Canção de Ninar
Assim que os primeiros raios do sol brincaram com o tecido grosso da cortina, fazendo com que o quarto, antes escuro e quase mórbido, tomasse ares dourados, Elene se levantou tateando os pés no tapete macio, tentando encontrar os chinelos, sem fazer som algum. Não queria acordar Roberto.
Saiu na ponta dos pés e correu até o quarto da Luísa. Ela ainda dormia, sugando o polegar. Passou os dedos pelos cabelos cacheados e cheirosos da filha, que abriu os olhinhos pretos e sorriu, ainda com o dedinho na boca.
— Bom dia, bebê! Dormiu bem? Eu queria que você dormisse no meu quarto, mas seu pai não deixa. Acho que ele tem ciúmes, não quer dividir a mamãe com você.
Pegou a menina e colocou com gentileza sobre o trocador. Tirou a fralda, passou o lencinho umedecido e colocou uma nova. Trocou o pijama de ursinho da filha por um vestido de bolinhas rosas e roxas. Preparou a mamadeira e se aconchegou com a filha na poltrona rosa. Enquanto a menina mamava, a mãe contornava os traços de seu rostinho com o indicador.
— Estou preocupada com o seu pai. Não sei por que ele não liga pra você… Ele era tão cuidadoso e parecia tão feliz quando você nasceu.… A última vez que falei com ele sobre a sua festinha de aniversário, ele não quis me ouvir, você vai fazer um aninho, não posso deixar passar em branco, vou fazer assim mesmo, vai ser uma surpresa, pra ele, é claro. Já mandei os convites, encomendei um bolo, salgadinhos e docinhos, e até os balões cor de rosa que você tanto gosta… Então, vamos ficar bem quietinha e longe dele por esses dias, tá bom?
Elene passou a manhã inteira entretida com Luísa e mal se deu conta que já era quase hora do almoço, precisava preparar a comida antes que o Roberto chegasse. Assim que Luísa nasceu, ele contratou uma empregada, uma senhora magra, alta e carrancuda, que atendia pelo nome de Leonor. Ela limpava a casa toda, mas não cozinhava nem ficava de babá, parecia ter horror a crianças. Elene não suportava a mulher e se pudesse, já teria mandado ela embora de sua casa há muito tempo, mas Roberto insistia em mantê-la.
Tentava sempre dar o almoço de Luísa antes do marido chegar, mas não teve tempo. Deixou a menina no quarto enquanto almoçava com Roberto. Os dois em silêncio. Sabia muito bem que ele nunca queria falar sobre a filha e muito menos ouvir qualquer coisa sobre ela, então não falava nada. O que diria? Sua vida consistia em ser mãe, só isso.
Ouviu Luísa chamando, o choro começou baixinho, mas foi aumentando até não poder mais ser ignorado.
— Onde você vai? — Perguntou o marido, limpando a boca com um guardanapo.
— Vou ver o que a Luísa quer, não está ouvindo ela chorar?
— Senta aí, Elene, deixa ela chorar! — Seu olhar era tão duro, tão cheio de raiva, tão louco, que ela não teve coragem de desobedecer.
Sentou novamente e comeu o mais rápido que conseguiu, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, formando um bolo na garganta que dificultava ainda mais a tarefa de engolir. O choro da filha ardia em seus ouvidos e queimava seu coração. Assim que terminou, levantou e foi correndo até o quarto da menina que berrava inconsolável, de pé, segurando nas grades do berço. Pegou Luísa no colo e a embalou até sentir a filha relaxando em seus braços.
— Tá tudo bem, filha. Um dia a mamãe vai levar você embora daqui e seremos só nós duas… Quando ele sair eu te dou almoço. Isso… A mamãe está aqui. Não se preocupe…
Não podia perdoar o marido. Nunca o perdoaria! Já havia planejado escapar dele, levar sua filhinha para longe dali, poder dar toda a atenção que ela merecia. Mas nunca tinha oportunidade. Leonor estava sempre por perto, e quando ela ia embora, tinha o Roberto. Sempre rondando, vigiando, tentando ocupá-la com outras coisas, qualquer coisa, contanto que deixasse a menina sozinha no quarto.
Queria entender esse rancor, esse ódio. O que a filha poderia ter feito para que ele a odiasse tanto? Tentou se lembrar de quando isso começou. Ele simplesmente foi se desligando, de forma lenta e gradual . Agora precisava esconder a filha dele, não deixar que suspeitasse de sua presença. Fazia questão de dormir só depois que ele adormecesse e acordar antes dele, tinha medo do que ele poderia fazer com a filha se ela não estivesse por perto.
Ficou com a menina nos braços até que ele voltasse para o trabalho, cantarolando a canção de ninar que fizera para ela. O calor do corpinho da menina tirava toda a sua angustia, seu cheiro de bebê a acalmava, as brincadeiras e gracinhas a alegravam e então seu dia ia passando, era assim que suportava.
Elene aproveitou que Luísa adormeceu para tomar um longo banho, precisava relaxar. A constante preocupação a deixava tensa, os nervos doloridos, o coração sobressaltado. Não conseguiria viver muito mais tempo assim, iria conversar seriamente com o Roberto e pedir o divórcio antes que acontecesse uma tragédia.
Saiu do banho envolta em um roupão branco e felpudo, foi até a cozinha tomar um copo de água. Enquanto bebia, viu a pasta de Roberto sobre a mesinha da sala. Colocou o copo na pia e correu até o quarto da filha.
Ele estava de pé, olhando para o berço. A menina balbuciava e estendia os bracinhos para ele. E ele ficou lá, só olhando. A filha queria colo, e ele não mexia um músculo para pegá-la. Lágrimas escorriam pelo rosto de Elene. Por mais que ela quisesse que ele voltasse a ser o marido carinhoso e o pai apaixonado que um dia já fora, algo lhe dizia que isso nunca mais aconteceria, que seja lá o que se passava com ele, era irrevogável.
— Pega ela, Roberto. Ela precisa do carinho do pai. — Sussurrou. A esperança insistindo até o fim.
Ele olhou para trás, enxugando os olhos vermelhos que continham um ódio assustador. Não disse uma palavra, saiu do quarto e se fechou no banheiro. Ele planejava alguma coisa. Esse sentimento fez um choque percorrer todo o corpo de Elene, precisava ficar alerta, não desgrudar os olhos da filha e planejar a fuga o quanto antes. A conversa sobre o divorcio não adiantaria, nem a festinha que tanto queria. Precisava agir rápido. A filha corria perigo!
Não conseguia dormir. Tentava imaginar um plano de fuga, mas para onde iria? Sua família morava do outro lado do país, suas amigas se afastaram quando Roberto começou a ficar estranho, estava sozinha e não tinha dinheiro suficiente para sair da cidade. Pensou em chamar a polícia, mas não tinha uma queixa concreta, ainda. Não era contra a lei odiar os filhos, infelizmente.
Olhou o marido que dormia, tão tranquilo, parecia até outra pessoa. Lembrava o homem de antes, aquele que ela amava. Ficou olhando para ele… Quando acordou ele não estava mais lá. Demorou apenas cinco segundos, daqueles que separam o sonho da realidade, para que ela lembrasse da filha.
Correu até o quarto da menina implorando para não ser tarde demais. Abriu a porta e a primeira coisa que viu foi o berço vazio. O pânico impedia os pensamentos de fluírem e dificultava a respiração.
Olhou no quarto todo, saiu pela casa gritando a filha e procurando em cada canto, cada lugarzinho que um bebê poderia se esconder, mas no fundo sabia que não a encontraria. O marido também não estava lá.
Pegou o telefone e ligou para a polícia. Assim que desligou, ouviu o barulho de chave na porta da frente. Correu até lá, a esperança ainda insistia que ele a traria de volta, que haviam dado só um passeio, que ela estava segura, mas assim que a porta se abriu a esperança morreu. Roberto entrou segurando apenas uma sacola da padaria.
— Onde está ela? O que você fez? — Gritou desesperada.
O semblante antes sereno do marido se alterou, seu olhar ficou duro e frio, ele se aproximou dela, segurou seu braço e a arrastou para fora de casa, ainda de camisola.
— Quer saber onde ela está? Vou te levar até ela… — Abriu a porta do carro e a jogou para dentro.
Quando a polícia chegasse seria tarde demais, tanto para Luísa quanto para Elene. Ela sabia disso. Era tarde demais. Ele dirigiu como um louco pelas ruas da cidade. Não falou uma palavra. Elene só queria a filha de volta, precisava dela. Como sobreviveria sem ela? O que a consolou foi que provavelmente logo estariam juntas, de um jeito ou de outro.
Roberto parou o carro e arrastou a esposa para fora. Elene reconhecia aquele lugar, já estivera ali antes. Ela sabia o que viria, sabia e preferia morrer a ter que passar por aquilo de novo.
— Não! Pelo amor de Deus, Roberto, vamos embora! Eu não quero ver, não quero ver…
Se debatia e chorava, gritava e implorava, mas ele continuava arrastando-a pelos corredores, até jogá-la sobre uma placa de mármore.
— Você não queria saber onde ela estava? Não queria saber o que eu tinha feito com ela? Olha ela aí. Olha!
— Segurou o rosto da esposa e a obrigou a olhar.
Antes que Elene abrisse os olhos já sabia o que iria encontrar e daria qualquer coisa para não ter que passar por aquilo novamente. Viu uma lápide branca. Uma foto de Luísa, ainda com dias de vida, emoldurada logo acima de seu nome. Como das outras vezes, tudo ficou claro em sua mente.
Todo o ódio nos olhos do marido se transformou em dor, o tempo todo era dor, exaustão, tristeza e angustia.
— Eu não aguento mais, Elene, não quero te colocar em uma clínica, mas não estou suportando mais. É demais para mim. Não posso ficar triste, não posso chorar, não posso sentir saudade da minha filha com você nesse estado. Você precisa superar isso… sei que é quase impossível pra você, mas eu não posso mais continuar assim, por favor, Elene… por favor.
Elene viu como o marido havia envelhecido, como a dor o havia destruído. Mas ela não podia desistir da filha, não podia abrir mão dela, senão não sobreviveria. Se permitiu lembrar, uma última vez.
O sentimento de impotência, de sufocamento, a filha recém nascida no colo. Olhava para ela e não sentia nada além de cansaço e desesperança. Tristeza. Sua alma estava na mais densa escuridão. O bebê chorava tanto. “Dorme filhinha do coração e não tenha medo de nada não…” Cantarolou até que o bebê ficou em silêncio. E ela pode deitar ao lado da banheira e dormir. Acordou com o marido gritando com ela, pegando a filha e correndo com ela para o médico, mas era tarde demais, tarde demais…
A lembrança vinha como uma bomba atômica que a destruía por dentro. A dor era insuportável. E ela chorava, em posição fetal, sobre o túmulo da filha. Roberto a pegava no colo e a carregava até o carro e a levava de volta para casa. A polícia não viria naquele dia, já não atendia mais aos chamados de Elene.
No resto do dia, Roberto e Elene choraram juntos. Ela implorou por mais uma chance, não queria continuar assim, alheia à realidade. Prometeu que não se esconderia da dor, que a enfrentaria. Naquele dia eles eram eles mesmos. Vivendo o luto. Eles dormiram abraçados e Roberto torceu para que ela tivesse forças.
Quando amanheceu, Elene acordou com dor de cabeça, os olhos inchados denunciavam o choro, a sensação de desespero quase tomando conta dela, até que o choro da filha a acalmou. Levantou, sem acordar o marido, e foi até o quarto da menina. Ela estava lá, com seu pijama de ursinho, o cabelo bagunçado e os olhinhos cheios de lágrimas.
Estendeu os bracinhos para ela.
— Bom dia, Bebê! Senti tanto a sua falta!