O último pôr do sol

Carlos acordou ofegante na alta madrugada tateando as próprias pernas por instinto, repetindo o mesmo gesto das outras noites. O coração disparado em seu peito abafava qualquer som. Tivera o mesmo sonho das últimas noites.

Não conseguiria continuar deitado.

O apartamento claustrofóbico no Bairro da Torre ainda se encontrava escuro quando o homem, de olhar cansado e cabelos mal cuidados, saiu arrastando-se do quarto e sentou-se junto ao computador em uma mesa com restos de comida. Sabia que o sono não voltaria até o dia clarear e ele ter que voltar ao seu enfadonho trabalho. O suor começou a tomar o seu corpo. Janelas fechadas aqueciam mais ainda a sala naquela noite quente.

Com a respiração normalizada, começou a ler algumas manchetes em sites para tentar esquecer o realista momento que vivenciou alguns minutos antes. A festa em seu sonho era perturbadoramente prazerosa, uma contradição vivida ao extremo até o anfitrião entrar triunfante por uma porta dupla. Carlos tentou correr e não conseguiu.

Normalmente ficar navegando na internet aliviava seus temores mas, quando leu sobre a exposição de um artista russo no próximo final de semana na pinacoteca da Várzea, sentiu um misto de medo e curiosidade. Lá seria exposto algo bem familiar. Ligou o ventilador e jogou-se no sofá. Banhado pela luz que fugia da persiana, Carlos ficou pensativo até seu corpo se render ao cansaço.

Como sempre acontecia, o sono só voltou quando ele se arrumava para sair naquela sexta-feira ingrata. Tomou um banho para tentar despertar, porem seu reflexo no espelho não mudou. Mostrava um homem de semblante cansado, solitário, com olheiras e barba por fazer. Apertou a gravata – não pensava em apertá-la mais do que o suficiente, mas não espantaria ninguém se o fizesse –, saiu do apartamento e pegou o elevador sem cumprimentar os vizinhos.

Parou em uma padaria ao caminho do trabalho e pediu um café forte com algumas torradas. Sentou-se em uma mesa mais afastada e tentou organizar os pensamentos quando um homem em farrapos sentou-se a sua frente.

– Não acredite neles. – falou o homem em uma voz visivelmente perturbada. – Não acredite neles. Querem levar a gente.

A primeira coisa que Carlos percebeu é que o homem fedia, e muito. Tinha a barba curta e desgrenhada e o cabelo que mais parecia uma samambaia com trepadeiras penduradas e arbustos espinhosos surgindo aqui e ali. Virava a cabeça para o lado esquerdo, como um tique nervoso, e passava as costas das mãos no rosto com frequência. Olhos atentos pareciam vigiar em todas as direções.

– Eu mereço isso. – pensou afastando-se e cobrindo o nariz com uma das mãos.

– Cuidado com as sombras. – disse o homem de tez clara escondida na sujeira – não acredite nelas. Elas querem pegar a gente.

Uma mosca parou no rosto de olhos arregalados quando este se fixou em algo atrás de Carlos.

– As sombras querem pegar a gente.

De relance, Carlos viu um funcionário da padaria se aproximar. O mendigo partiu da mesma forma que chegou, quase imperceptível, deixando à mesa apenas o homem de semblante cansado.

– Perdoe. – falou o funcionário – Ele roubou algo do senhor?

– Tudo bem – respondeu Carlos afastando uma mosca que não conseguiu acompanhar os passos de seu agora ausente companheiro. Olhou para o atendente e tentou esboçar um sorriso com o canto da boca.

– Uma mulher bonita com um sorriso cativante não senta na minha mesa essa hora da manhã para desabafar. – comentou, recebendo um sorriso de volta. – traz a conta, por favor.

O comentário ao funcionário da padaria permaneceu em sua cabeça enquanto encarava seu próprio reflexo na superfície negra dentro da xícara. Levantou a cabeça e respirou fundo.

– Ainda tenho que aturar esses tipos.

O dia arrastou-se absurdamente lento na sexta de céu claro e sol causticante. Carlos alternava entre a tela do computador e o relógio. Com a exposição na cabeça, o ansioso homem não produziu praticamente nada naquela manhã. Sua excitação aumentava toda vez que se lembrava do sonho. O mesmo que ocorreu timidamente há alguns meses e que se tornou mais frequente com o passar do tempo. Sempre com o mesmo contexto.

Inventando alguma desculpa, uma consulta ou uma encomenda para buscar, Carlos saiu do trabalho no começo da tarde já com destino certo.

A pinacoteca ficava em um pedaço da Europa no Recife. Uma estrada ladeada por palmeiras conduzia a um lago com uma grade adornada por dois leões de pedra. No alto dos campos verdejantes após o lago ficava a pinacoteca e o museu de armas brancas, um castelo construído ao estilo gótico do século XV.

Carlos passou apressado por casais sentados à sombra das árvores. Suava e ofegava com o calor entorpecente daquele final de tarde. Cruzou a grande porta dupla que dava em uma sala ampla e climatizada, típica das mais modernas pinacotecas. Visitantes recebiam algumas informações antes de entrar. A exposição havia começado.

Painéis contavam sobre Vlastinov Nicolai. Pintor russo do século XVII que foi aluno do holandês Rembrandt. Na Rússia, tornou-se um pintor muito procurado para retratar aniversários e casamentos até seu suposto isolamento em sua mansão. Suas obras, apesar de conter toda a característica de um autêntico Rembrandt, nunca foram reconhecidas como tal.

Seguindo com os outros visitantes pelos corredores, passando por cartazes e quadros, Carlos parou sozinho frente a uma porta dupla de carvalho envelhecido que levava a uma sala mal iluminada. Nunca havia notado tal porta, principalmente por essa se destoar tanto da moderna decoração do lugar, mas talvez esta fosse uma passagem para o castelo anexo e que tenha passado despercebido em suas poucas visitas ao museu.

Adentrou a sala de piso de mármore negro com paredes de tijolos amarelados. Sombras dançavam ao ritmo do tremular das tochas acesas. Fazia frio e silêncio. Carlos caminhou lentamente até a parede oposta – seus passos ecoavam pela sala vazia – e parou frente a uma enorme tela em uma luxuosa moldura. Correu o olhar por toda a pintura. Era exatamente como surgira em seus sonhos.

A pintura retratava uma mesa fartamente servida. Algumas cadeiras ainda vazias separavam os convidados e ao fundo uma porta dupla, de carvalho envelhecido, estava aberta onde um homem magro de cabelos negros e longos, com um robe elegante, brindava a todos. No canto inferior direito havia um vaso com o rótulo “V. Nicolai”.

– A “Pintura inacabada de Nicolai”. – soou uma voz ao lado de Carlos.

Carlos virou e viu um homem alto e magro em um terno Armani impecavelmente novo, uma gravata Raffaello Gold, sapatos Ferragamo e um Rolex no pulso. Os cabelos curtos e negros, penteados a base de gel, contrastavam com a pele ligeiramente pálida. As sombras corriam pelo seu rosto esguio procurando onde se esconder.

– Muito prazer. – disse o homem, estendendo a mão para Carlos. – Sou Antônio Maxwell Ferreira Filho. O colecionador das obras do mestre Nicolai expostas aqui.

– Carlos Silva. – respondeu apertando firme a firme mão de Antônio.

– Você vê a perfeição nas formas e cores? – perguntou Antônio apontando para o quadro com a cabeça.

– É um belo quadro. – disse Carlos.

– São quase reais. Cada imagem é uma obra única para o mestre Nicolai. Uma de suas características mais marcantes.

Carlos olhou os convidados pintados no quadro. Nobres, cossacos e plebeus russos do século XVII. Um casal de enamorados bebendo vinho; três homens bêbados com canecas nas mãos; uma mulher com uma taça vazia e dois casais comendo carne de leitão. Cada personagem na pintura tinha uma expressão singular. Alegria, tristeza, indiferença. De alguma forma a cena parecia familiar, mas agora que estava diante dela não sentia mais a excitação tomar suas veias. Os rostos não pareciam estranhos e, ao mesmo tempo, não lembravam ninguém conhecido. Pensou como ou por que sonhava com esse quadro, ou o que nele estava representado, há tantas noites. Concluiu apenas que não comentaria com um estranho sobre suas neuroses. Levantou os olhos e fixou no anfitrião. Era a única imagem com o rosto borrado.

– Por que o homem perto da porta não teve o rosto pintado?

Antônio, com um leve sorriso nos lábios, fitava Carlos pelo canto do olho.

– Quem sabe? Talvez seja o motivo para o nome da obra. – respondeu Antônio. – O mestre Nicolai passava semanas pintando um único item de suas telas. Quando gostava das pessoas, as pintavam com joias e felizes, quando não, as pintavam tristes ou até deformadas.

– Esse homem perto da porta deve ter feito muita raiva ao Nicolai. – comentou Carlos, displicentemente.

Antônio consentiu com a cabeça.

– Bom. O museu tá perto de fechar e não quero ficar preso em nenhum engarrafamento. – prosseguiu Carlos virando-se para Antônio. – Vou embora tentar descansar um pouco. Tive uma semana horrível.

– Foi um prazer receber sua visita. – falou Antônio, apertando mais uma vez a mão de Carlos. – Volte para ver as outras telas.

A pinacoteca ainda estava cheia quando Carlos saiu a passos largos. A pintura não fez o efeito que pensara, e não trouxe respostas, mas agora, já do lado de fora, ficava imaginando o que as pessoas no quadro poderiam ter feito. Parou por um instante para contemplar o sol que se escondia no horizonte. Não tinha pressa em ir para casa. Não havia ninguém a espera. Olhou alguns casais apaixonados sob as árvores e voltou a contemplar o pôr do sol. O mormaço fez sua testa suar. Ao longe escutava as buzinas de um típico fim de tarde. Já visualizava as lanternas se amontoando nas mal tratadas ruas. Não adiantava sair agora.

– Recife é um inferno. – pensou enquanto procurava o refúgio de um antigo carvalho. Permaneceu olhando o horizonte até anoitecer.

– Romanov?

Virando-se lentamente, Carlos viu uma garota de sotaque forte, europeu, sorrindo com as mãos as costas e balançando o corpo timidamente para ele.

– Alexei Romanov? – continuou a garota.

– Não. Você deve estar me confundindo com alguém. – respondeu Carlos, sorrindo sem que fosse preciso pensar em sorrir, e estendeu a mão para a garota – Me chamo Carlos.

Ela segurou a mão dele.

– Ayla.

Por um momento, ambos se olharam alheios ao mundo ao seu redor. Ela era tudo o que Carlos sempre sonhou. Magra, de pela alva, cabelos longos e negros, um sorriso cativante com um olhar doce e sincero. Não demorou para que os dois começassem a conversar sobre casualidades. Era o começo do outono.

Outro sonho acordou Carlos no meio da noite. Via apenas o rosto borrado do anfitrião pintado no quadro e, quando tentou correr, não conseguiu.

Sentou na cama como de costume tateando as próprias pernas. Levantou-se e ignorou o notebook que permanecia eternamente ligado. O sonho sempre lhe tirava o sono, mas hoje pensou apenas na atraente garota que conheceu e que encontraria no dia seguinte. Descobriu que ela era filha de mercadores do leste europeu – Turquia – e que trabalhava com vendas e exportações.

Apesar do cansaço das noites mal dormidas Carlos sentou-se junto à janela. O céu estrelado estava sem nuvem e mesmo de noite o calor era intenso. Uma sirene soou distante, o que era bem normal, e a rua estava deserta a não ser por alguém que remexia o lixo do prédio.

Por alguns instantes Carlos ficou olhando o pobre infeliz catando algo para comer. Sentiu uma pontada de pena até perceber que se tratava do mesmo mendigo que o abordou pela manhã. Seu sangue gelou. Seria coincidência ou ele o estaria seguindo?

O mendigo olhava constantemente para os lados – os mesmos olhos arregalados e atentos que fitaram Carlos na padaria –, pegou algo em meio ao lixo e o enfiou na boca. Sentou-se, atento a tudo e a todos, recostado entre os despojos amontoados. Carlos afastou-se da janela e fechou a persiana, mergulhando na penumbra da sala. Sentando-se pensativo na poltrona, só voltou à cama quando o dia raiou.

O contato com Ayla o transformou em outra pessoa. Passou a fazer a barba diariamente; vestir roupas alinhadas; tratar o cabelo. Quando se olhava no espelho ainda via um semblante cansado, mas de certa forma feliz. Apertou levemente a gravata – sem exageros – e cumprimentou os vizinhos enquanto pegava o elevador. Uma mudança que atraia comentários até em seu trabalho.

Todas as noites Carlos e Ayla se encontravam para jantar. Podia ser em um bom restaurante ou em um quiosque na praia. Os dois sempre estavam juntos após o ocaso e não demorou a iniciarem um romance.

Os sonhos com a festa foram diminuindo à medida que os dias passavam. Fato atribuído também às noites acordadas conversando com a empresária turca sempre à luz do luar. Por volta das quatro da manhã, Carlos estacionava seu carro em frente ao apartamento da garota, descia e abria a porta da amada, estendendo a mão para ajudá-la a sair do veículo, como quem ajuda uma princesa em uma carruagem.

A delicada garota sempre descia e agradecia com uma reverência, o que fazia um leve sorriso surgir em seus rostos quando se olhavam.

– Ainda dá tempo de irmos para minha casa. – falou Carlos – Amanhã... mais tarde tem um aniversário de um amigo e eu gostaria que você fosse comigo.

– Não dá. Eu até gostaria... tenho que trabalhar amanhã.

– Todo domingo?

– Eu sei... você não entende. Sei que é difícil de entender. Eu tenho que concluir uma compra. Vão buscar... eu não consegui fechar o negócio ainda. E nem sei se vou conseguir.

Ayla desviou o olhar.

– Não, não entendo. Não sei que trabalho é esse que você nunca está disponível de dia. Não sei que produto é esse. Acredite, o que eu mais queria era entender.

A garota começou a soluçar, levando as mãos ao rosto.

– O que eu mais queria era envelhecer com você. – falou quase sussurrando.

O olhar fechado de Carlos logo se esvaiu em um tímido e sincero sorriso. Pela primeira vez em sua vida sentia algo assim por alguém. Acariciou suavemente o rosto banhado de lágrimas da garota que o mostrou algo verdadeiro. Não queria vê-la chorar.

Levantou o rosto dela e olhou em seus olhos – permaneceriam assim por dias, talvez décadas – até se abraçarem afetuosamente.

– Eu sempre vou esperar por você. – disse a menina na segurança dos braços de Carlos.

Abraçaram-se mais forte e beijaram-se. Beijaram-se como se fosse o seu último beijo ou como se fosse o primeiro de muitos que viriam.

Silenciosamente eles se afastaram. Ayla virou-se e seguiu ao apartamento sem olhar para trás. Os olhos mareados.

Ele não queria vê-la chorar.

Recife estava agradavelmente fria naquele início de manhã. Carlos dirigiu tranquilo ainda sentindo os braços de Ayla o envolvendo. Uma música antiga ajudava a criar um clima propenso à recordação. Chegou ao prédio onde morava e, enquanto esperava o portão automático abrir percebeu, no lixo depositado na rua, o mesmo mendigo que procurava alimento entre os dejetos.

Dessa vez não sentiu medo. Suas noites não seriam apagadas por um estranho que ficava rondando sua porta. Desceu do carro encarando o homem em farrapos que vinha em sua direção.

– Por que está me seguindo? – perguntou com veemência.

– Eles querem a gente. As sombras querem levar a gente.

Um carro passou numa rua ao fundo e projetou a sombra dos dois nas paredes do prédio e, antes que Carlos percebesse, o homem mal tratado a sua frente empunhava duas facas de cabo brilhante.

– Não. – gritou o mendigo – As sombras... elas não vão levar Pitre para a sala escura.

Assustado, Carlos tentava voltar ao carro quando o mendigo avançou em sua direção com uma das facas em riste.

– Tome. – disse o homem em farrapos – Não deixe eles levarem a gente.

Carlos nada respondeu.

– Se eles pegarem você, você pode fazer assim. – continuou, colocando a ponta da faca no próprio peito. – Eles não podem levar o que não tem vida.

O mendigo olhou nervoso para os lados e correu pela rua deserta até sumir na curva adiante, deixando uma faca de lâmina prateada no chão.

De alguma forma, as palavras do mendigo ecoaram pela mente de Carlos por todo o domingo. A faca de prata repousava ao lado de restos de comida chinesa enquanto ele ligava insistente para Ayla. O dia tornou-se insuportavelmente quente. Não havia retorno das ligações e, para piorar, descobriu que nenhuma empresária turca morava no apartamento onde sempre a deixava. O sol foi se pondo e nuvens pesadas começaram a se avolumar no céu, deixando o apartamento de Carlos em cortinas escuras.

Jogado no sofá, Carlos ouviu batidas à porta. Ignorou, afinal, não queria falar com nenhum vizinho.

– Romanov.

A voz era familiar.

Com um salto ele alcançou a porta e a abriu com rapidez. Parada a sua frente, e com um olhar triste, estava a garota que o proporcionou os melhores dias de sua vida, que preenchera um vazio até então inacabável. Ficaram se olhando por algum tempo em silêncio.

– Eu não consegui realizar a compra que devia. – disse ela rompendo a tensão.

Carlos selou os lábios de Ayla com os dedos.

– Eu sempre vou esperar por você. – falou acariciando o rosto da amada.

Os olhos da garota voltaram a encher-se de lágrimas e sua expressão era de uma discreta alegria. Uma nascente felicidade que se refletiu, como um espelho, no rosto de Carlos. Parados ao umbral da porta, seus lábios se encontraram.

Pela primeira vez em meses, Carlos teve uma noite de sono tranquila, sem sonhos. Acordou quase no final da tarde e não se importou em perder o dia de trabalho. Só queria a companhia da mulher especial que se entregou a ele na noite anterior. Acordou sozinho na cama. Procurou-a pelo claustrofóbico apartamento. Aguardou as poucas horas até o anoitecer se arrastarem, desejoso que ela chamasse novamente a sua porta.

As horas viraram dias que viraram semanas.

Havia vivido algo tão intenso que não conseguia esquecê-la, mesmo após essas horas que viraram meses sem nenhum contato. Os sonhos retornaram às noites de Carlos. Timidamente nas primeiras horas e mais intensos nos últimos meses. A mesma festa, as mesmas pessoas, Ayla sorrindo para ele. O mesmo anfitrião de rosto borrado. A vontade de correr e não conseguir.

As estações mudaram trazendo novamente o outono. As noites de insônia forçada trouxeram também velhos hábitos. Voltou a ler as manchetes nos jornais. Leu sobre preços que subiam, desemprego que não diminuía, gente que morria. Leu atentamente a chamada da página policial. “Homem esfaqueado no peito encontrado em um canal”. A arma usada no crime era familiar, uma faca de lâmina prateada. Passou-se tanto tempo, mas como por sugestão, certas palavras voltaram de imediato a sua mente.

“Não deixe eles levarem a gente. Eles não levam quem não tem vida”.

Carlos levantou-se espantado. Havia esquecido o mendigo que disse tais palavras. Que não rondava mais sua residência nem o abordava na rua. Só que lá estava ele, na foto, com a própria faca enfiada no peito. Carlos lembrou que eram duas.

De imediato ele começou a procurar pela casa, arrastando móveis e caixas, o que deve ter incomodado os demais vizinhos, até achar o agora macabro presente ofertado pelo homem que jazia morto em um canal.

Voltou à manchete para comparar os itens. Idênticos. Antes que Carlos pudesse pensar em possíveis implicações penais, percebeu uma chamada para outra página. A exposição de Vlastinov Nicolai estava de volta ao Recife.

A pior parte do dia foi ficar preso ao enfadonho trabalho com gente falando de planilhas e tabelas. Carlos não tirava da cabeça a imagem do mendigo morto, “qual era o nome dele?”, seu possível envolvimento, os sonhos com uma festa retratada em uma pintura, a delicada garota que o aqueceu por uma estação.

Tais fatos poderiam ser apenas coincidência se, de certa forma, não tivessem uma ligação em comum com a exposição. Talvez, no subconsciente de Carlos, ele próprio estivesse alheio a tudo e a todos, e quisesse apenas recriar o momento em que conheceu, sua ainda presente, Ayla. Saiu no meio de uma reunião sem responder ou ouvir ninguém. Tinha destino certo e não poderia esperar mais.

Carlos passou correndo entre pessoas e painéis. O caminho ladeado de palmeiras e os leões que adornavam os portões do jardim da pinacoteca não foram percebidos, assim como não percebeu que a porta dupla de carvalho envelhecido, que dava acesso à sala de mármore negro iluminada por tochas, estava em outra parede. Só parou diante da Pintura inacabada de Nicolai.

As sombras tremulavam com as chamas. O silêncio era sepulcral, assim como o frio. Olhou mais atendo e percebeu que algumas cadeiras vazias tinham nomes gravados. Imediatamente lembrou-se do nome do mendigo. Estremeceu quando leu Pitre em uma das cadeiras. Seu sangue gelou quando leu Romanov em outra. Olhou fixamente para a mulher na próxima cadeira. Uma mulher solitária com uma taça vazia. Ayla. Seu corpo tremeu, quase desmaiando. Viu algo nas sombras. Elas pareciam vivas.

Ofegante, saiu correndo derrubando alguns visitantes. Para onde olhava via vida nas sombras. Algo estava errado. Não podia ter amado uma pintura por todo esse tempo.

Chegou ao apartamento antes do anoitecer. Subiu pela escada todos os onze andares. Sua cabeça girava, tinha que fugir das sombras. Trancou-se em casa e correu para o quarto girando a chave na porta. Avançou sobre a janela para fechá-la quando viu o sol descendo no horizonte. Por uma fração de segundo, que pareceu uma eternidade, Carlos lembrou-se de quando conheceu Ayla. Do céu pintado de vermelho rubro enquanto o sol se escondia lentamente e da voz suave da garota dizendo...

– Romanov.

A voz era familiar, mas não era Ayla.

Carlos virou-se para a voz e encontrou Antônio à porta. Lembrou-se das palavras de Pitre e da faca prateada largada sobre a mesa no outro cômodo. Com olhos arregalados, cabelos descoloridos pelo medo, Carlos abriu a janela e sentou-se na borda.

– Vocês não... não vão me levar. – disse ofegante. – Não vão.

– Nós não vamos levar ninguém, Romanov. – falou Antônio, pausadamente – Estou aqui apenas para garantir o seu livre arbítrio. Se preferes pular vá em frente, pule. Não vou impedir, apesar de poder fazê-lo. Vim aqui apenas para lembrá-lo das noites que tivestes e que poderias continuar tendo. Lembrá-lo que sozinho vivias num inverno cinzento, mas lembrá-lo também que tivestes um outono em tua vida. Nunca alguém ficou ao teu lado e quando encontras esse alguém deixas que ela se vá. Preferes dar ouvidos a uma pessoa que se suicidou e que você mal conhecia a compartilhar teus momentos com uma mulher que sempre te amou, que sempre te esperou. Que aceitou passar por horríveis suplícios para estar ao seu lado. Se queres pular basta levantar-se e dar um passo à frente. Mas seja qual for tua decisão, este será o teu último pôr do sol.

Carlos olhou para Antônio e em seguida para a queda que o aguardava. "Que sempre te esperou.", essas palavras invadiram sua mente. Fechou os olhos lembrando-se de Ayla.

Na pinacoteca do Estado, em São Paulo, uma estudante de artes admirava as obras de um pintor russo não muito conhecido. Sozinha em uma sala de mármore negro, ela vislumbrava quase em transe cada detalhe: faces, cor, volume, tudo a chamava atenção. O casal de enamorados bebendo vinho, os três homens bêbados com canecas nas mãos, os dois casais comendo carne de leitão e, principalmente, o casal onde o homem sorridente, com as pernas amputadas, enchia a taça vazia de uma bela mulher que o olhava apaixonada.

– O mestre Nicolai sempre retratava na pintura o que sentia pelas pessoas.

A mulher olhou para o lado e viu um homem alto e magro à Armani, Raffaello Gold e Ferragamo. Cabelos negros como os dela e pele ligeiramente pálida. Não o ouviu chegar, mas se agradou da companhia.

– Quando alguém o fazia feliz ele pintava essas pessoas felizes, com joias e outros detalhes. Quando alguém fazia algo que o mestre não gostava, ele os pintava tristes ou até com deformidades. – continuou o homem, apontando para o quadro na direção do amputado.

– Esses dois parecem felizes. – disse a mulher – Parecem que nasceram um para o outro.

O homem ao seu lado parou pensativo por uma fração de segundo.

– Ele é o Barão Alexei Romanov. Saiu da Rússia no século XVII negando um convite do mestre Nicolai para uma festa. Ela é a Baronesa Ayla Romanov, filha de comerciantes turcos. O mestre quando soube da rejeição, expressou seus sentimentos na tela.

A mulher olhava emocionada para o casal.

– Desculpe minha falta de educação. – disse o homem, estendendo a mão à mulher – Sou Antônio Maxwell Ferreira Filho. O colecionador das obras do mestre Nicolai expostas aqui.

– Katarina Nogueira. – respondeu ela apertando a firme mão de Antônio. – Katarina com “K”, igual ao nome escrito naquela cadeira na pintura.