Silêncio no fim do corredor
Os gemidos baixos e constantes causavam um misto de contentamento e repulsa em Amélia. Queria que o velho sofresse, embora desconfiasse que suas dores fossem mais imaginárias do que reais, pois nunca permitiu que ela chamasse o médico da cidade para vê-lo. Mesmo assim, esse murmúrio constante a exasperava de tal forma que tinha ganas de calá-lo de uma vez por todas, enfiando-lhe um trapo pela garganta.
Enquanto varria o chão de assoalho antigo, desgastado e em mau estado pela mesquinharia do dono da casa, pensava em como seria se ver livre dele. Sonhava com o dia em que o encontraria morto, tinha a certeza que a ausência dos gemidos a alertaria na hora. Passara a vida toda subjugada por ele, que constantemente sufocava sua espontaneidade, abafava seu espírito e a privava de qualquer alegria da juventude. Ele tinha inveja de seu frescor, sua vitalidade, sua agilidade, tudo que há muito tempo havia perdido.
A ira que sentia toda vez que estava submersa em tais pensamentos só debandava quando Felício esfregava a cabeça amarela na barra de seu vestido pedindo carinho, os profundos olhos verdes pareciam compreendê-la e aliviavam toda a tensão de mais um dia difícil. Então, largava a vassoura e ajoelhava-se ao lado do gato que ronronava uma canção de paz só para ela.
− O que está fazendo aqui? Se o tio te vir você estará encrencado! − Pegou o gato no colo, embalou-o como a um bebê, e com relutância colocou-o no chão − Vamos, volte já para o quarto. Logo levarei algo para você comer.
Correu para a cozinha. Já era hora de descascar os legumes e preparar a sopa, comida diária do velho, que ainda se encontrava fechado em seu quarto, o que proporcionava alívio e a única sensação de paz que conhecia. Paz essa que logo foi quebrada pelo estalo da porta e o arrastar de pés vindo em sua direção. Esse som a colocava em estado de alerta, sentia a tensão enrijecendo os músculos de seu pescoço e ombros.
− O que vai fazer pro almoço, Mélha?
− Bom dia, tio, o que o senhor quer comer?
− Compra meio quilo de linguiça e não esquece o cigarro e a pinga.
− Só vou terminar a sopa e já vou.
− O que fez a manhã inteira que ainda não acabou com isso?
Rangeu os dentes tão alto que ficou com medo de ser ouvida.
− Lavei os banheiros, cuidei da horta, esfreguei a escadaria e varri o chão.
− Pois acorda mais cedo amanhã, sua preguiçosa. Sua mãe a essa hora já tinha tudo pronto e podia ir comprar logo minhas coisas, você sabe que eu preciso delas.
Detestava quando ele falava de sua mãe. Ainda se lembrava dos xingamentos e reclamações que ela aguentava calada. Nunca soube o motivo que a fez ficar tanto tempo. Poderia arrumar outro emprego facilmente se quisesse, mas continuava lá, suportando o mau gênio e a grosseria de tão detestável patrão. Quando ela morreu subitamente enquanto dormia, deixou Amélia, que não completara doze anos ainda, sem um teto e sem um centavo que fosse seu. Então o velho a tomou sob sua tutela, trocando trabalho escravo por casa e comida.
Picando os legumes com uma faca recém afiada, sua vontade era enterrá-la no coração do velho, ou cortar-lhe a garganta, tinha certeza que conseguiria, ele já estava tão desgastado pela idade que não teria condição alguma de resistir. A vontade era forte, mas sempre conseguia controlá-la, respirava fundo e respondia:
− Já estou indo.
O tempo que passava fora de casa era a melhor parte do seu dia, sentia-se livre, as amarras que a ligavam ao velho eram momentaneamente desfeitas e ela relaxava, podia pensar sem medo de que ele pudesse ouvir. Demorava muito mais do que o necessário nas compras, mesmo que fosse sempre repreendida por isso. Caminhava tranquilamente pelo vasto campo que separava a propriedade das áreas mais habitadas da cidade, parava para colher algumas flores amarelas, observava os pássaros, acenava para uma carroça que passava, corria entre as árvores e quando precisava realmente extravasar, arregaçava a saia do vestido, subia em uma árvore e lá do topo gritava a plenos pulmões. Ajudava a aliviar toda a tensão. Esses momentos eram um fragmento de felicidade que guardava na memória, tão singelos e pequenos, mas quando colocados todos juntos, formavam uma colcha de retalhos, simples, mas que a aquecia no rigoroso inverno que eram os seus dias.
Quanto mais se aproximava do antigo casarão escondido pelos ipês brancos, que mesmo na estação não floresciam há anos, sua mente vagava por inúteis planos de fuga, mesmo sabendo que o destino de uma mocinha sozinha no mundo seria no mínimo incerto e talvez calamitoso. Era isso que a fazia ficar. Entrou pela porta da cozinha e foi até o quarto do velho entregar seu vício diário, a porta estava aberta e ele sentando na cama imunda. Manchas de suor e urina marcavam o lençol que um dia fora branco. Lixo se acumulava no chão e sobre os móveis. O velho nunca deixava Amélia passar da porta. O cheiro era insuportável, os banhos anuais do velho não ajudavam em nada. A figura esquálida, quase cadavérica despertava a compaixão, se ele fosse mais humano, se quisesse ajuda, se deixasse ser cuidado, tudo seria tão diferente. Poderia tê-lo tratado como a um pai, mas ele preferia fazer da vida de ambos um inferno. Deu graças a Deus quando ele pegou o cigarro e a pinga com mãos ávidas e fechou a porta.
Voltou para a cozinha e preparou a linguiça. Separou um pouco para si e deixou que a parte do velho cozinhasse até se desfazer, era assim que ele gostava. Levou um pouco para Felício, ele devia estar faminto. Abriu a porta do quarto e chamou pelo gatinho, estranhou que não viesse correndo e roçando em suas pernas. Seu quarto era pequeno, duas camas, um armário e uma cadeira. Desde a morte da mãe que a visão da cama vazia lhe apertava o coração, mas não pôde se livrar dela. Felício só estava seguro dentro daquelas quatro paredes, já que era o único lugar onde o velho não pisava. Olhou embaixo das camas e lá estava o gatinho dormindo. Chamou mais uma vez, certa que o cheiro da linguiça o despertaria. Nada. Arrastou a cama e olhando mais de perto viu que Felício agonizava. Uma espuma branca saia pela boca e seus olhinhos verdes a encaravam implorando ajuda. Pegou o gato no colo e o embalou uma última vez, acariciando sua cabeça e lembrando de todo o consolo e conforto que ele lhe havia proporcionado em sua curta vida. Lágrimas riscavam suas faces e soluços a sacudiam. A represa que encerrava a tristeza profunda em sua alma se rompeu, inundando todos os pensamentos e sentimentos, foi matando um a um, só sobrando um ódio insano. Colocou o gato sobre a cama que fora de sua mãe e foi até o quarto do velho.
Bateu com tanta força na porta que ela se abriu sozinha. O velho, ainda sentado na cama, tomava um gole de pinga e nem olhou para ela.
− O que fez com o meu gato, seu velho maldito? − Disse entre soluços.
− Eu avisei que não queria gato aqui, não avisei? − Um sorriso asqueroso rasgou a boca sem dentes.
− Ele não fazia mal nenhum pra você. Ficava o dia todo no meu quarto. Você não tinha o direito de matar a única criatura que eu amava e que também me amava.
− Aquele quarto é meu, a casa toda é minha! Você não tem nada aqui. Ele comia a minha comida, assim como você. Eu faço caridade mantendo você aqui, sua bastardinha, se não fosse por mim você já tinha virado mulher da vida pra ter o que comer. − Os olhos apertados brilhavam e o nariz escorria com a agitação dos nervos.
Perdendo totalmente o controle, segurou a gola da camisa puída e suja que o velho usava. Tinha vontade era quebrar seu pescoço com as próprias mãos. Viu nos olhos do velho incredulidade, medo e algo como diversão.
− Posso muito bem sobreviver longe de você, mesmo que tenha que virar mulher da vida, mas e você, como sobreviveria sem mim? Se eu for embora você morre de fome, acha que alguém aceitaria trabalhar aqui? Acha que alguém suportaria um patrão tão repugnante como você? O senhor é um demônio e lugar de demônio é no inferno.
Largou a camisa do velho quando viu que estava prestes a sufocá-lo. Saiu de lá antes que seu autocontrole, que já estava em farrapos, a abandonasse de vez. Tinha só uma certeza, aquilo não ficaria assim, ela com certeza se vingaria.
Depois de embrulhar Felício em um xale de sua mãe, levou-o até o fundo do quintal, abriu uma cova e com um último adeus enterrou o bichinho. Ele estaria em um lugar muito melhor agora e ela não sabia como suportaria a vida sem ele. Voltou para a cozinha e viu que sobre a pia havia um frasco contendo um pó branco, na etiqueta escrita à mão só a palavra Linamarina. Não sabia o que era, mas tinha quase certeza que poderia ser o veneno que o velho usou para matar o gato. Linamarina… parecia o nome de uma mulher, ou até duas, Lina e Marina, quem sabe não era o pó das lágrimas de outras moças que o velho havia atormentado. Ainda olhando para o frasco, uma ideia pousou em sua mente e logo fez ninho. Colocou o frasco dentro do bolso do vestido e foi até a horta, apanhou algumas folhas de chicória e picou tudo bem fininho, colocou na sopa e deixou cozinhar por mais alguns minutos.
Às seis horas da tarde em ponto, chamou o velho para comer. Ele comia uma única refeição por dia, dormia a maior parte do tempo e quando estava acordado fumava e bebia enquanto tomava café e ouvia a rádio. Fez um prato para ele e outro para si. Já havia comido quase metade da sopa quando ele chegou. Comeram em silêncio.
− A sopa está amarga. − Disse ele olhando diretamente em seus olhos.
− Deve ser a chicória que coloquei no meio. − Disse sustentando o olhar.
− É, deve ser isso mesmo… − Um leve sorriso passou pelo seu rosto antes que voltasse a comer.
Comeu tudo.
Não conseguia dormir, virava de um lado para o outro na cama tão vazia. Não tinha mais o calor de Felício em suas costas nem seu leve ressonar para embalar o sono. Sentimentos e emoções novas varriam sua alma e atormentavam seu espírito. Cobria a cabeça para tentar abafá-los, mas não conseguia, estavam dentro dela acusando-a. Se sua mãe estivesse viva saberia o que fazer. Pensou em fugir, mas não teve coragem, teria que terminar o que começara. Cada ruído de fora a assustava, seu coração martelava dentro do peito e podia sentir os batimentos nos ouvidos. Imaginou que teria um infarto antes do raiar do dia, o que não deixaria de ser uma bênção. Mas o que mais a assustava era o completo silêncio da casa. Nada de pés arrastando, nada de rádio alta, nada de gemidos. Começou a rezar por um infarto fulminante.
Enfim amanheceu e a luz do sol surpreendeu Amélia em posição fetal debaixo das cobertas, batendo o queixo de frio, embora fosse verão. Quando o quarto ficou totalmente claro, levantou e se vestiu. Colocou o único vestido preto que possuía, que fora de sua mãe, como todos os outros. Abriu a porta do quarto devagar. Caminhou pelo corredor até parar em frente ao quarto do velho. A porta estava entreaberta. Olhou pela fresta e viu o velho deitado debaixo das cobertas com os olhos fechados e a boca aberta. Abriu a porta lentamente e entrou no quarto, ele parecia dormir um sono profundo. Olhou fixamente para ele, tentando vislumbrar qualquer vestígio de vida. O peito não subia, nem havia som de respiração. Uma mosca saiu da boca aberta e outra do nariz. Amélia apoiou-se no guarda roupa para não cair.
Olhando ao redor viu sobre o criado mudo um envelope pardo com seu nome. Dentro havia uma carta.
Amélia,
Então você teve mesmo coragem de me matar. Parabéns! Pensei que fosse covarde e imprestável como o seu pai. Sim, eu sei quem ele é. Vou te contar tudo desde o começo. Quando sua mãe veio procurar trabalho, já era uma solteirona quase na meia idade, mas ainda tinha seus encantos. Eu me apaixonei loucamente por ela. Teria dado o céu e as estrelas se ela me pedisse. Mas ela escolheu meu irmão. Sua mãe te ensinou a me chamar de tio, mas ela te contou tudo? Duvido muito. Aquele sem vergonha a engravidou e não pretendia casar-se com ela. Vi a dor que ela sentiu, sua decepção. Foi então que comprei aquele frasco que você achou na pia. Seu pai teve uma morte inesperada e merecida. Ofereci casamento para ela, mas burra e fiel como era recusou, implorando por proteção e emprego. Para onde iria mãe solteira e desamparada? Tentei me afeiçoar a você, mas cada vez que te olhava era como encarar seu pai que me acusava e pedia explicações. O tempo foi passando e eu ainda tinha esperanças que sua mãe viesse a me amar. Fiz minha última declaração e proposta. Recusou na hora. Não aguentei e contei que havia sido eu que matara seu grande amor. Juro que se soubesse que ela morreria naquela noite não teria contado. Juro. Então tive que cuidar de você, minha sobrinha, que me lembrava constantemente dos meus pecados. Não que eu quisesse ou esperasse uma redenção. É tarde demais para mim. Recebi meu castigo com juros. Há alguns anos fui ao médico e depois de várias consultas e exames, me disse que tenho a doença ruim. Recusei o tratamento. Eu merecia sofrer. E sofri por um bom tempo. Mas não aguento mais essa vida, a dor é insuportável. Sabia que matar o gato era o único modo de fazer você me ajudar a colocar um fim nisso tudo. Não me arrependo do que fiz. Não pense que é uma assassina e sim que libertou esse velho maldito de sua dor e o lançou nas garras do diabo para que sofresse ainda mais no inferno que é o meu lugar. Agora, depois de chamar o médico, que se encarregará do enterro, vá falar com o tabelião, ele te dará meu testamento. Deixei para você essa casa e todo dinheiro que consegui economizar desde a morte de sua mãe. Ficará bem até encontrar um marido.
Adeus, aproveite a liberdade.