Cirurgia

CRACK!!!

O som da articulação quebrando a despertou de um torpor semiconsciente. Por quanto tempo estivera assim?

Ai, o paciente!

Voltou a si sendo tomada de uma intensa angústia. À sua frente o paciente tinha os olhos arregalados com o endoscópio boca à dentro. Verificou rapidamente se havia alguma lesão no pescoço. Nada. Olhou para o paciente assustado. Era a cara normal dos pacientes durante a endoscopia. Não parecia ter nada demais. Será que cochilara? Terminou o exame. Nada demais, só um esôfago irritado por conta de um refluxo. Com remédios sararia.

Retirou o endoscópio com cuidado. Verificou se havia alguma lesão externa, algo que justificasse o barulho. Poderia ser também algo no equipamento, ou um estalo de madeira. Ou descarga elétrica. Ficou receosa de perguntar ao paciente se ele ouvira o barulho. No fim, quanto este já tinha se recomposto, desistiu dos receios e perguntou.

- Você ouviu um barulho de algo quebrando durante o exame?

- Não. Mas também se tivesse quebrado algo, acho que não ia perceber nada, com aquele tubo garganta abaixo. Que coisa que dá mais nervoso na gente. Porque, quebrou alguma coisa? O paciente ficou um pouco preocupado.

- Parece que não. Deve ter sido um estalo de algum osso meu mesmo - Percebeu que estava já trabalhando à 12 horas, e a tensão poderia explicar a compressão do osso e o estalo, e a pescada durante o exame. Precisava dormir melhor aquela noite. Terminando, direto pra casa e dormir.

Despediu do paciente. Graças a Deus era o último. Já eram nove horas da noite. Não aguentava mais. Já fora o tempo dos plantões de 12 horas seguidas. Não tinha mais estrutura pra isso. Ainda mais pra exames seguidos. No plantão pelo menos pode variar, ou tem algum momento de descanso. Credo. Tinha de diminuir o ritmo. Arrumou as coisas. Limpou o equipamento com preguiça. Queria deixar sujo mesmo e ir pra casa descansar. Não, era melhor limpar tudo antes. Não podia confiar essa função a alguém que não conhecia o aparelho. Poderia estraga-lo. E era rápido.

Enquanto limpava escutou um zunido. Olhou em volta e não viu nada. Parecia o barulho de um mosquito, ou um pernilongo. O barulho sumiu. Procurou pelo inseto. Nada. A sala estava clara, daria para ver. Olhou ao redor. Mexeu alguns objetos para ver se fazia voar o mosquito. Nada. Não voou nada. Nem barulho. Ia saído da sala. Apagou a luz, saiu e fechou a porta. Ficou do lado de fora esperando para ver se o som voltava. Abriu a porta de supetão. Nada. Sem som. Devia ser só mais um som do cansaço, tipo o som da articulação quebrando.

Seguiu pelo corredor deserto do terceiro andar do hospital. Mais cedo era cheio de pessoas transitando ou esperando consultas. Àquela hora, o movimento se concentrava no pronto atendimento, no primeiro andar. Resolveu descer pelas escadas. Descer só dois lances. Tudo bem. No primeiro andar estava mais movimentado. Mas nada de mais. Encaminhou-se para a portaria. Tudo ok. Foi cumprimentar o porteiro e ver se tinha algum aviso.

- Nada não Doutora. Tudo tranquilo hoje.

Resolveu voltar um pouco no corredor para tomar água no bebedouro. Agora que se dera conta de que não devia ter tomado água já há umas quatro horas. Desde que comera algo. A água desceu pela garganta dando uma sensação estranha, como se não quisesse descer. Como se o corpo, sedento, ainda assim, recebia aquela água de má vontade. Parou e olhou para a porta do hospital. Era só ir embora. Só ir embora. Por hoje mais nada. Foi andando em direção a porta de forma automática, sem pensar no que estava fazendo.

- DOUTORA!!! Ajuda aqui, precisa de ajuda lá em cima. Um paciente teve problema lá em cima. Precisa de mais médico lá.

- Que? Como assim? – Ainda estava voltando do estado de automatismo semi consciente no qual estava, para ir embora.

- O paciente, tá com problema lá, pediram pra mandar mais médico lá pra ajudar.

- Onde? Com quem que tá?

- Estava lá sala do Dr. Eranir. Parece que enfartou, sobe rápido.

- Subiu ainda sem entender direito o que estava acontecendo. Ao chegar no terceiro andar já viu o movimento e entrou na sala. Dr. Eranir estava com mais pessoas, e com o paciente em uma maca. Ao vê-la falou aflito – Precisa operar agora, se não morre. Não dá para transferir não. Preciso de ajuda.

Foram levando o paciente para a sala de cirurgia. Ela não era totalmente adequada para a cirurgia cardíaca ainda. Era uma sala nova, e precisaria improvisar com alguns aparelhos que não eram totalmente adequados. Colocaram o paciente na mesa de cirurgia. Dr. Eranir mesmo preparou a anestesia e foram chegando outras pessoas e começaram a cirurgia.

Estava um tanto quanto bagunçado, tudo corrido, ela ia seguindo as instruções do Dr. Eranir e o auxiliando nos procedimentos da cirurgia. Estavam pessoas novas lá. Ela não conhecia alguns dos que auxiliavam. Mas estranhava que havia gente demais. Devia ser por causa do susto, e para ir adequando os equipamentos. Mas estava tão cansada que nem questionou. Com as primeiras ações conseguiram estabilizar o paciente, mas com a pressão e os batimentos ainda muito altos. Ainda estava sob risco. A tensão era enorme, precisavam descobrir coisas na sala, entender como usar alguns dos equipamentos novos. Teria sido melhor tentar conter e encaminhar para um lugar mais estruturado. Mas Dr. Hernani achava que ele morreria antes. E de fato, morreria.

Identificaram que uma artéria havia se rompido. O paciente era um homem de meia idade. Pelo jeito que Dr. Hernani falava era amigo dele. – “Anda homem, segura as pontas aí. Morre na minha mão não. O que é que vou falar pra sua mulher”. Ele estava tenso, sabia que era muito grave. Todos estavam tensos, e cansados. Estavam exaustos.

... O som do mosquito de novo. Como? Na sala de cirurgia?

- Dra. Preciso que me ajude aqui com para suturar essa veia. – Sua atenção se voltou para a cirurgia. Ia fazendo o que ele mandava, de forma automática. Estava tão cansada, não questionava, só fazia o que Dr. Hernani lhe indicava. Nunca tinha participado de uma cirurgia cardíaca. Em teoria sabia o que estava fazendo, e já tinha experiência em cirurgias de outros tipos, mas em cirurgia cardíaca era a primeira vez. Outro zumbido... não, era um equipamento que começara a zumbir de forma estranha. Dr. Hernani olhou para o equipamento sem entender e um dos enfermeiros que ajudavam foi olhar o que era. O zumbido parou por si só, sem a intervenção de ninguém. O paciente começou a se mover lenta e repetidamente na mesa cirúrgica. Dr. Hernani olhou para os instrumentos e depois para o paciente sem entender. Nos instrumentos estava tudo normal. Precisou tomar cuidado, os movimentos atrapalhavam a cirurgia. Eram movimentos leves e lentos, mas ainda assim atrapalhavam.

A cirurgia ficou mais lenta. Já estava ocorrendo há uma hora e meia. Estavam todos esgotados. O paciente parecia estável. Continuaram. Mais lentamente, mas continuaram. Precisavam resolver o problema. Ao que parece, haviam complicações. Outros pequenos problemas somados ao principal na artéria que saia do coração. Precisavam ser resolvidos um por um primeiro. Mas estavam sendo resolvidos.

O som do zumbido voltou. Ela olhou para o aparelho para ver se era ele de novo. Ninguém mais olhou. Era o zumbido do mosquito. Parecia estar a rondando. Ela olhou para o lado, o procurando. Ficou um pouco zonza. Dr. Hernani lhe pediu para fazer algo que ela fez de forma automática, sem entender bem o que era. O mosquito zumbiu mais próximo. Ia perguntar se eles estavam vendo onde estava o mosquito, mas estavam todos concentrados na cirurgia. De repente...

O som dos aparelhos a acordou do semi transe, o paciente estava começando a ter uma convulsão. E logo depois seus batimentos pararam. Trouxeram os equipamentos para ressuscitação. Começaram os procedimentos. Estava muito cheio de gente, muito tumultuado, ela ficou zonza novamente. O barulho das vozes e dos equipamentos estavam fazendo tudo começar a rodar. Dr. Hernani pediu sua ajuda mas ela não entendeu o que ele falou. Estava com muito barulho, muita gente, muita confusão, muito cansaço... ela não entendeu o que ele pediu...

Um cheiro de éter invadiu o ambiente. Seu estômago embrulhou. O cansaço, a tontura, a confusão de pessoas. Se sentiu nauseabunda. Ia sair da mesa de cirurgia.

- Calma, só me escuta, concentra. Tudo bem?

Respirou fundo, relaxou um pouco o corpo, se concentrou na cirurgia novamente – Tá. Tá bem, vamos lá. O que preciso fazer?

- O que precisava ser feito foi lhe sendo dito, e ela foi fazendo o que lhe pediam. Embora de forma automática, estava mais calma agora. Parecia ter mais gente ainda na sala. Devem ter vindo trazendo os equipamentos para a ressuscitação. Estavam todos trabalhando. Atentos na cirurgia. O paciente foi estabilizado. Ela continuou fazendo o que lhe pediam. Mas estava muito cansada. Não via mais nem o tempo passar.

De repente não conseguia mais mexer a mão.

- Dr Hernani, minha mão, não consigo mexer. Acho que foi uma câimbra, não sei o que aconteceu.

Dr. Hernani, a princípio não a escutou, estava concentrado na cirurgia. Os outros também. Agora haviam menos pessoas. Já haviam levado os equipamentos que não precisavam para fora.

Ela repetiu que a mão havia parado de se mexer.

- Oi? Deu câimbra? Pode deixar, agora já está acabando. Consigo terminar daqui. Descansa um pouco.

Foi se sentar em uma cadeira inda na sala de cirurgia. Estava zonza, e com a mão dormente. O cheiro de éter tinha diminuído, e o tumulto também. Mas estava cansada demais, queria só deitar e dormir. Procurou se aprumar e respirar fundo, se não dormiria ali mesmo. Procurou se ainda conseguia ouvir o som do zumbido.

Nada. Nem do aparelho nem do mosquito.

Ficou por lá ainda mais um pouco, até Dr. Hernani, falar que havia terminado a cirurgia.

- Obrigado pela ajuda. Sem você acho que ia perder meu amigo hoje.

- Uai, estamos ai é pra isso. Precisa que eu faça algo mais.

- Não, vai pra sua casa descansar. Agora é acompanhar e manter. E já tá vindo mais gente pra ajudar. Vou ficar mais um pouco.

Queria dormir ali mesmo. Aprumou-se novamente. Saiu da sala de cirurgia e ligou para o marido e pediu que ele viesse busca-la. No carro cochilou em menos de um minuto. Morava perto do hospital, mas foi suficiente para dormir uns cinco minutos. Sua mão já se mexia, mas ainda doía. Subiu para o quarto, precisava tomar banho. Não podia se deitar saindo da cirurgia sem tomar banho.

Pediu uma cadeira da varanda, e tomou banho sentada. Quase cochilou no banho e caiu da cadeira. O marido estava lá pra ajudar e a segurou. Ao sair se deitou e dormiu imediatamente.

Um sono sem sonhos.

Sanyo
Enviado por Sanyo em 25/07/2023
Código do texto: T7845420
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