não é melhor engolir o sapo agora e irmos todos juntos depois?

- Depois quando? Amanhã? – Ela transpareceu seu pequeno desespero – Eu só quero ir pra casa.

- Tudo bem, mas avisa quando chegar, por favor. – Elas se despediram em um abraço apertado.

Para o resto de seus colegas apenas um aceno já bastava, alguns estavam bem tontos e nem notaram que a jovem partia, caminhou da maneira que pode, se espremendo entre a multidão que pulava e cantava entorpecida.

Não era como se não gostasse da festa, ela amava o carnaval, gostava de quase tudo, mas também respeitava seus limites, aquela diversão jovem já não a mantinha entretida como em outras épocas, o tempo passa e as coisas se ajeitam, não é preciso agradar a todos à custa do seu bem estar, não é preciso fingir.

A multidão se espalhava e diminuía quanto mais ela se afastava da Praça Tiradentes, as músicas se embaralhavam vindo de todas as direções com todo tipo de ritmo diferente, agora cansada nos ouvidos dela tudo parecia apenas um irritante barulho, outras pessoas pareciam também seguir para a Praça XV deixando a emoção do Carnaval do centro do Rio para trás. Ela não conhecia tão bem aquela região, mas sabia que se continuasse apenas seguindo em frente acabaria chegando onde desejava. Ela caminhava próxima a um grupo que seguia na mesma direção, eles falavam alto, gritavam e se empurravam animadamente.

Mas um som diferente chamou sua atenção. O som semelhante a um sino a fez olhar para trás.

Um pierrô! Um clássico carnavalesco! Trajando branco e preto, até o olhar melancólico fazia parte da fantasia. Naquele dia ela viu alguns, mas nenhum como aquele, nenhum que revivesse o personagem com tanta dedicação, nenhum palhaço envolto em uma atmosfera tão triste.

Parado no meio do caminho, olhando intensamente no fundo de seus olhos.

Subitamente seu corpo foi atingido por um arrepio, àquela presença se tornou repentinamente assustadora, ela se virou para seguir seu caminho, mas não sem antes respirar fundo para se acalmar.

Talvez por estar sozinha se sentisse assustada sem nenhum motivo aparente.

O grupo barulhento já não estava tão próximo, ela não tinha certeza de quanto tempo olhou para aquela figura, não tinha tanta gente se divertindo naquela parte da cidade. Agora tudo que era feio do carnaval lhe saltava os olhos.

O chão coberto de lixo, pessoas muito bêbadas desmaiadas pelas esquinas, barulho de gente brigando. Sentindo como se alguém estivesse a observando, ela se virou rapidamente.

Ninguém.

Nem sinal do palhaço.

- Tinha que ter aparecido aquele cara sinistro só pra me assustar... – Ela precisava falar para tentar se tranquilizar, mesmo que fosse sozinha.

Novamente ela ouviu um barulho, agora identificou como sendo um guizo, mas resolveu não olhar, apressou o passo instintivamente para alcançar as pessoas que estavam em sua frente, um vento frio soprou pela rua, agora já bem vazia, ela encolheu um pouco os ombros e cruzou os braços para se aquecer, o som dos passos em suas costas crescia em seus ouvidos, cada momento mais próximo e mais agudo.

Ela se virou rapidamente em um lampejo de coragem – atrás dela apenas um bêbado cambaleava, trocava os pés na tentativa de caminhar, seus olhos confusos e perdidos não conseguiam se desviar do chão. Aquela pessoa não era de confiança, mas também não parecia oferecer perigo, um instante de alivio.

Apenas um instante.

A jovem sentiu em seu ombro esquerdo um peso, virou seus olhos sem mover sua cabeça, na mão desconhecida uma luva branca encardida chamou sua atenção, na ponta de seus dedos manchas vermelhas que não pareciam ser de sangue, mas sim de batom.

O som do guizo rompeu o momento, ela se virou para o pierrô, sua roupa branca já não parecia tão bela, olhos tão escuros quanto aquela noite de carnaval a encaravam sem vacilar. Ela sentiu vontade de gritar, mas não houve tempo, ele tocou seu rosto gentilmente e uma lágrima escorreu pela face cheia de brilho da bela moça.

Das janelas dos prédios dúzias de pessoas jogaram confete e serpentina: o bloco se aproximava! Agora era possível discernir a “Máscara Negra” que era cantarolada pelos foliões. Sem muita atenção para aquele casal a rua foi tomada de gente.

O som das risadas, a música, a alegria na noite carioca.

O palhaço sorriu para a jovem que agora chorava copiosamente e pedia para ele deixa-la ir, ele passou o polegar pela boca da jovem, ela já não usava batom, a luva do palhaço se manteve com as manchas anteriores sem nenhuma alteração.

Ele retirou as mãos da moça e deu um passo para trás. Abaixou a cabeça cordialmente e num giro alegre se afastou, pulando no meio da multidão animada para comemorar o carnaval. A jovem se manteve parada, não movia um músculo, a voz de Dalva de Oliveira foi crescendo em seus ouvidos e ela, sem nenhuma reação, se deixou levar pelo bloco noite adentro.

Enquanto passava o bloco, cantando a dor do Arlequim, nas ruelas escuras os segredos do carnaval ficavam para trás esquecidos: soterrados em papel picado e purpurina, como a triste melindrosa caída com seu rosto completamente manchado pelo batom vermelho, seu colar de pérolas negras espalhadas pelo chão imundo já não brilhariam nunca mais.

Mas não há tempo para lágrimas, mais uma marcha vai reger o carnaval de rua, a noite continua, é cedo e ainda tem muito que fazer até a festa do próximo ano.

“Ô Jardineira porque estás tão triste?”

Rosa de Almeida
Enviado por Rosa de Almeida em 04/04/2020
Reeditado em 04/04/2020
Código do texto: T6906836
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