Sessenta segundos

Os pensamentos são como micróbios pequenos coloridos e agitados, insistentes insinuantes monstros que vêm e vão e voltam e trazem incessantemente, ocupando com a sua qualidade e sabor o nosso tempo, ser e substância. Como acontece com os seres humanos, há os de todas as formas e feitios – lindos e feios, curtos e longos, alegres e tristes, concentrados, despreocupados, decentes e menos decentes. Esses malandros envolvem-nos em abraço apertado e no próximo instante já não existimos mais como entidades separadas. Nós e eles somos superfície de uma mesma esfera - um só.

Passavam exactamente quinze minutos e cinco segundos das nove e os micróbios iam e vinham, não deixando Paulo em paz. Sabia, de intuição forte e segura, que lhe restava pouquíssimo tempo. Não se lembrava como descobrira, nem imaginava como iria ser. A imaginação, essa ganhava asas emprestadas pelo medo e voava alto mostrando cenários aterrorizantes: esmagado ao atravessar a estrada, vítima de interposição entre desavença de adolescentes, assaltado por bandidos em sua própria casa. Como iria ser? De repente já não existiam lugares seguros. Não podia, não aguentava ficar sozinho nesse momento. Com estas confabulações, encarou o bengaleiro e vestiu o casaco castanho. Dirigiu-se para a porta. Saiu.

Para Anabela Morte, simplesmente morte para os clientes, aquele era um dia como qualquer outro. Tomar a bica e comer um pastel no café da esquina, dar dois dedos de conversa e depois… correr de corrida apressada para o cais. Apanhar o comboio e ir à lida, que havia sempre muito para fazer – hoje, por exemplo, tinha três quase finados esperando. Ajeitou o cabelo liso negro sobre o casaco de cabedal, olhou a pessoa com os seus olhos escuros e disse

“Uma bica, por favor”

“Um momento, um momento, já vai”, respondeu a voz atarefada.

Nesse mesmo instante Mário entrou, casaco apertado e mãos nos bolsos, jornal “A Bola” entalado debaixo do braço. Estava com frio. Olhou-a ao de leve, a visão fixando-se momentaneamente como carro que trava em semáforo. Disse

“A menina, hum… acho que isto lhe pertence”

As mãos seguravam um pequeno equipamento de computação portátil, vulgo PDA. Era daqueles porreiraços, de última geração, trazia GPS, telefone e tudo, teria sido um crime, autêntico pecado mortal perde-lo assim de tão leviano descuido.

“Oh… obrigado, como fui capaz?”, disse ela sorrindo

“Pois é, esta coisa é um mimo mas… Sabe, hoje andamos todos a correr, são as pressas não é? E quando damos por ela, a vida foge-se-nos, esvai-se, temos encontro marcado com a velha senhora. Que nos leva… Posso perguntar-lhe o seu nome?”

“Ah… Anabela, muito prazer”, ocultou deliberadamente o sobrenome, não queria espantar a companhia.

Dizem que são as mulheres quem conversa muito mas o rapaz falava pelos cotovelos e nada tinha de efeminado. Quis saber tudo, com pormenores – onde ela morava, que fazia na vida, quais as coisas de que gostava e que detestava. Por estranho que pareça, ela não o achou sensaborão e chato. Passavam já vinte minutos quando ela olha para o relógio

“Bolas, vou perder este comboio. Olhe, tive muito gosto, se algum dia necessitar de mim…”, e partiu apressada, deixou-lhe nas mãos o pequeno cartão.

Correu. Apenas para chegar e constatar, irritada, que o esforço tinha sido em vão. Tendo perdido o transporte, ligou o pequeno dispositivo e passou ao nome seguinte. “Hum… Paulo Rodrigues, morava perto, ia ser fácil”.

O homem tinha descido as escadas, evitando a fonte de perigo que era pequena caixa fechada - o elevador. Á entrada do prédio olhou para um e outro lado não descortinando trânsito nem vivalma. Nesse momento viu ao longe a figura escura e lembrou-se de tudo. “Tens sessenta segundos”, tinha dito a mulher do sonho, gémea daquela. Um micróbio apareceu opinando “É só uma pessoa vestida de preto e parecida com a outra, nada mais. Não tens que recear”. Ao que outro bicho contestou “Pelo sim pelo não, verifica se estás sendo seguido”.

Estugou o passo. Pouco depois, olhou para trás disfarçadamente, de relance. Ela estava lá, e até mais perto! Teria passado quanto tempo? Vinte, trinta segundos? Desatou a correr que nem um desalmado. Logo que possível, virou à esquerda entrando no beco.

Paredes altas de “tijolo de burro”, exibiam, indiferentes, “graffiti” cuja qualidade ele não tinha tempo de apreciar. As narinas e a boca inalaram o ar impregnado de cheiro nauseabundo - era o lixo transbordando dos caixotes e transpirando a céu aberto. Um micróbio gritou “Esconde-te” mas Paulo não obedeceu, estava ainda muito perto! Continuou a corrida, virou outra vez – desta feita à direita. Tinham passado exactamente cinquenta segundos quando encontrou finalmente o esconderijo perfeito.

Agachado junto à parede, Paulo pensava como ainda se iria rir de toda esta correria. Estava ofegante, o coração batendo descompassadamente. E de repente, aos sessenta segundos, chegou a dor, sem qualquer aviso. Ainda levou a mão ao peito. Depois, o corpo ficou hirto, a respiração suspensa, até os micróbios fugiram assustados. Os dois olhos fixos contemplaram espantados a chegada dela.

“Olá. Sou a morte. Anabela morte. Muito prazer”

A mulher olhou o corpo ainda quente mas agora patético, instrumental, sem vida. De Paulo só tinham sobrado os olhos esbugalhados e a expressão de espanto. “Bem, agora só faltam mais dois. Finando esses, poderei voltar para casa e descansar”, pensou. Indiferente, voltou as costas ao cadáver, colocou a mão no bolso e retirou de lá a coisa de onde vinha o som. Era Mário, não demorara muito a usar o cartão.

“Olá, como estás? Vais achar um pouco estranho o telefonema mas… estou mortinho por te encontrar”, disse ele.

“Hum… olha, esquece-me pá. Vai viver a vida. Não te esqueças de me esquecer, ouviste?”, respondeu, desligando logo em seguida.

Olhou para o “graffiti” com o coração espetado que dizia “Pedro ama Ana”. Sabia que gostava dele e sentia-se repentinamente triste e só. Naquele momento não era mais que uma morte estúpida.