O Sumiço dos Docinhos

Ana mudou-se para aquela casa há poucos dias. Como suas aulas só iriam iniciar na semana seguinte, a festa de aniversário seria apenas entre família: seus pais Alfredo e Amara e ela. Enquanto eles arrumavam as coisas na sala e na cozinha, Ana aproveitava para explorar o enorme jardim que rodeava toda casa.

A grama verde com flores multicores atraíam borboletas e besouros. Correndo, ela imaginava uma companhia, quem sabe um cãozinho pudesse compartilhar com ela todo aquele espaço. Foi até o quintal e descobriu um porão que estava trancado.

À noite, Ana estava em seu quarto prestes a dormir quando escutou um ruído. Na segunda vez, o barulho manifestou-se como som de passos. E na terceira vez Ana abriu os olhos mas não viu ninguém. Pensou serem seus pais mas todas as luzes da casa estavam apagadas.

No dia seguinte, Ana foi acordada pela mãe para tomar o café da manhã. Na mesa haviam waffles fofinhos com geleia, café, chá e suco de frutas.

- Bom dia minha princesa - Alfredo abriu os braços - Veio dar um beijo de boa sorte no papai no primeiro dia de trabalho?

Ana mesmo coçando os olhos correspondeu ao abraço.

- Papai, me dá um cachorrinho de presente!

- Opa! Um cachorrinho? Vou lhe trazer algo melhor do que isso.

- O que então?

- Uma amiguinha - ele olhou para Amara.

O casal trocou olhares.

- Quem é essa amiguinha?

- Vou trazer ela para você e vão ser grandes amigas - Alfredo tomou o último gole de café, beijou a esposa e se despediu das duas.

Ana estava brincando na grama em frente de casa, próxima da mãe, que regava e podava algumas flores para enfeitar vasos.

De repente, Ana viu outra criança, que percebendo ser notada, correu para trás da casa. Ana correu atrás dela mas chegando no quintal não viu mais ninguém.

- Mãe, você viu ela?

- Ela quem, querida?

- A menina.

- Quem é a sua amiguinha?

- Ela, você viu, ela correu quando me viu.

- Deve ser uma vizinha; ela talvez queira brincar de pique-esconde. - sorriu Amara ainda entretida com as flores.

Ana gostou da ideia, procurou a outra criança em todos os lugares, escureceu e não conseguiu achá-la.

- Acho que eu demorei muito para encontrar, ela desistiu e foi embora. - Ana ficou amuada.

- Deve ser. Mas venha, amanhã vocês brincam novamente. - Amara segurou na mão da filha.

Quando Alfredo voltou do trabalho, Ana foi correndo contar a novidade. Ele ficou um pouco confuso, mas Amara explicou que tratava-se da vizinha. O pai pensava em dar um belo presente à filha: uma boneca. Não um cão porque tinha alergia a pelos de animais. Faltavam menos de três dias para o aniversário da filha e como não conhecia ninguém, Amara decidiu levá-la para fazer compras. Ao voltarem, ela organizou as despensas e os armários separando o material do bolo e dos docinhos.

Não demorou para escutar os gritos de Ana chamando pela vizinha.

- Mãe!

Amara correu.

- Tem como a senhora abrir aquela porta?

- Que porta?

Ana mostrou a porta do porão.

- Por que você quer abrir?

- Eu acho que a menina se escondeu aí dentro.

- Não tem ninguém aí minha filha! Desde que os últimos moradores saíram... E a propósito, sua nova amiga não tem um nome?

- Não sei, não perguntei para ela. Mas aí ela foi embora de novo...

- Da próxima vez que você ver, me avise.

Ana concordou.

Amara aproveitou o último tempo livre a noite, após a janta, para fazer o bolo e os doces. Dentro de um recipiente, bateu os ovos com açúcar e manteiga, em seguida colocou o leite e a farinha. Por último, acrescentou as claras em neve deixando a massa leve e homogênea. Para deixá-la ainda mais saborosa salpicou pedaços de biscoitos, assim o bolo teria uma textura macia e crocante ao mesmo tempo.

Enquanto o bolo assava no forno, Amara fez a mistura para os docinhos: era o de brigadeiro com recheio de cerejas e polvilhado com coco ralado, o preferido da filha. Com o resto das cerejas, faria uma calda avermelhada para finalizar a decoração do bolo.

Distraída, se assustou quando olhou para a janela e viu uma criança: uma menina da mesma altura da filha, cabelos lisos e escuros mas de aparência pálida. Provavelmente o cheiro do bolo atraiu a pequena. Amara sorriu e acenou para que a menina se aproximasse. A criança permaneceu quieta sem esboçar reação mas encarava com maldade a dona da casa. Isso causou arrepios em Amara.

Alfredo chegou devagar e assustou novamente a esposa.

- Calma; O que foi?

- Ai que susto!

- Para quem estava olhando?

Amara olhou para a janela e não viu mais a menina.

- É que... tinha uma menina ali me olhando... Acho que era a vizinha.

- Mas não tem movimento nenhum em frente de casa. - ele fez uma pausa - Diga-me amor, por que em vez de uma boneca não damos uma irmãzinha para Ana? ou um irmãozinho?

- E por acaso, ela vai ter paciência e esperar por nove meses? - Amara sorriu.

Alfredo ficou excitado.

- Vamos devagar Al; nossa filha pode aparecer a qualquer momento.

Mais tarde da noite, ela guardou o bolo e os doces na geladeira. Olhou ao redor e trancou as portas e janelas.

Alfredo colocou a filha para dormir e fechou a porta. Estava satisfeito com Ana, com tão pouca idade e estava habituada a dormir sozinha.

Surpreendeu novamente a esposa na cozinha. Deram um longo beijo.

- Al aqui não... - Amara tentava conter os avanços do marido.

- Mas estamos sozinhos - ele passou as mãos por debaixo da saia.

- Mas tenho impressão que tem alguém nos observando - pouco contida, ela apreciava as carícias dele.

O casal chegou até a cama e estavam tão entretidos que deixaram a porta do quarto aberta. Alfredo amava com loucura aquela mulher com quem dividia dez anos da sua vida. Fruto desta união veio Ana, no entanto desejava em secreto ter um menino. Ele admirava sua beleza, seu desejo insaciável e suas habilidades na culinária. Amara cuidava da pele todos os dias, era vaidosa e aguardava ansiosa por esses momentos, entregando-se unicamente ao marido, de corpo e alma.

A noite estava serena e abafada.

A porta da geladeira se abriu sozinha.

Ana acordou com os berros dos pais na cozinha.

Sábado.

- Como vou saber? Quando você descobrir me ligue, estou indo trabalhar. - Alfredo beijou a esposa.

- Vou perguntar assim que ela acordar.

Amara estava desnorteada com o sumiço dos docinhos e do bolo.

- Ana onde estão os docinhos e o bolo?

- Que docinhos?

- Não minta para mim mocinha! Onde você os escondeu?

- Eu não fiz nada mamãe!

- Então se não foi você foi seu pai, e se não foi seu pai, foi você. Ou até mesmo eu. Somos apenas nós três nesta casa! - vociferou a mulher.

- Deve ter sido a vizinha. - disse a criança inocentemente.

Amara lembrou daquela menina que a observava na noite passada.

- Mas que absurdo! Eu tranquei as portas e janelas e como alguém entrou aqui dentro? Atravessando a parede? Se você não me disser a verdade, Ana, não vai ter doces nem a festa! - Amara esbugalhou os olhos e convenceu a filha.

Ana se recordou do sonho na noite passada: a menina da vizinha apareceu dentro do seu quarto, ao lado da cama, com as mãos cheias de doces; o sorriso maligno deixava escorrer sangue do canto da boca.

- Foi a vizinha mas ela disse para não contar. Ela apareceu no meu quarto ontem e...

- Pare! - Ela não estava acreditando na história fantasiosa.

Amara deixou a cozinha e correu em direção a casa da vizinha. Um pouco agitada e nervosa, bateu na porta. Uma senhora de cabelos brancos, cheirando a rosas, beirando a casa dos sessenta anos abriu a porta.

- Bom dia, eu gostaria de ver a menina que mora aqui e...

- Eu moro sozinha aqui e não tenho netas.

- Como assim não tem criança morando aqui? A senhora não viu alguma menina passar por aqui, brincando de correr próximo ao jardim?

- Não.

- Ninguém com as mãos cheias de doces?

- Não!

- Está bem, eu agradeço.

- Posso dar um conselho: antes que vá perguntar aos demais vizinhos, aqui no condomínio não há meninas, somente meninos e um bebê de seis meses.

Amara não protestou pois notou que a velha morava ali há vários anos.

- Tenho outra coisa para dizer - a senhora chamou atenção novamente - Antes de vocês, mais quatro famílias moraram mas não ficaram por muito tempo na casa; eles disseram que é assombrada por uma menina que sempre aparece em datas comemorativas.

Alfredo chegou em casa mas não tinha ninguém. Olhou para os lados, nada. Procurou no quintal e o porão estava aberto. Ele desceu as escadas e viu sua esposa procurando por algo.

- O que está fazendo? Não devia estar preparando as coisas para o aniversário?

- Não tem doces aqui!

- Faça outros!

- Quero saber o que aconteceu!

- Por que isso é importante? Não vai criar confusão por isso agora né?

- Por que você não pergunta a sua filha? Ela disse que ela não roubou os doces, foi a vizinha, fui até lá pra saber mas lá não tem nenhuma menina da idade de Ana morando ali.

- Mas como alguém entraria em casa se estava tudo trancado... calma, por que está tão nervosa?

- Eu vi essa menina ontem a noite, Ana também... o que está acontecendo Al? E a nossa vizinha disse que esta casa tem um fantasma!

- Acalme-se; vamos esquecer tudo isso e se concentrar no aniversário da nossa filha, que tal?

- Ana disse - reclamou Amara exausta - que essa tal menina estava com ela no quarto ontem a noite.

Alfredo ficou preocupado com a sanidade da esposa.

- Tenho uma surpresa para ela: comprei uma bonequinha que ela vai poder chamar de amiga.

Eles bateram os parabéns para Ana, que estava radiante com um belo bolo e inúmeras velinhas. O cenário estava colorido, cheio de bexigas e flores multicores e docinhos espalhados pela mesa. O momento foi tão agradável que todos esqueceram o pequeno incidente.

- Tenho uma coisa para você Ana! - disse Alfredo segurando uma coisa atrás das costas.

Ver o sorriso da filha recompensou todo o esforço. Ele entregou uma caixa com uma embalagem bonita. A menina abriu e viu uma boneca de pano, tinha cabelos e olhos escuros perfeitamente desenhada, do tamanho de sua sandália, ela calçava 34.

- Qual nome você vai dar para sua boneca? - perguntou Amara.

- Vou dar o nome de Anabele.

Na hora das fotos, Ana não desgrudava da boneca. A primeira foto foi somente de Ana. Na segunda, Ana segurando Anabele. Na terceira foto, Amara colocou o temporizador e correu para a foto a três.

O relógio marcava quinze para meia-noite. Amara estava limpando a sala e guardando o que sobrara do bolo e dos doces enquanto Alfredo verificava as fotos no computador.

Uma certa mancha insistia em aparecer nas fotos, porém na última havia a silhueta de uma segunda criança.

- Amor, vem aqui, por favor!

Amara chegou e ele apontou para o defeito em todas as fotos, mas na ultima, ela tomou um susto e reconheceu como sendo o rosto daquela menina misteriosa que tinha visto na janela no dia anterior.

- Não é possivel!

- O que foi?

- É a menina!

- Do que você está falando?

- É aquela… - Amara começou a gaguejar.

- Vai começar com essa história de novo?! - reclamou Alfredo.

O casal começou a discutir tanto que o barulho pareceu interferir na energia elétrica, as luzes ameaçaram falhar, piscaram e voltaram ao normal.

- Eu vou dormir! Vê se relaxa um pouco - disse o marido.

Amara esperou Alfredo adormecer e pegou o computador para pesquisar sobre uma possível garotinha que morreu no mesmo endereço. Nenhum resultado. Não sabia o nome dela mas procurou pelas características: também sem sucesso. Porém, certa noticia de “caso de abuso sexual infantil” apareceu no resultado das pesquisas. A fonte estava datada de quatro anos atrás, quando uma criança foi encontrada morta com marcas de asfixia no pescoço, dentro de um porão, na rua Oxford Richard, de número 34. A autópsia revelou material orgânico

O casal estava dormindo no quarto com a porta aberta, de repente, um forte barulho de porta batendo e em seguida o ruído de algo caindo na cozinha. Eles correram para ver o que era: o primeiro bolo completamente destruído e todos os docinhos jogados no chão.

- O que está acontecendo?

As luzes começaram a piscar.

Alfredo se colocou na frente da esposa para protegê-la.

- Vou pegar minha filha e sair daqui!

- Fique aqui!

- Enlouqueceu?! Eu não vou ficar aqui!

A energia do estabilizador do computador começou a oscilar e emitir um ruído estranho.

- Ana!

A filha do casal estava em pé no meio do corredor mas tinha alguém ao seu lado. Alfredo não conseguia distinguir porque parecia uma sombra.

- Ana venha até aqui. - ordenou Alfredo.

- Não posso.

- Por que não pode?

- Porque ela não deixa.

- Quem não deixa?

- A menina.

- Como é o nome dela?

- Sara.

- Sara, nos deixe ir embora.

- NÃOOOO!!!

Após o grito, uma força descomunal jogou todos três contra a parede. Alfredo e Ana bateram forte com a cabeça e desmaiaram.

Na semana seguinte, Amara foi chamada na escola da filha.

Dentro da sala estavam a diretora, a pediatra e uma psicóloga sentadas numa mesa redonda.

- Venha, sente-se; aceita um café? - perguntou a diretora.

- Não, obrigada. - disse Amara.

Ana tem mostrado um comportamento estranho e estamos preocupadas. Entendo que os primeiros dias de uma criança na escola são difíceis, é questão de adaptação mas... - a psicóloga fez uma pausa e puxou um papel do bolso - veja isto.

Amara leu:

"Fui uma criança rejeitada, mas sempre quis ter um aniversário. Mas não posso comer do bolo nem dos docinhos porque não tenho fome, não tenho sede porque não tenho corpo."

Um arrepio subiu até o seu pescoço.

- Ela é filha única? Ela passou por algum processo de luto ou perda de algum ente querido? - perguntou a pediatra. - ou ela tem amigos imaginários?

- Você está bem? - perguntou a diretora ao perceber a ligeira mudança de semblante da mulher.

Amara contou tudo o que aconteceu naquela fatídica noite da semana passada. As profissionais conversaram entre si e concordaram em recomendar um especialista na saúde mental.

- Onde está seu marido?

- Ele está no hospital. Vocês me permitem pegar minha filha, temos que ir.

No corredor do hospital, Ana segurava a mão da mãe enquanto na outra mão segurava a boneca.

- Eu estou com medo, mamãe.

- Não precisa ter medo.

- O papai vai ficar bem?

Amara parou, se agachou na altura da filha, encarou aqueles olhos pequenos e infantis e o corte que sofreu na testa coberta por um curativo.

- Sim, ele vai... E assim que ele sair, nós vamos embora daqui.

Pensou por alguns segundos quando o médico disse que o Sr. Alfredo teve complicações devido a batida na cabeça e ficaria com sequelas.

Amara pediu que Ana se comportasse e ficasse com o pai por enquanto. Chamou uma enfermeira para que vigiasse a menina, pois voltaria em casa.

O lugar foi abandonado por muitos anos e se alguém esteve ali, por ali ficou. Poeira, rastros de ratos, teias de aranhas, traças, cupim e todo tipo de bicho habitava naquele porão sujo, fétido e escuro. Amara lembrou que Ana comentou que a menina havia se escondido dela e apontou para aquele local. Amara arrastou caixas e empurrou pequenos móveis velhos comidos por vermes. Suor descia das suas têmporas. Até que notou algo incomum na parede, uma pintura diferente da extremidade, um reboco mal feito. Ela pegou um martelo e começou a bater na parede, esta cedeu dando lugar a um buraco escuro e subiu um odor desagradável. A mulher sentiu náusea e tapou o nariz mas aproximou-se para ver o que tinha ali dentro: restos do que pareciam ossos, um crânio pequeno como de uma criança e ao lado, vestígios de uma roupa feminina manchada de vermelho. Amara levou a mão a boca, emocionada.

Novamente, teve a sensação de que estava sendo observada, então olhou para trás. Sara, a menina que viu na janela, daquela noite, estava em pé na sua frente, com um olhar triste. Ela vestia a mesma roupa manchada.

- Eu não moro aqui, mas fui trazida para cá; um homem disse que tinha um presente para mim e quando chegamos ele fez coisas terríveis, eu gritei mas ninguém ouviu então ele enfiou uma faca aqui - disse Sara com o pequeno dedinho indicador apontou para o lado esquerdo do peito.

- Eu lamento; mas prometo que vou encontrar quem fez isso com você.

Sara permaneceu quieta.

- Mesmo machucada, voltei para casa para comemorar meu aniversário, mas ninguém me via. Eu queria comer o bolo e os docinhos mas não podia.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 18/07/2020
Reeditado em 03/02/2021
Código do texto: T7009638
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