O AÇOUGUEIRO

1. Reféns do medo

Era uma cidade pequena, encravada no sul do país. Não possuía mais que dez mil habitantes, e fazia frio naquela manhã de julho. Os rostos eram cortados pelo vento gelado deixando suas faces vermelhas pelo frio, e olhos arregalados pelo que viam. Diz-se que notícia ruim voa, e talvez fosse esta a justificativa pela aglomeração formada. Tinha-se a impressão de que toda a cidade ali se encontrava. Não era para menos, já que nada de parecido houvera por aquelas bandas. Cada um que chegava se espantava com a cena de horror às vistas de mulheres, homens, e muitas crianças que se destinavam ao colégio que ficava ali perto. A polícia tentava repelir a multidão, mas uma ânsia tomava-lhes a alma e só se satisfaziam ao finalmente estarem frente a frente com a cena. Um enorme círculo de gente se formou ao redor da vítima. Foi um crime brutal. O sangue se juntava em poças, e pedaços de um corpo mutilado ficaram expostos na praça central da cidadezinha. O assassino tivera o cuidado de separar cada membro do corpo. O tronco partido ao meio deixava à mostra as costelas, e seus órgãos estavam depositados numa bacia branca, tingida de rubro elo sangue. Muitos ao se depararem com tudo aquilo não seguravam o enjôo e ali mesmo vomitavam o café da manhã, e até mesmo o jantar.

A polícia sem muito quadro pessoal, perdida em tal situação, girava como moscas tontas. Não demorou muito para que a informação chegar a imprensa e jornais da região e até mesmo da capital foram até o local da brutalidade. A pequena comunidade via sua rotina alterada, e enquanto esperavam por peritos vindo Porto Alegre para a remoção da vítima seguiam para suas casas, para o trabalho, para a escola... Todos, reféns de um medo indescritível, fruto da tragédia matinal que assolava aquele lugar pacato, atém então não muito acostumado com crimes deste tipo.

2. A vítima

Não fosse pelo rosto intacto, e tomado por um horror imenso caracterizado por seus olhos e pela boca aberta, e rija pela morte de seu corpo, a vítima precisaria de algum tempo para se reconhecimento, e talvez até um teste de DNA, mas não seria preciso. Era uma face conhecida de todos. Chico da Gaita. Não era gente importante, mas todos o conheciam. Perambulava bêbado pela cidade com sua gaita sempre à boca. Embora fosse praticamente um mendigo não importunava, e boa parte da comunidade vivia a lhe ajudar com roupas e alimentos. Nem mesmo á cachaça conseguiam lhe negar. Conquistava com seu sorriso desdentado e uma canção qualquer tocada em sua gaita. Era homem de certa idade, e apesar da falta de documentos para comprovar, se imaginava que tivesse uns quarenta e poucos anos. Seu rosto era judiado pela vida, e pelo trago. Era alto, e muito magro, mas quem fizera tal barbaridade lhe reduziu a não mais que um pequeno saco. Dentro dele os peritos recém chegados, enfiaram seus restos mortais. Todos se perguntavam qual monstro poderia ter feito tal barbaridade.

3. Sem suspeitos

No dia seguinte os jornais da região e da capital falavam do acontecido. Um grande enfoque foi dado no medo em que pairava sobre a comunidade local, e a busca pelo assassino. No entanto não havia sequer uma pista, nenhuma digital ou objeto que pudesse levar a algum suspeito. Também não se sabia por qual motivo teria acontecido á brutalidade, já que a vítima não possuía inimigos. Motivos familiares ou por dinheiro também não podia ser visto que um quase mendigo como Chico, de seu nada tinha. Era justamente a falta de motivações que assustava a polícia que temia ter um maníaco solto pela cidade. A polícia tentava buscar por alguma testemunha que tivesse visto alguma coisa estranha. A missão era praticamente impossível. Além do Chico viver perambulando por todo e qualquer lugar, a praça estava encravada bem no meio da cidade, onde praticamente não havia moradores. Tinha ali uma escola, alguns bares, que no inverno fecham cedo, e casas de comércio. Provavelmente nenhuma alma viva (a não ser o assassino, e a vítima) estavam ali na madrugada trágica. Borba, o delegado da Polícia Civil, apesar de homem experiente, jamais se deparara com algo tão brutal e temia que a história se repetisse. Queria agir com rapidez, na podia tolerar um maníaco a solta em sua cidade.

4. Uma nova vítima

A noite caiu sem nenhuma novidade. Nas casas famílias atônitas com o que havia ocorrido. Os vizinhos comentavam durante a roda de chimarrão, ou nos botecos espalhados pelas vilas. Para piorar, o clima foi mudando e o frio mais intenso, a temperatura beirava zero graus, e uma fina garoa cortava quem estivesse ao relento. As nuvens vez por outra exibiam reentrâncias que permitiam a ver o segundo dia de lua cheia daquele mês. Toda esta atmosfera pesada refletia nas pessoas. Naquela noite poucos se aventuraram a ficar na rua até mais tarde. Marieta não tinha muita alternativa, sua profissão exigia. Como de costume perto das dez e meia saiu de casa. Beijou seu filho de três anos e saiu. Era mulher insinuante, cabelos longos, olhos claros e dona de um belo corpo, que devido ao clima estava escondido sob grossos casacos, algo que lhe atrapalhava a oferta do “produto”. Mesmo assim fora uma noite produtiva, um, dois, três visitas a caminhões que estacionavam num posto de gasolina para pernoitar e o “dia” de trabalho estava ganho. Já eram quase duas da manhã quando retornava para sua casa.

As ruas estavam desertas e escuras. O silêncio só era cortado por latidos de cachorros, animais que invadiam as ruas daquela cidade, deviam existir dois para cada morador, no mínimo. Antes de sua casa ainda necessitava cruzar alguns terrenos baldios. Bem na esquina, escorado a um poste de luz, envolto pela escuridão, só seu vulto podia ser visto. Mesmo com medo ela seguiu, pois ali perto existia um bar, e muitos bêbados se escorava, por ali. Mesmos em medo preferiu trocar de lado da rua, ao fazê-lo o vulto chama por seu nome. Era um conhecido então, foi até ele, e ao chegar perto teve seu pescoço envolto por suas mãos grandes e fortes. Sentiu cada partícula de ar esvair-se pouco a pouco até o oxigênio não mais circular em seu corpo. Morreu fitando os olhos de seu assassino.

5. Cena macabra

Passavam um pouco das três da manhã quando a algazarra dos cachorros começou. Latidos, rosnados e dentes afiados se ameaçando. Os sons que rasgavam o silêncio da madrugada davam á impressão de um canil ter se instalado na vila. Devia ter no mínio uns cinqüenta cães no enrosco. Seu José, homem de sono leve foi o primeiro a se levantar e ver o que havia acontecido. Não fosse seu coração ainda forte teria tido uma síncope ao ver o que viu. A porta de sua casa um cão desfilando com a cabeça de uma mulher, agarrando-a firmemente pelos cabelos. Seus caninos rangiam fazendo força, para não correr riscos de perder sua caça. O estômago do velho é que não suportou expelindo todo o jantar, ali mesmo na porta. As luzes do lugar se acendiam e is pessoas iam para rua ver o que acontecia. A algazarra vinha dum terreno baldio meio da vila, onde se concentravam os cães, que só foram afastados quando três foguetes com doze tiros explodiram no ar. Foi á única maneira encontrada por Carlos, para afastar os animais. No centro do terreno restos de um corpo. Além da fúria do assassino, as carnes da pobre mulher foram completamente rasgadas pelos caninos famintos dos cães do lugar, habituados a passar fome, principalmente de carne.

6. Pânico na cidade

O telefone tocou ainda de madrugada na delegacia, e o policial de plantão logo chamou Borba que descansava em casa, este ao saber do fato socou com raiva o bidê ao seu lado da cama. Quando chegou ao local, uma multidão resguardava o local da fúria dos cães que queriam se divertir com os restos de Marieta, naquela altura, já reconhecida pelos moradores do lugar. A Brigada Militar isolou o local, e aguardariam novamente a vinda dos peritos. Quando amanheceu, ainda sob fina garoa, e um vento frio, a notícia se espalhara pela cidade. Nas mesas no café da manhã ninguém se alimentava, faltava o apetite ao saber das atrocidades que ocorriam. O medo invadia a todos. Era um lugar pequeno e ninguém se sentia seguro. Muitos maridos sequer foram trabalhar, temiam por seus lares. Os que saiam de casa deixavam esposas e filhos num cativeiro, com portas e janela trancadas. Também não demorou muito para o segundo crime extrapolar os limites do município, e logo caravanas de jornalistas tomavam a estrada rumo à Tapera dos Lobos. O pânico da cidade ganhava o mundo através da cobertura da imprensa, que buscava investigar o que acontecia naquele pequeno lugarejo.

7. Tapera dos Lobos

É necessário trazer-lhes um pouco da história do município para melhor compreensão da magnitude que os fatos impunham sobre o lugar. O nome veio de histórias que os mais antigos contavam. Dizia-se que nas terras de onde surgiu a cidade havia um grande arvoredo repleto de árvores frutíferas, e que o dono desta seria um lobisomem. A história foi passando de geração e geração, e o nome foi dado quando o lugar se emancipou. Era uma cidade pequena, sequer o asfalto chegara às suas ruas. Nela viviam cerca de dez mil habitantes, em parte colonos, e o restante eram trabalhadores das indústrias de madeira, de minério, e no comércio. Tinha encravado em seu coração duas rodovias, que a ligavam a todos os recantos do estado. As rodovias foram responsáveis pelo desenvolvimento fazendo a cidade crescer ao seu entorno. Apesar de tipicamente agrícola mantinha pieguices urbanas, pelo fato de estar próxima da capital. Pelo grande fluxo de gente cruzando pelo local o Delegado passava a desconfiar que um maníaco estivesse fazendo uma pausa em sua viagem, para aterrorizar sua gente.

8. A cena se repete

O terceiro dia raiou sem o chuvisqueiro habitual dos das anteriores, e se podia avistar entre as nuvens densos clarões de céu azul, sinal que o tempo mudaria. Depois da chuva, muito frio. A cidade ainda estava assusta com os dois crimes dos dias anteriores e amanhecia sonolenta, mas desejando não ter novas surpresas. Em vão, não demorou a chegasse á notícia. Vinha da Vila dos Silva, um pouco distante do centro. Crianças que iam para a escola do bairro acharam o terceiro corpo esquartejado. A cena horrorizou os jovens olhos de não mais que dez anos de vida. A polícia rumou ligeiramente ao local, mas ainda chegou depois dos repórteres que correram do centro para lá. Câmeras, microfones, e um mar de gente alterando a rotina, de uma cidade que vivia seu maior pesadelo.

A cabeça petrificada pelo horror da morte permitia a identificação da vítima, Seu João Augusto, que trabalhava no turno da noite na cooperativa. Largava do serviço pelas quatro da manhã, quando chegava o novo vigia. As cenas de pavor e desespero ganhavam agora o país, e ainda não se tinha pistas do “serial killer” que trazia pânico ao lugar. O delegado Borba já não tinha condições de manter á investigação sozinho. Sua delegacia não tinha estrutura suficiente para investigar crime de tal envergadura e de repercussão. Sem alternativas teve de solicitar o apoio, e na tarde, dois novos investigadores vindos do Departamento Estadual de Investigação Criminal chegavam à cidade para auxiliar nas investigações. Eram dois homens distintos, Aurélio, corpulento de rosto enferruscado beirando os quarenta anos. O outro era mais jovem, com menos trinta anos de idade, demonstrava ser inquieto. Era o que a situação exigia: inquietude.

9. A situação dos fatos

Aurélio e seu jovem companheiro, Marcos eram investigadores com fama de durões, e eram destinados a crimes de repercussão. Borba não estava gostando da presença dos dois, invadindo sua delegacia. Mas era a única alternativa. Os forasteiros, antes de fazer qualquer outra coisa, se detiveram num breve histórico dos fatos, iniciados três dias passados a sua chegada. Primeiro o infeliz do mendigo encontrado esquartejado na praça central da cidade, depois a prostituta, e no terceiro dia o aposentado João Augusto, todos mortos da mesma maneira, sem nenhuma pista ou testemunhas oculares. Nenhuma arma do crime foi encontrada, pouco se tinha sobre quem estivesse cometendo tais barbaridades. Também não havia ligações entre as vítimas, distintas entre si. Outra coisa que chamava a atenção era não saber de que maneira foram mortos. Ao que parecia nenhum deles foram vitimados pela faca que os esquartejaram, pois “as peças” estavam “limpas”. Trabalho profissional para os detetives. A faca tinha de ser afiada, e o assassino sabia o que fazer, pois os cortes eram precisos. Outro fator era a motivação, e para os investigadores estava claro de se tratar de alguém com desvios psicopatas, devido á brutalidade e a seqüência continua dos fatos.

O delegado Borba se apresentava exausto com o ritmo das discussões e do trabalho dos dois forasteiros, e suas pálpebras mal se mantinham abertas. A noite entrava numa cidade completamente silenciosa, o azul do céu ganhava tons escuros e o ar sem movimento prenunciava uma grande geada. Sem tempo para folga ou sossego os investigadores pediram que Borba lhes acompanhasse numa diligência noturna atrás de pessoas que tinham problemas mentais. Era uma tentativa de neles encontrar o assassino.

10. Geada Vermelha

Os investigadores seguiam a linha analisando a possibilidade de algum deficiente mental estar cometendo tais crimes. Antes que o relógio indicasse meia noite, a sala da delegacia estava tomada por uma dúzia de doidivanas. Os investigadores olhavam, e não acreditavam que dentre eles tivesse um assassino. Mas era uma hipótese, e todos os deficientes cadastrados estavam ali para averiguações. Os policiais teriam uma longa noite, só muito café para mantê-los acordados, ouvindo as mais variadas sandices. A noite parecia uma eternidade, e o seu fim parecia não chegar. A cidade estava mais silenciosa do que nunca, e de hora em hora faziam ronda atrás de qualquer coisa que lhes parecesse estranho. Não viram nada. O dia amanheceu gelado, e branco coberto por densa geada, trazendo ao lugar lembranças européias. O sono insistia em tentar vencer os investigadores do estado, que esperavam por notícias, ou melhor, que elas não surgissem. Estavam esperançosos, e já passava das sete.

No entanto seus desejos não foram suficientes para que elas (as más notícias) não chegassem à delegacia. Por volta das sete e meia um telefonema vindo do bairro Vargas, mais um corpo aparecera. Era o quarto. Ao chegarem ao local, os inspetores se depararam novamente com a trágica e horrenda cena. O corpo mutilado jogado no centro do campinho de futebol, que invés de verde estava branco coberto de geada. O sangue vermelho manchava o tapete branco, e os que assistiam não seguravam o vômito. Aurélio postava a mãos sobre a cabeça desajeitando seu cabelo despenteado. A situação era desesperadora, e a cidade se alardeava com o novo crime.

11. Uma cidade que se mexe

A situação passara dos limites, e a população estava em pânico coletivo. As autoridades pouco faziam perdidas ao caos que se instalava. Uma debandada geral se iniciava, e muitos iniciavam uma fuga. As ruas, estreitas, de terra, ou no máximo de paralelepípedos estavam cheias de carros, que buscavam acesso às rodovias principais. Muitos choques entre carros e brigas se sucediam. Na rodoviária o caso estava ainda mais complicado, uma multidão para poucas linhas, cada qual buscava um destino diferente, um refúgio.

Os poucos homens e mulheres dos quadros da Brigada Militar não eram suficientes para acalmar a população que estava desesperada. Naquela manhã o comércio fechou, e nem o principal supermercado consegui abrir as portas. Só o gerente apareceu para trabalhar, mais ninguém. As indústrias, que eram poucas, cessaram seus motores, e os únicos ruídos vinham dos carros em fuga, e do alarido, e bate-boca entre as pessoas.

Porém nem todos viam na fuga, uma alternativa, até mesmo porque o caos para sair da cidade era tamanho que as rodovias estavam fechadas. André era um destes, Homem de idade mediana, de bom senso, via uma única alternativa: A comunidade precisava se organizar, e auxiliar a polícia. Com o apoio de algumas autoridades (as que sobraram, e ainda não haviam fugido) conseguiu uma moto com carro de som, que saiu pelas ruas convocar uma grande reunião com todos os moradores que ainda ali estivessem para discutir alternativas de se protegerem.

12. A grande reunião

Ainda restavam umas três mil pessoas na cidade, e a grande maioria delas se fez presente ao palanque central. Nele estavam André, outros sete presidentes de Associação de bairros, policiais e um vereador, o único que sobrou, pois os demais haviam fugido com o prefeito. O pânico e o medo eram visíveis em seus rostos, que esperavam por alguma boa nova. Esta não veio, pois as investigações até o momento pouco haviam concluído.

André e os demais presidentes de Associações passaram aos presentes á idéia formada. Queriam criar grupos de vigília, em cada bairro, ou em cada comunidade, que fossem necessários. Seria uma alternativa para inibir o assassino, ou caso ele mesmo assim voltasse a atacar, uma forma de tentar descobrir sua identidade. Apesar de arriscada a idéia foi aceita, e grandes grupos se organizaram para passar a noite.

Antes que todos dispersassem, André fez uma importante consideração que deixou alerta a todos. “Lembrem-se amigos, o açougueiro á esta hora pode ter partido, ou também estar no meio de nós”. Ao terminar a frase, André viu todos se entreolharem com desconfiança, a partirem para suas casas.

13. Cidade Vigiada

A noite chegava, e com ela trazia o frio. Aurélio teve de recorrer a um velho casaco de couro, e enquanto emborcava uma xícara de café, pela janela da delegacia via surgir a enorme lua cheia, que despontava por traz da Vila Vargas. O céu límpido permitia uma visão ímpar, de uma lua enorme, e tomada por tons de amarelo, resquícios de um sol que se punha no oposto. As primeiras estrelas eram avistadas, quando os investigadores partiram no carro fazer a ronda. Levavam com eles André, o líder das patrulhas comunitárias.

Anoitecia diferente, e o medo vez com que a população se organizasse. A viatura com os investigadores foi de bairro em bairro, e nem o frio espantava toda aquela gente, que montava grupos de vigia a cada três horas. A lua foi rumando ao meio do céu, enquanto as pessoas procuravam por qualquer coisa estranha que surgisse. Nem a geada que caía sobre seus corpos os tirava da tarefa. Atentos, e de tempos em tempos com a passagem dos investigadores.

Quando a madrugada chegava ao seu ápice, e os investigadores, abusavam do café, e das anotações acerca de suas teorias o telefone tocou. A chamada vinha do Bairro Freitas, João Manual havia avistado algo estranho, e estava com seu grupo, de tocaia. Os policiais deixaram as xícaras ainda com seu conteúdo e partiram até lá.

14. O açougueiro ataca novamente

Chegando ao local onde o grupo estava. Numa esquina de ruas estreitas e sem calçamento, os policiais viram na reta que levava até o beco um furgão estacionado. Parecia ser de uma equipe de reportagem, que certamente ignorava as orientações da polícia para que não se afastassem do centro. Segundo João Manuel, que liderava o grupo de vigília, o furgão foi visto zanzando pelas ruelas do bairro, e na terceira troca de vigilantes, que se percebeu que este se encontrava parado. Sem arriscar o grupo chamou a polícia, que naquele momento também se fazia presente com uma viatura da Brigada Militar. Em torno de quinze homens espionavam o local, e sob as ordens de Aurélio, que sacava do coldre sua pistola quarenta e cinco, lentamente buscavam aproximação com o veículo.

Para surpresa de todos, um estrondo se fez ouvir. Era a batida de uma das portas, emitindo o ruído do choque dos metais do automóvel. Estavam a uns cinqüenta metros, e foi possível avistar um vulto sair em disparada. Era alto, e parecia ser robusto, e tentava se camuflar nas sombras das casas que freavam a luminosidade da lua. O individuo corria como se fosse um pouco corcunda, talvez por problemas de coluna, mas era muito ágil, e rápido entre os apertados corredores. Policiais e os outros que acompanhavam a vigília se puseram a correr. André e Aurélio, ainda fizeram uma breve parada conferir mais um corpo mutilado que se encontrava no furgão. O Sangue escorria para fora do veículo, atingindo a terra crua. Os quinze, mesmo tendo a corrida atrapalhada pelos casacos, necessários para espantar o frio não se deixariam desistir, mas a vantagem do assassino era grande.

15. Fuga no matagal

Os vigilantes e os policiais não desistiam da caçada, apesar de alguns mostrarem cansaço, evidenciado pelo respirar ofegante e suas passadas displicentes. O assassino parecia conhecer o lugar, dobrava numa esquina aqui, noutra ali, e em poucos minutos havia percorrido mais de cinco quarteirões, em grande parte, formados de casas simples. A vila apresentava seu fim, num beco que dava a uma pequena mata recheada de pitangueiras, aroeiras, e principalmente taquareiras. Estas desembocariam num arroio. Como cães ferozes e obstinados os perseguidores se embrenhavam no matagal.

Ao decorrer da perseguição novos moradores se juntavam à busca, e em menos de meia hora mais de cem pessoas cercava o matagal. Alguns puseram a disposição seus cães para farejar o assassino. A aurora foi raiando com tímidos riscos amarelados cortando o céu azul daquela manhã. Uma multidão cerva a mata de não mais que um hectare posta no topo da vila. No entanto nenhum sinal do “açougueiro” foi visto, e apesar dos intensos latidos que ecoavam nas redondezas, a face amargurada do inspetor Aurélio demonstrava sua frustração pela perda do bandido, o qual ele já dava como liberto. Para o inspetor o assassino estaria no meio daquela multidão, afinal, muita gente havia se juntado a perseguição, fato que poderia ter sido útil ao fugitivo. Sem esperanças pegou o carro e voltou para a delegacia, enquanto esperava os peritos terminarem a rotina diária de recolher corpos mutilados.

16. Enfim, um suspeito.

Embora tivesse sob suas costas mais uma morte, e um fugitivo, Aurélio não dera a noite como perdida. “É um avanço, para quem nada tinha”, dizia ele ao delegado Borba e os outros que se encontravam na delegacia. Ninguém entendeu a satisfação do inspetor. No entanto Aurélio sempre foi um homem perspicaz e atento. Por este motivo o Governador lhe enviara até Tapera dos lobos.

Aurélio pôs todos os policias numa sala. Civis e militares. O inspetor pretendia passar o dia em diligências. Também estavam ali o prefeito, e André que há pouco saíra do cerco ao matagal. Durante vinte minutos o inspetor apresentou sua idéia e suas teorias. O detetive mostrou o tamanho da importância da perseguição. Antes dela não se tinha nada do suspeito, ele simplesmente era um fantasma. No entanto com o flagra durante o assassinato da repórter, Aurélio podia ter um perfil físico, que embora nada de suas feições pudessem ter sido vistas, tinham elementos importantes. A começar, o sexo estava definido, sem dúvidas era homem. Tinha força física, além de mostrar incrível agilidade e rapidez. O próprio Aurélio definiu também a estatura, algo em torno de um metro e oitenta e cinco e um e noventa, e devei pesar quase cem quilos. Este era o assassino, e Aurélio poderia jurar por sua mãe que não encontrariam mais de vinte homens com aquele porte em toda a cidade. Esta era a missão. Cinco carros foram organizados, para ir de casa em casa, e recolher quem for que se enquadrasse neste perfil.

17. Os grandalhões se apresentam

Logo o boato das buscas dos inspetores se espalhou pelo lugar. Depois de cinco dias de terror era compreensível que a população não tivesse a lucidez que se esperasse. O perfil do assassino estava divulgado, e o próprio povo foi assumindo ás vezes de polícia, e qual fosse o grandalhão que pusesse os pés na rua, grupos de pessoas atacavam-nos. Não preciso dizer que isto veio a gerar grandes tumultos, já que nem todos concordavam com interpelações. Brigas se formavam por toda cidade, com distribuição de socos, pontapés, e ás vezes pauladas e outras coisas mais... Por outro lado tinham os que se apresentavam de bom grado, buscando colaborar com a investigação, e esperavam pela solução do problema.

Assim chegou a noitinha, carregada do gelo do inverno. Na delegacia dezenas de grandalhões se amontoavam pelos bancos e cadeiras. Como o espaço era pequeno e não estava preparado para atender tanta gente muitos ficavam de pé, esperando as decisões a serem tomadas pelos inspetores, que se reuniam às portas fechadas de uma sala em separado. Provavelmente buscavam alguma ação a ser tomada.

18. Nasce a Lua

Caía á noite, e o tumulto seguia firme dentro da delegacia. Da sala não se ouvia nada, apenas podia-se ver os gestos nervosos dos policiais. Na rua, as luzes ascendiam-se induzidas pela fotocélulas. A lua surgia imponente nos céus enegrecidos, cheia, enorme como nunca. Sua luz deslizava, casa por casa, rua por rua, tocando a cidade pouco a pouco.

Não demorou, para que as mãos do luar pusessem-se sobre a Delegacia, no centro da cidade. Seus raios luminosos penetravam lentamente o ambiente através dos espaços livres do concreto e do tijolo. Vagarosamente os raios invadiam as salas, tocando os homens que ali esperavam por sua liberação.

19. O açougueiro se revela.

Vinícius Pacheco. Ainda muito jovem, pouco mais de vinte anos. Tinha quase mais de um metro e noventa, corpulento, ombros largos, entre outros adjetivos para explicar seu tamanho, um dos motivos de estar ali. Garoto de família simples, mas conhecida na cidade. Trabalhava havia dois anos no principal supermercado do lugar. Sua profissão: açougueiro.

Estava calmo, pois entendia não ter nada a temer. Fazia graça da situação, e de todos ali, inclusive dele mesmo. Foi num destes momentos, em que contava mais uma piada que a lua o tocou. A feição alegre do jovem se desfez e seus olhos até então vivos e alegres se mortificaram como os olhos de um zumbi. A loucura recaiu sobre o rapaz, e uma angustia lhe encheu o peito. Sentia uma necessidade incontrolável. Tinha sede, e não era por água. Levantou-se calado e rumou para porta de saída, onde um guarda baixinho e gordo fazia a segurança. O homem tentou impedi-lo, mas um soco descomunal virou seu rosto, e torceu seu pescoço, ficou caído no chão. Quando os demais perceberam a fuga, dois ou três tentaram impedi-lo, mas foram jogados de um a dois metros de distância. O açougueiro parecia endiabrado.

O jovem assassino disparava pelas ruelas da cidadezinha. Seu rosto suava, seus pés forçavam a corrida. Um grande grupo de cidadãos indignados o perseguia na noite. Aos gritos se embrenhavam cada vez mais perto do açougueiro. Nunca ninguém chegou a uma conclusão se havia alguma coincidência em o apelido dado ao assassino vir a ser um próprio, da profissão, ou se sua profissão é que o fizera aquele monstro em fuga. Quando ele chegou à esquina das ruas da Camélia, e Machado de Assis ele foi pego pelos revoltosos que o seguiam. Estavam armados com paus, facas, machados...Os gritos dos oficiais para que houvesse ordem, e que não matassem o açougueiro não foram suficientes, e só se dissipou a montanha humana que estava por cima do homem quando deste pouca coisa de gente restara. A violência que o açougueiro aplicara sobre suas vítimas, também veio a vitimá-lo, e seu corpo ficou irreconhecível e aos pedaços depois de muitas centenas de golpes. Naquela noite muitos cidadãos se igualaram a ele, e inevitável o apelido de “Cidade dos açougueiros”.

Os inspetores, platéia passiva de tudo que acontecera, logo retornaram para a delegacia aguradam os procedimentos seguintes. – Vamos Marcos. Tem um boteco logo ali. Preciso dum whisky barato. Estes últimos dias foram estranhos. Não temos mais nada para fazer aqui. Disse Aurélio, ainda estupefato com tudo que vira em Tapera dos lobos.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 30/10/2007
Código do texto: T716469
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