O passatempo

- O passatempo

É uma palavra um pouco esquecida, passatempo. Com a introdução de tantos vocábulos ingleses em nossa língua, muitos de nós usamos hobby.

O delegado Afrânio Moreira era um homem bastante desorganizado. Seu braço direito, o inspetor Gonçalves, sempre comentava que seu chefe ga-nhara a mega sena ao conhecer uma mulher bonita, fina e apaixonada por ele com quem acabara por casar-se. Sim, porque Teresa, mesmo apaixo-nada pelo marido, era rigorosa com ele. Ela o fizera parar de fumar, por exemplo. Ele tinha se tornado elegante, emagrecera, porque ela supervi-sionava sua alimentação, suas roupas, enfim, remodelara seu homem.

- Então, Gonçalves, quais são as últimas notícias sobre nossos agrada- veis criminosos, especialmente os assassinos ?

- Nada de sensacional, chefe. A mesma violência que domina nossa ci-dade sem nenhum caso difícil para o senhor solucionar.

- Antes assim. Espero que o Pan não nos dê muito trabalho. De qual-quer forma, ele não é exatamente um problema nosso e sim da PM e dos demais órgãos que foram convocados para isso.

- Seu colega da delegacia do Grajaú telefonou, doutor. Parece que es-tão acontecendo uns casos esquisitos na área dele.

- É mesmo ? No Grajaú ? Casos de balas perdidas ?

- Parece que não chefe. Bem, ele vai ligar ainda hoje para o senhor.

- Tudo bem, vamos ver o que ele me diz. Ele não lhe adiantou nada?

- Só me disse que era alguma coisa relacionada com mendigos, chefe.

No outrora tranqüilo bairro do Grajaú, morava uma senhora aposentada,

que sempre trabalhara na prefeitura. Viúva, sem filhos, era uma ótima cozinheira. E doceira, além disso. Eram famosos seus quitutes, mesmo os mais simples. E seus bolos e sobremesas em geral, eram encomenda-dos por vizinhas quando queriam dar algum almoço, jantar ou mesmo algu-ma festa maior em casa. Com ela trabalhavam duas empregadas, uma fixa e outra diarista para os dias de encomendas mais importantes. Naqueles dias, por exemplo, dona Clara andava as voltas com o jantar de noivado da filha do coronel Juvêncio Salgueiro. O coronel era um homem exigente, mandava em sua casa como se fosse um quartel de cavalaria. Amava sua filha única e embora ela estivesse noiva de um simples civil, exigira de sua mulher que organizasse uma festa inesquecível. Que gastasse o que fosse necessário. Não queria passar vergonha diante da família e dos amigos do casal. Assim, dona Clara fora contratada.

O delegado Afrânio atendeu o telefone. Seu colega Dario Nogueira expli – cou-lhe a situação.

- É o quinto caso nos últimos seis meses, Afrânio. Receio que se trate de um serial killer. Um matador de estranhas preferencias. E chega-mos a essa conclusão só agora.

- Mas, a que você atribui essa curiosa forma dele selecionar suas vi-timas ? Que estranha compulsão seria essa ?

- Pois é. Ele só assassina mendigos. Não tem lucro algum com isso.

- Seria, por acaso um hobby ? Um passatempo macabro ? Acho que vou dar uma passadinha aí para conversarmos melhor.

- Venha sim, meu amigo. Estou precisando de sua inteligência e ajuda.

Na sala confortável do delegado Dario, sentavam-se, além dele, Afrânio, Gonçalves e o detetive Irineu Duarte , auxiliar mais prestigiado do delega-do do Grajaú.

- É realmente muito estranho, doutor Afrânio. Nosso assassino age de uma forma muito discreta e eficiente. Não deixa vestígios, não é, doutor Dario ?

- De fato, é um criminoso muito eficiente. E não sabemos há quanto tempo vem praticando esses assassinatos. Aceitam um cafezinho ou um refrigerante ?

- Um cafezinho está ótimo.Me diga, Dario, quando começou isso tudo, quero dizer, quando e como foi descoberto o primeiro homicídio ?

- Bem, foi há uns três meses. A vítima apresentava sinais clínicos que indicavam envenenamento. Curare, um veneno pouco usado por criminosos comuns. A autópsia revelou isso. Ora, um mendigo difícil-mente teria acesso a essa substancia. Achamos que tinha sido minis-trado por terceiros.

- Muito bem deduzido. E a partir daí?

- A partir daí ficamos alertas e o segundo caso aconteceu o mês pás-sado. Outro mendigo, um homem de cinquenta e nove anos, morava logo no início do morro. A mesma substancia tinha sido usada

- E você concluiu...

- Não era possivel, a meu ver, que fosse uma simples coincidência. Mandamos exumar alguns corpos, todos de mendigos, mortos recen-temente.Dois deles tinham sido vítimas, não constatadas pelos legis-tas, você sabe como o IML vive sobrecarregado de trabalho com essa onda atual de violência, da ingestão da mesma substancia. E agora, temos uma nova vítima, uma mulher, morta a semana passada.

- Sei, uma mendiga ?

- Exatamente.

- O que vocês acham que essas vítimas têm em comum ? Eram todos pedintes ? Nenhum realizava qualquer atividade pobremente remune-rada ? Algum biscate ?

- Todos pedintes, meu caro. A mulher tinha mais de setenta anos, não poderia sequer ser uma prostituta. E todos moravam nas redondezas, nas partes mais baixas do morro. Faziam ponto em locais diversos. Viviam das esmolas eventualmente recebidas. Se alimentavam dos restos das lixeiras e da comida que,eventualmente,lhes era dada por moradores caridosos ou pela igreja local.

- Entendo, meu amigo. Você abordou o assunto com clareza. Mas acho que não podemos nos esquecer de uma coisa .

- Que coisa seria essa ?

- O motivo ! Ninguém mata sem um motivo. Ódio, vingança, lucro...te-mos que descobrir o motivo para esses homicídios.

- Não tenho dúvida de que você tem razão. Mas como descobriremos isso ?

- Com muita persistência e uma boa dose de sorte, Dario. Mas, posso lhe sugerir que o criminoso não mora no morro. Há muitas maneiras bem mais fáceis e mesmo baratas de eliminar alguém no seio de uma favela. Para que usariam um tóxico de venda proibida e cara ?

- Devemos, então, procurar, investigar, a classe media que mora no bairro ?

- Com certeza. É aí, que você descobrirá quem é o homicida. De mo-

mento é tudo que lhe posso dizer, além de desejar-lhe boa sorte. E vou, com sua aquiescência e apoio, realizar algumas investigações .

- Meu amigo...Só posso lhe agradecer, de coração. Estou, como se dizia no tempo de nossos avós, no mato sem cachorro...

- Por favor, investigue discretamente todas as farmácias do bairro. Vê-já quais delas poderiam fornecer essa substancia e em que medica-mentos ao criminoso.Mas acredito que dificilmente a origem do vene-no seja essa. Outra coisa, sou católico por formação mas não gosto de padres. Alguns podem ser fanáticos. Procure saber quem prepara as refeições que a igreja fornece aos mendigos. Deve haver algumas igrejas protestantes no bairro. Verifique nelas também. Nunca se sabe, não é mesmo ? Colha esses dados para mim e voltaremos a nos encontrar.

- E os bares e restaurantes ?

- Não me preocuparia tanto com eles. Geralmente seus restos de co-mida se destinam a cães e gatos. Seria uma péssima propaganda para eles, aparecerem animais ou mesmo gente envenenados por sua comida.

O tempo passava. O casamento da filha do coronel foi uma festa memo-ravel. Os noivos viajaram em seguida à Europa em lua de mel. O buffet, magnífico, deixou saudades. O coronel estava inchado de incontido orgulho.Alguns dias depois , mais um mendigo apareceu morto.Veneno utilizado pelo assassino ? Curare.

As investigações sugeridas pelo delegado Afrânio tinham resultado in-frutíferas. Aparentemente, o curare só era usado por veterinários para

sacrificar animais em estado terminal. Havia meia dúzia de clínicas vê-terinárias no bairro. Nenhuma delas mostrou qualquer irregularidade em

relação ao curare.Sua utilização era rigorosamente controlada. Os esto-ques do medicamento letal não tinham sido tocados, a não ser pelos ti – tulares das clínicas.

- Estamos num beco sem saída, Afrânio.

- Não desanime, amigo. A investigação criminal requer muita pacien-cia. Estamos apenas começando. Mas vou lhe repetir uma coisa. A chave disso tudo está no motivo. Enquanto não soubermos por que o criminoso só mata mendigos, não solucionaremos o caso. E lembre-se, assassinos são humanos, falíveis portanto. Temos que esperar por algum erro . Existe um ponto que me intriga.

- Que ponto ?

- As mortes, sem exceção, ocorrem no local onde as vítimas residem.

- È verdade. Mas, a que conclusão isso pode nos levar ?

- Não sei ainda. Mas aposto que esse fato tem a ver com os crimes.

- E qual seria nosso próximo passo ?

- Continuar de olhos bem abertos e ouvidos também. Algum fato novo, algum comentário, algum boato terá que nos ajudar.

- O que me preocupa é o tempo. Quando, como, teremos uma pista ?

- Quando o criminoso errar, meu amigo. E isso, infelizmente, é impre-visivel.

- Que profissão difícil é a nossa...

- Também acho. Mas tenha confiança numa coisa.Não existem crimes perfeitos. O assassino acabará por falhar e quando isso acontecer,

você o pegará.

Duas pessoas conversavam ao telefone:

- Viu as últimas declarações da policia e dos jornais sobre os crimes ?

- Sim. Parece que vão apertar ainda mais o cerco.

- Estive pensando. Talvez seja melhor empregar um outro veneno de a-gora em diante.

- Também acho.

- Poderíamos usar arsênico. É mais comum e além disso, é usado em vários pesticidas agrícolas.

- Acho uma ótima idéia.

- Muito bem ! Vou providenciar.

Infelizmente os dois telefones de onde as pessoas falaram não estavam

grampeados. Eram ambos moradores insuspeitos do bairro. E, como diria o delegado Afrânio Moreira, nenhuma das duas pessoas tinha motivos ou razões aparentes para envenenar mendigos.

Uma noite em que Afrânio teve que chegar bem mais tarde em sua casa, Teresa, sua mulher, o recebeu com uma animação maior.

- Querido,tenho uma tese para tentar resolver esses crimes no Grajaú!

- É mesmo ? Pois eu já ando desanimado.

- Venha ! Sente-se aqui e vamos conversar a respeito.

Afrânio conhecia bem a inteligência e o bom senso de sua mulher. Já tive-ra oportunidade de comprovar isso em muitas ocasiões. Sentou-se pois ao lado dela e ouviu atentamente.

- Fale, querida.

- Pelo que você me disse a respeito desses assassinatos, parece que está faltando um motivo para os crimes...

- É verdade. Não sabemos por que eles estão sendo cometidos.

- E se estiverem sendo cometidos por caridade ?

- Caridade ? Que motivo insólito, Teresa. Me explique sua idéia.

- É que estive assistindo o dvd de um filme antigo, uma comédia maca-bra com Cary Grant, dos anos trinta. Sabe qual é o título ?

- Me diga.

- Arsênico e alfazema...

- Arsênico ? Isso me interessa. Como é a estória ?

- Por que você não assiste o filme ? Acho que vai gostar muito. Vou preparar um sanduíche gostoso e um suco para você enquanto isso.

O delegado Dario Nogueira ouvia com atenção crescente seu colega Afrânio. Estavam outra vez reunidos, com seus principais assistentes, na sala confortável da delegacia do Grajaú.

- É uma teoria fantástica, Afrânio. Eu quase a chamaria de surreal. Mas, nessa quase cegueira em que estamos sobre os crimes, acho que vou adota-la.

- Por que não, meu amigo ? As mulheres são excelentes detetives. A não ser quando têm sua visão obliterada pela paixão.

- Muito bem ! E qual vai ser nossa linha de ação ?

- Eu tenho uma idéia fustigando minha inteligência medíocre...Acho que devemos procurar uma assassina, uma mulher. Uma mulher pie-dosa, que acredita estar fazendo um bem a suas vítimas. E uma mulher que cozinha bem, talvez até profissionalmente.

- É ela, doutor Dario !

- Ela quem, Duarte ?

- A dona Clara !

- Vamos com calma, Duarte ! Não podemos cometer enganos. Essa senhora é a grande quituteira do bairro. Goza de um prestígio indis-cutivel no Grajaú. Quem a acusaria desses crimes ?

- Por que acha que é ela, Duarte ?

- Porque é uma pessoa caridosa, doutor Afrânio. É sabido que ela ajuda pessoas pobres com as sobras de sua comida. Sempre sobra alguma coisa no preparo desses jantares e almoços que ela prepara profissionalmente.

- Sim, mas e o curare ? Como ela teria acesso ao curare ?

- Realmente, isso eu não tenho como explicar.

- Em todo caso, Dario, seu auxiliar está nos oferecendo uma hipótese viável. Eu tenho uma outra teoria, não vá acha-la fantástica demais.

- E qual é, Afrânio ?

- Acho que estamos procurando um assassino sozinho, quando na rea-lidade esses trabalhos, por assim dizer, resultam de uma cumplicida-de entre duas pessoas.

- Se uma for a dona Clara, quem seria a outra ?

- Tenho minhas suspeitas, Gonçalves. Mas não vou revela-las por en-quanto.

- Não vai nos dizer, Afrânio ?

- Não, Dario. No momento temos é que pensar muito bem em como abordaremos esse assunto com nossa famosa quituteira. Se dermos um passo em falso, estaremos jogando tudo por terra.

- Ou, por assim dizer, pela lixeira...

Não foi tão dificil como se esperava, abordar o delicado assunto com dona Clara. Sob o pretexto de pedir suas informações com respeito a uma ex – auxiliar sua, que seria, ou não, acusada de furto, o delegado Dario convi-dou-a a comparecer à delegacia, alegando estar sobrecarregado de traba-lho e não poder passar pessoalmente por sua casa. Cidadã ordeira e cum-pridora de seus deveres comunitários, dona Clara atendeu ao pedido. Claro que o delegado Afrânio estava presente na ocasião. Com toda a edu-cação e cortesia, os dois policiais foram aos poucos desviando o foco das perguntas e entrando com cuidado no assunto envenenamentos. Afrânio, hábil interrogador, começou por pedir a dona Clara sua opinião sobre sabo-res de determinados pratos e quais deles ocultariam melhor a presença de um veneno. Confundida, baratinada, dona Clara perdeu sua tranqüilidade habitual, entrou em pequenas contradições e terminou por confessar seus crimes. Só não foi possível obrigarem-na a denunciar seu ou sua cúmplice.

O ainda pacato bairro do Grajaú ficou muito chocado com o esclarecimen-to dos assassinatos. Com seus ótimos antecedentes, dona Clara aguarda-va, em liberdade, seu julgamento. O coronel Juvêncio, sim, por que era ele

quem conseguia o curare sem ser percebido, no estoque do quartel de ca-valaria em que servia, mudou de passatempo, não podendo continuar a ser cúmplice na matança de mendigos. Dizem que voltou a dedicar-se à práti-ca do jogo de xadrez em suas longas horas de folga. E o doutor Afrânio Mo-reira, sempre apaixonado por sua mulher, descobriu numa importadora e comprou-lhe, um belo frasco de perfume francês recém lançado. Nome da

nova e deliciosa essência ? Curare !

George Luiz - O passatempo

É uma palavra um pouco esquecida, passatempo. Com a introdução de tantos vocábulos ingleses em nossa língua, muitos de nós usamos hobby.

O delegado Afrânio Moreira era um homem bastante desorganizado. Seu braço direito, o inspetor Gonçalves, sempre comentava que seu chefe ga-nhara a mega sena ao conhecer uma mulher bonita, fina e apaixonada por ele com quem acabara por casar-se. Sim, porque Teresa, mesmo apaixo-nada pelo marido, era rigorosa com ele. Ela o fizera parar de fumar, por exemplo. Ele tinha se tornado elegante, emagrecera, porque ela supervi-sionava sua alimentação, suas roupas, enfim, remodelara seu homem.

- Então, Gonçalves, quais são as últimas notícias sobre nossos agrada- veis criminosos, especialmente os assassinos ?

- Nada de sensacional, chefe. A mesma violência que domina nossa ci-dade sem nenhum caso difícil para o senhor solucionar.

- Antes assim. Espero que o Pan não nos dê muito trabalho. De qual-quer forma, ele não é exatamente um problema nosso e sim da PM e dos demais órgãos que foram convocados para isso.

- Seu colega da delegacia do Grajaú telefonou, doutor. Parece que es-tão acontecendo uns casos esquisitos na área dele.

- É mesmo ? No Grajaú ? Casos de balas perdidas ?

- Parece que não chefe. Bem, ele vai ligar ainda hoje para o senhor.

- Tudo bem, vamos ver o que ele me diz. Ele não lhe adiantou nada?

- Só me disse que era alguma coisa relacionada com mendigos, chefe.

No outrora tranqüilo bairro do Grajaú, morava uma senhora aposentada,

que sempre trabalhara na prefeitura. Viúva, sem filhos, era uma ótima cozinheira. E doceira, além disso. Eram famosos seus quitutes, mesmo os mais simples. E seus bolos e sobremesas em geral, eram encomenda-dos por vizinhas quando queriam dar algum almoço, jantar ou mesmo algu-ma festa maior em casa. Com ela trabalhavam duas empregadas, uma fixa e outra diarista para os dias de encomendas mais importantes. Naqueles dias, por exemplo, dona Clara andava as voltas com o jantar de noivado da filha do coronel Juvêncio Salgueiro. O coronel era um homem exigente, mandava em sua casa como se fosse um quartel de cavalaria. Amava sua filha única e embora ela estivesse noiva de um simples civil, exigira de sua mulher que organizasse uma festa inesquecível. Que gastasse o que fosse necessário. Não queria passar vergonha diante da família e dos amigos do casal. Assim, dona Clara fora contratada.

O delegado Afrânio atendeu o telefone. Seu colega Dario Nogueira expli – cou-lhe a situação.

- É o quinto caso nos últimos seis meses, Afrânio. Receio que se trate de um serial killer. Um matador de estranhas preferencias. E chega-mos a essa conclusão só agora.

- Mas, a que você atribui essa curiosa forma dele selecionar suas vi-timas ? Que estranha compulsão seria essa ?

- Pois é. Ele só assassina mendigos. Não tem lucro algum com isso.

- Seria, por acaso um hobby ? Um passatempo macabro ? Acho que vou dar uma passadinha aí para conversarmos melhor.

- Venha sim, meu amigo. Estou precisando de sua inteligência e ajuda.

Na sala confortável do delegado Dario, sentavam-se, além dele, Afrânio, Gonçalves e o detetive Irineu Duarte , auxiliar mais prestigiado do delega-do do Grajaú.

- É realmente muito estranho, doutor Afrânio. Nosso assassino age de uma forma muito discreta e eficiente. Não deixa vestígios, não é, doutor Dario ?

- De fato, é um criminoso muito eficiente. E não sabemos há quanto tempo vem praticando esses assassinatos. Aceitam um cafezinho ou um refrigerante ?

- Um cafezinho está ótimo.Me diga, Dario, quando começou isso tudo, quero dizer, quando e como foi descoberto o primeiro homicídio ?

- Bem, foi há uns três meses. A vítima apresentava sinais clínicos que indicavam envenenamento. Curare, um veneno pouco usado por criminosos comuns. A autópsia revelou isso. Ora, um mendigo difícil-mente teria acesso a essa substancia. Achamos que tinha sido minis-trado por terceiros.

- Muito bem deduzido. E a partir daí?

- A partir daí ficamos alertas e o segundo caso aconteceu o mês pás-sado. Outro mendigo, um homem de cinquenta e nove anos, morava logo no início do morro. A mesma substancia tinha sido usada

- E você concluiu...

- Não era possivel, a meu ver, que fosse uma simples coincidência. Mandamos exumar alguns corpos, todos de mendigos, mortos recen-temente.Dois deles tinham sido vítimas, não constatadas pelos legis-tas, você sabe como o IML vive sobrecarregado de trabalho com essa onda atual de violência, da ingestão da mesma substancia. E agora, temos uma nova vítima, uma mulher, morta a semana passada.

- Sei, uma mendiga ?

- Exatamente.

- O que vocês acham que essas vítimas têm em comum ? Eram todos pedintes ? Nenhum realizava qualquer atividade pobremente remune-rada ? Algum biscate ?

- Todos pedintes, meu caro. A mulher tinha mais de setenta anos, não poderia sequer ser uma prostituta. E todos moravam nas redondezas, nas partes mais baixas do morro. Faziam ponto em locais diversos. Viviam das esmolas eventualmente recebidas. Se alimentavam dos restos das lixeiras e da comida que,eventualmente,lhes era dada por moradores caridosos ou pela igreja local.

- Entendo, meu amigo. Você abordou o assunto com clareza. Mas acho que não podemos nos esquecer de uma coisa .

- Que coisa seria essa ?

- O motivo ! Ninguém mata sem um motivo. Ódio, vingança, lucro...te-mos que descobrir o motivo para esses homicídios.

- Não tenho dúvida de que você tem razão. Mas como descobriremos isso ?

- Com muita persistência e uma boa dose de sorte, Dario. Mas, posso lhe sugerir que o criminoso não mora no morro. Há muitas maneiras bem mais fáceis e mesmo baratas de eliminar alguém no seio de uma favela. Para que usariam um tóxico de venda proibida e cara ?

- Devemos, então, procurar, investigar, a classe media que mora no bairro ?

- Com certeza. É aí, que você descobrirá quem é o homicida. De mo-

mento é tudo que lhe posso dizer, além de desejar-lhe boa sorte. E vou, com sua aquiescência e apoio, realizar algumas investigações .

- Meu amigo...Só posso lhe agradecer, de coração. Estou, como se dizia no tempo de nossos avós, no mato sem cachorro...

- Por favor, investigue discretamente todas as farmácias do bairro. Vê-já quais delas poderiam fornecer essa substancia e em que medica-mentos ao criminoso.Mas acredito que dificilmente a origem do vene-no seja essa. Outra coisa, sou católico por formação mas não gosto de padres. Alguns podem ser fanáticos. Procure saber quem prepara as refeições que a igreja fornece aos mendigos. Deve haver algumas igrejas protestantes no bairro. Verifique nelas também. Nunca se sabe, não é mesmo ? Colha esses dados para mim e voltaremos a nos encontrar.

- E os bares e restaurantes ?

- Não me preocuparia tanto com eles. Geralmente seus restos de co-mida se destinam a cães e gatos. Seria uma péssima propaganda para eles, aparecerem animais ou mesmo gente envenenados por sua comida.

O tempo passava. O casamento da filha do coronel foi uma festa memo-ravel. Os noivos viajaram em seguida à Europa em lua de mel. O buffet, magnífico, deixou saudades. O coronel estava inchado de incontido orgulho.Alguns dias depois , mais um mendigo apareceu morto.Veneno utilizado pelo assassino ? Curare.

As investigações sugeridas pelo delegado Afrânio tinham resultado in-frutíferas. Aparentemente, o curare só era usado por veterinários para

sacrificar animais em estado terminal. Havia meia dúzia de clínicas vê-terinárias no bairro. Nenhuma delas mostrou qualquer irregularidade em

relação ao curare.Sua utilização era rigorosamente controlada. Os esto-ques do medicamento letal não tinham sido tocados, a não ser pelos ti – tulares das clínicas.

- Estamos num beco sem saída, Afrânio.

- Não desanime, amigo. A investigação criminal requer muita pacien-cia. Estamos apenas começando. Mas vou lhe repetir uma coisa. A chave disso tudo está no motivo. Enquanto não soubermos por que o criminoso só mata mendigos, não solucionaremos o caso. E lembre-se, assassinos são humanos, falíveis portanto. Temos que esperar por algum erro . Existe um ponto que me intriga.

- Que ponto ?

- As mortes, sem exceção, ocorrem no local onde as vítimas residem.

- È verdade. Mas, a que conclusão isso pode nos levar ?

- Não sei ainda. Mas aposto que esse fato tem a ver com os crimes.

- E qual seria nosso próximo passo ?

- Continuar de olhos bem abertos e ouvidos também. Algum fato novo, algum comentário, algum boato terá que nos ajudar.

- O que me preocupa é o tempo. Quando, como, teremos uma pista ?

- Quando o criminoso errar, meu amigo. E isso, infelizmente, é impre-visivel.

- Que profissão difícil é a nossa...

- Também acho. Mas tenha confiança numa coisa.Não existem crimes perfeitos. O assassino acabará por falhar e quando isso acontecer,

você o pegará.

Duas pessoas conversavam ao telefone:

- Viu as últimas declarações da policia e dos jornais sobre os crimes ?

- Sim. Parece que vão apertar ainda mais o cerco.

- Estive pensando. Talvez seja melhor empregar um outro veneno de a-gora em diante.

- Também acho.

- Poderíamos usar arsênico. É mais comum e além disso, é usado em vários pesticidas agrícolas.

- Acho uma ótima idéia.

- Muito bem ! Vou providenciar.

Infelizmente os dois telefones de onde as pessoas falaram não estavam

grampeados. Eram ambos moradores insuspeitos do bairro. E, como diria o delegado Afrânio Moreira, nenhuma das duas pessoas tinha motivos ou razões aparentes para envenenar mendigos.

Uma noite em que Afrânio teve que chegar bem mais tarde em sua casa, Teresa, sua mulher, o recebeu com uma animação maior.

- Querido,tenho uma tese para tentar resolver esses crimes no Grajaú!

- É mesmo ? Pois eu já ando desanimado.

- Venha ! Sente-se aqui e vamos conversar a respeito.

Afrânio conhecia bem a inteligência e o bom senso de sua mulher. Já tive-ra oportunidade de comprovar isso em muitas ocasiões. Sentou-se pois ao lado dela e ouviu atentamente.

- Fale, querida.

- Pelo que você me disse a respeito desses assassinatos, parece que está faltando um motivo para os crimes...

- É verdade. Não sabemos por que eles estão sendo cometidos.

- E se estiverem sendo cometidos por caridade ?

- Caridade ? Que motivo insólito, Teresa. Me explique sua idéia.

- É que estive assistindo o dvd de um filme antigo, uma comédia maca-bra com Cary Grant, dos anos trinta. Sabe qual é o título ?

- Me diga.

- Arsênico e alfazema...

- Arsênico ? Isso me interessa. Como é a estória ?

- Por que você não assiste o filme ? Acho que vai gostar muito. Vou preparar um sanduíche gostoso e um suco para você enquanto isso.

O delegado Dario Nogueira ouvia com atenção crescente seu colega Afrânio. Estavam outra vez reunidos, com seus principais assistentes, na sala confortável da delegacia do Grajaú.

- É uma teoria fantástica, Afrânio. Eu quase a chamaria de surreal. Mas, nessa quase cegueira em que estamos sobre os crimes, acho que vou adota-la.

- Por que não, meu amigo ? As mulheres são excelentes detetives. A não ser quando têm sua visão obliterada pela paixão.

- Muito bem ! E qual vai ser nossa linha de ação ?

- Eu tenho uma idéia fustigando minha inteligência medíocre...Acho que devemos procurar uma assassina, uma mulher. Uma mulher pie-dosa, que acredita estar fazendo um bem a suas vítimas. E uma mulher que cozinha bem, talvez até profissionalmente.

- É ela, doutor Dario !

- Ela quem, Duarte ?

- A dona Clara !

- Vamos com calma, Duarte ! Não podemos cometer enganos. Essa senhora é a grande quituteira do bairro. Goza de um prestígio indis-cutivel no Grajaú. Quem a acusaria desses crimes ?

- Por que acha que é ela, Duarte ?

- Porque é uma pessoa caridosa, doutor Afrânio. É sabido que ela ajuda pessoas pobres com as sobras de sua comida. Sempre sobra alguma coisa no preparo desses jantares e almoços que ela prepara profissionalmente.

- Sim, mas e o curare ? Como ela teria acesso ao curare ?

- Realmente, isso eu não tenho como explicar.

- Em todo caso, Dario, seu auxiliar está nos oferecendo uma hipótese viável. Eu tenho uma outra teoria, não vá acha-la fantástica demais.

- E qual é, Afrânio ?

- Acho que estamos procurando um assassino sozinho, quando na rea-lidade esses trabalhos, por assim dizer, resultam de uma cumplicida-de entre duas pessoas.

- Se uma for a dona Clara, quem seria a outra ?

- Tenho minhas suspeitas, Gonçalves. Mas não vou revela-las por en-quanto.

- Não vai nos dizer, Afrânio ?

- Não, Dario. No momento temos é que pensar muito bem em como abordaremos esse assunto com nossa famosa quituteira. Se dermos um passo em falso, estaremos jogando tudo por terra.

- Ou, por assim dizer, pela lixeira...

Não foi tão dificil como se esperava, abordar o delicado assunto com dona Clara. Sob o pretexto de pedir suas informações com respeito a uma ex – auxiliar sua, que seria, ou não, acusada de furto, o delegado Dario convi-dou-a a comparecer à delegacia, alegando estar sobrecarregado de traba-lho e não poder passar pessoalmente por sua casa. Cidadã ordeira e cum-pridora de seus deveres comunitários, dona Clara atendeu ao pedido. Claro que o delegado Afrânio estava presente na ocasião. Com toda a edu-cação e cortesia, os dois policiais foram aos poucos desviando o foco das perguntas e entrando com cuidado no assunto envenenamentos. Afrânio, hábil interrogador, começou por pedir a dona Clara sua opinião sobre sabo-res de determinados pratos e quais deles ocultariam melhor a presença de um veneno. Confundida, baratinada, dona Clara perdeu sua tranqüilidade habitual, entrou em pequenas contradições e terminou por confessar seus crimes. Só não foi possível obrigarem-na a denunciar seu ou sua cúmplice.

O ainda pacato bairro do Grajaú ficou muito chocado com o esclarecimen-to dos assassinatos. Com seus ótimos antecedentes, dona Clara aguarda-va, em liberdade, seu julgamento. O coronel Juvêncio, sim, por que era ele

quem conseguia o curare sem ser percebido, no estoque do quartel de ca-valaria em que servia, mudou de passatempo, não podendo continuar a ser cúmplice na matança de mendigos. Dizem que voltou a dedicar-se à práti-ca do jogo de xadrez em suas longas horas de folga. E o doutor Afrânio Mo-reira, sempre apaixonado por sua mulher, descobriu numa importadora e comprou-lhe, um belo frasco de perfume francês recém lançado. Nome da

nova e deliciosa essência ? Curare !

George Luiz
Enviado por George Luiz em 12/11/2007
Código do texto: T734502