AS BRUMAS DE GRAMADO

A noite caiu e, com ela, as brumas pousaram de vez sobre a cidade de Gramado. A cidade, tão charmosa e aconchegante, ficou escondida sob a névoa.

Tati não tinha a menor ideia de como estava o tempo lá fora quando decidiu ser hora de fechar a pequena loja de perfumes que tinha bem no centro da cidade. Era inverno e, apesar de ser alta temporada, não havia quase ninguém nas ruas. Turistas e moradores optaram pelo calor dos hotéis, pousadas e lares, e Gramado ficou praticamente vazia. A neblina, aquela altura, já era intensa e Tati respirou fundo tentando se acalmar.

Afinal, disse para si mesma, nada acontece nesta cidade.

A jovem trancou a porta da loja e saiu caminhando apressada pela calçada. Tati puxou o capuz sobre a cabeça. Atravessou a avenida principal da cidade e pegou uma rua lateral. Precisava seguir ainda por mais uns dez minutos antes de chegar em casa. Era um trajeto relativamente curto quando a noite estava clara e enluarada.

O que não era o caso, naquele momento.

O velho temor, aquele pânico que sempre lutara para derrotar e se encontrava adormecido há algum tempo, provocou uma aceleração no seu coração. Tati respirou fundo algumas vezes, técnica que lhe ajudava a superar o medo. Não havia porque temer. A cidade era relativamente tranquila, sem relatos de assaltos, violência e roubos. Era só seguir em frente.

Tati fincou as botas no chão com força. Começou a se imaginar chegando em casa, tirando a roupa e entrando na banheira. O marido, caminhoneiro, estava em viagem pelo nordeste do país e não voltaria tão cedo. Ela detestava ficar sozinha, mas só de pensar na água quentinha, se animou.

Não havia percorrido nem 50 metros quando um uivo não muito distante fez com que Tati parasse na calçada, assustada. Um uivo? Como assim? Talvez fosse um cachorro, pensou ela. Um cachorro dos grandes, no entanto. Tati voltou a caminhar, um pouco mais rápido.

Criou coragem e, devagar, olhou para trás. A bruma a envolvia. Não era possível enxergar três metros para frente, para trás e para os lados. Os postes davam um alívio e iluminavam alguma coisa. Mesmo assim, a sensação era angustiante. E óbvio, Tati não viu nada suspeito. O uivo cessou.

Ela foi em frente. O coração batendo mais forte agora. Tati escutou passos. A princípio, achou que fossem os seus próprios. Mas não. Os passos eram mais fortes, passadas firmes, decididas. O medo ameaçou voltar e Tati sabia que, caso se entregasse a ele, estaria perdida. Ignorou as pernas bambas e caminhou tão depressa quanto podia.

Tati olhou para trás mais uma vez. Somente os olhos estavam visíveis. O restante do rosto estava encoberto pelo capuz. Pareceu que, em meio à bruma, um vulto com uma capa preta dançando ao seu redor, lhe seguia, despreocupado, pela calçada. Aí o medo veio com tudo. Um uivo foi o fator decisivo para que Tati começasse a correr. A bolsa, grande, atrapalhou seus movimentos. Quanto mais rápido corria, mais tropeçava nos próprios pés. Ofegante, Tati se viu obrigada a voltar a caminhar. A impressão que tinha era que quanto mais rápido ia, mais distante sua casa ficava.

Uma sombra estava parada na calçada do outro lado da rua, alguns metros à frente. Tati diminuiu os passos. Em meio àquela maldita névoa, ela visualizou um homem. Sim, era um homem.

Ela quase parou, um misto de sensações que variava do tormento ao fascínio. O homem a encarava do outro lado. Tinha cabelos compridos, negros, que alcançavam os ombros. Os olhos eram escuros, magnéticos. Era difícil não olhá-lo. Era tão bonito que Tati chegou a se perguntar se ele pertencia ao mesmo mundo que ela.

Mas o lado racional de Tati a mandou prosseguir. Ela não podia parar na rua deserta, enevoada, somente porque se encantara por um homem a quem nunca vira na vida.

⎯ Quem é você? Qual seu nome?

Tati não formulou aquelas perguntas em voz alta, porém soube que o homem as escutou. Naquele momento ela estava passando por ele, ambos em calçadas opostas. Quando começou a se perder naquele olhar, Tati desviou o seu. Havia algo de errado ali. Mas era um erro que gostaria de cometer.

Não era certo, disse para si mesma. Era casada, o marido estava trabalhando para ajudar no sustento da casa passando tantos dias fora. Não era justo deixar-se encantar por um desconhecido qualquer. Tati caminhava não tão depressa agora, apurando os ouvidos tentando escutar os passos dele. Contudo, não os escutou mais. E também não teve coragem de olhar para trás. Medo e tesão eram seus sentimentos predominantes agora.

E era uma sensação tão boa.

Nem o uivo que escutou outra vez foi o bastante para amedrontá-la. Seus passos eram algo incertos. Se olhasse para trás e se deparasse com o desconhecido, não chegaria em casa. Iria embora com ele, seja lá quem fosse, bandido, psicopata, algum ordinário qualquer.

A sua casa já era visível. Estava a poucos metros, o jardim em meio às brumas. Tati pegou a chave de dentro da bolsa. Trêmula. Não queria olhar para trás. Ah, mas se olhasse? Só um pouquinho…

Um toque firme no seu braço fez com que ela desse um grito e pulasse para o lado. Theo a encarava, entre sorridente e surpreso.

⎯ Amor, desculpe. Não quis lhe assustar.

⎯ Oh, Théo. É você? - Tati sorriu, constrangida.

⎯ Quem mais seria?

Ela o abraçou com força. Por sobre os ombros do marido, seus olhos buscaram a rua, a calçada, os jardins. Theo jamais saberia que no meio daquele abraço, Tati procurava contato visual com um outro homem. Mas não o viu mais.

⎯ Ninguém. Eu só estava assustada em caminhar em meio a esta bruma infernal.

⎯ Cheguei faz pouco. Quis lhe fazer uma surpresa.

⎯ E fez, meu amor. Quanta saudade eu senti.

O casal entrou na casa e foi direto para o quarto. Mais tarde, enquanto Theo dormia, relaxado, na cama, ela vestiu seu robe, levantou e foi até a sala. Tati respirou fundo e abriu a porta da frente. O frio congelante quase a paralisou.

Um movimento no ar chamou sua atenção. Alguma coisa a puxou para fora, com força. Tati não teve tempo sequer de dar um grito.

Seu corpo foi encontrado na manhã seguinte em meio a um matagal há dois quilômetros de casa.

O que mais intrigou a polícia eram os dois furos pequenos bem na sua jugular. E o corpo sem sangue algum.

Maria Caterinna
Enviado por Maria Caterinna em 02/12/2022
Código do texto: T7663189
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