O ATO

O ATO

Quando descobrimos que o sentido da vida é amar ao próximo e a nós mesmos entendemos quanta besteira fizemos na vida. E o pior é que quando envelhecemos ainda continuamos a fazer besteira. Raimundo leiteiro envelheceu e parece que não aprendeu com os erros. Ele pôs um sócio no seu negócio e agora o cidadão passou a perna nele. Raimundo chegou a sua casa com os nervos na flor da pele e sua mulher o dissuadiu de fazer qualquer besteira. “Deixa isso para lá Raimundo entrega tudo nas mãos de Deus”. Raimundo se esqueceu dos malfeitos e foi se dedicar a sua paixão – A lira de Campos. O homem tocava na lira a vinte anos.

Raimundo perdeu o negócio e agora andava pelas ruas de Campos em busca de um emprego. O moço bateu pernas até cansar e o rapaz fez isso em frente à rodoviária. Lá estava um rapaz que tinha uma roça no Catu, estado da Bahia e próximo a Campos: “Eu arrendo o sítio para você, meu amigo”. Raimundo ficou tão alegre que foi para casa contar a mulher.

- Passei a mocidade toda cuidando de roça. Eu tiro de letra. Vou fazer a roça produzir, num é Marcela? Marcela, a mulher de Raimundo, respondeu ao marido com muito otimismo:

- É verdade. Você vai ganhar dinheiro Raimundo e eu vou lá ajudar você!

- É verdade mulher? Você vai?

- Ora, se vou! Vai ser legal! O casal se uniu para a nova causa e foram preparar as coisas para passar um tempo no Catu. Então, o casal passava a semana na roça e nos finais de semana e feriado Raimundo vinha tocar na lira.

Antes de entregar a chave da roça o proprietário fez algumas colocações que não mudaram o ânimo de Raimundo: “Num é para você ficar com medo, mas, na lua cheia a gente escuta umas vozes falando pelos campos aí. Mas, num tenha medo não, fique firme. Para falar a verdade Raimundo nem prestou atenção ao homem e se foi para o Catu. Ao chegar no Catu marido e mulher limpam tudo e abrem as portas da casa conforme a tradição: “É abrir as portas e varrer de dentro para fora chamando por Ogum”.

O primeiro ano passou com as nuvens do céu. A roça produziu e Raimundo comprou três vacas leiteiras e começou a negociar com leite. Mas, o que estava mesmo dando certo era o comércio de hortaliças. O casal vendia na segunda e no sábado com isso economizou o bastante para comprar um saxofone novo para Raimundo.

A roça, as hortaliças e verduras, a lira e a vida que tinha com sua esposa levou Raimundo ao clímax de uma felicidade que jamais havia tido em todos os 63 anos. Já velho, um pouco cansado, mas, não desanimado Raimundo estava pronto para mais lutas e conquistas. Sua mulher estava sempre ao lado dele lhe motivando e dando lhe carinho:

- Raimundo, amanhã na feira, você me lembra de ir à casa de Maria José. Ela pediu para mim passar lá.

- Não se preocupe, não, que eu te lembro. No outro dia, o casal aproveitou o sol e desceu para Campos. Em Campos eles foram para o conjunto Walter Franco onde Maria José residia. As duas conversaram a manhã inteira. Quando deu 12 horas as duas foram almoçar e aí Maria José conta o sonho que teve com Raimundo: “Vi Raimundo de quatro fungando feito um bicho. No sonho, Raimundo estava fora de si. Seu rosto estava transformado na aparência de quem estava muito angustiado”.

- Mas, Raimundo não está assim não. Ele está muito bem e animado com a roça. Nunca vi um homem tão satisfeito.

- Então, viva Deus minha filha que está tudo bem com vocês. O casal voltou para casa. No caminho Raimundo confessa algo a sua mulher: “Se tudo continuar assim, daqui a dois anos eu compro a roça do Catu.

- Que maravilha meu amor. Vamos sim.

Não demorou muito para o Monsenhor da paroquia de Campos convidar Raimundo para fazer parte dos irmãos carismáticos. O casal descia para Campos a cada quinze dias para as reuniões de oração: “Estou louca para Deus falar comigo. Você viu a irmã Patrícia? Ela estava profetizando”.

- Para que mulher essa história de profetizar? Graças a Deus está tudo bem.

- Eh, está tudo bem. Mas eu tenho a curiosidade de saber das coisas. Então, ela foi à casa de uma profetisa carismática inquirir sobre sua vida e de Raimundo: “Seu Marido será fascinado pelo brilho de uma joia que ele encontrará lá na roça”:

- Vá de reto satanás isto não ocorrerá jamais. Meu marido é um homem do bem. Disse Marcela a esposa de Raimundo. Raimundo não tinha santo de devoção. Ele era apegado mesmo era pelo coração de Jesus e o Orixá Ogum. Tudo dele era em nome de Jesus. “Vou trabalhar em nome de Jesus”; “Vou comer em nome de Jesus”; e sua mulher o acompanhava em tudo.

Numa bela noite de verão Raimundo acorda todo suado e chama sua esposa Marcela. Foi um sonho que maltratou o rapaz. Ele sonhou que achava uma pedra de ouro bem no meio do terreiro de sua casa. Mas havia algo que o perseguia aquela noite, parecia um lobisomem. O agricultor do Catu não acreditava nestas coisas de lobisomem e almas penadas, mas, ficou muito assustado com o sonho devido sua clareza. Sua mulher rezou o terço de nossa senhora das sete lágrimas com ele e apelaram para Ogum. Nessas horas quem resolve é São Jorge pensou Marcela sobre seu Marido. A fé em Ogum não contradizia a fé católica do casal, pois em Campos muitos são católicos e umbandistas ao mesmo tempo. Os dois serviram aos Orixás quando moravam em Dias D’Ávila Bahia. Isso foi logo no começo do casamento. Ogum para eles era São Jorge guerreiro. O Orixá das demandas e problemas. Raimundo chamou Ogum e entregou tudo nas mãos de Deus.

O tempo, o artífice das joias, passou e todo mundo esqueceu do sonho e da profecia. Tudo corria tão bem que Raimundo decidiu cavar um tanque para os bichos. “Marcela vou cavar um tanque para os animais beberem água. A água está pouca”. Raimundo contratou um rapaz de Lagarto para fazer o serviço. Agora a propriedade tinha um tanque de beber água. Estava tudo perfeito. A roça crescendo, dando lucro, a saúde e o entendimento entre o casal indo bem, e o dinheiro entrando:

- Meu amor, eu nunca pensei que a gente ia se dá tão bem. A gente parece parceiros em tudo. As vezes tenho até medo de falar. Penso que o inimigo pode escutar.

- Graças a Deus, e ao coração de Jesus. E a Ogum também, meu pai guerreiro.

- É meu amor. O Orixá também nos ajudou.

- Vou fazer uma oferenda para ele.

- Você vai dar o que?

- O iame, a batata, e a macaxeira com o caldo de cana. O casal fez a oferenda a Ogum na estrada da roça e agradeceram por tudo. De noite, Raimundo acende uma vela para o coração de Jesus: “Obrigado meu pai por tudo”. A noite caiu forte. As horas corriam e o casal foi dormir: “Sonhe com Deus, meu amor” disse Raimundo para sua esposa”.

Marcela sonhou com seu marido. Ele estava numa estrada e nela havia uma figura masculina cujo rosto não foi visto. Essa pessoa se aproximou de seu marido e lhe entregou um mapa que dizia sobre o caminho de casa: “Siga por aqui que você chega à sua casa”. Marcela acordou assustada. Pela manhã ela contou ao marido, mas, ele não prestou atenção e foi trabalhar. Marcela meditou sobre o sonho, mas, não via ligação com eles.

Raimundo se levanta cedo na quarta-feira, dia de São Cosme e Damião. Havia chovido naquela semana; Raimundo foi dar uma olhada no tangue para ver se havia enchido. No caminho, já próximo do tanque Raimundo pisou numa pedra. O rapaz para para olhar o pé e vê uma pedra que parecia ouro. Apanhando a pedra do chão Raimundo ruma na direção de casa para mostrar a pedra a sua esposa:

- Amor! Amor! Corre aqui pra ver esta pedra que eu achei perto do tanque. Certamente ela estava enterrada no lugar do tangue.

- Deixa eu ver amor! Os dois conversaram sobre a pedra e chegaram à seguinte conclusão: “Era ouro”. Raimundo volta ao tangue e olha o barranco em busca de mais pedras. Procurou por muito tempo até perder as esperanças. Pensou o rapaz: “Esta pedra deve valer um bom dinheiro”.

Com a venda da pepita Raimundo comprou uma picape usada que estava em um bom estado. Agora o casal podia vir a Campos quando precisasse. O dois comemoraram o acontecimento e o fato de prosperarem cada vez mais. Raimundo disse a sua esposa que quando ele tivesse um tempinho ele ia cavar perto do tanque para ver se encontra mais outra pedra.

Um ano correu rápido. O casal foi passar uns dias em Campos. Havia festa na igreja e os dois participavam dos eventos sagrados. Na missa de sete horas estavam os dois sentados quando o padre gritou bem alto; pareceu que era o ponto central de sua homilia: “Os avarentos não herdarão o reino de Deus”. Marcela e seu esposo tomaram aquela palavra para si e começaram a cogitar em como não ser avarento. Voltaram para casa com o sentimento de ajudar alguma pessoa: “Já sei! Vou dar leite de graça e verdura para três famílias”.

“Raimundo, tem mais ouro, tem muito ouro”. A voz que Raimundo ouviu foi nítida. O rapaz olhou para todo lado e não havia ninguém. “Deve ter sido impressão minha”. Raimundo pensou. Contudo sua explicação não o convencia. Dentro de casa ele ouviu mais uma vez. Era a voz de um homem, uma voz apelativa. Pela manhã ele contou a Marcela o ocorrido. Os dois ficaram buscando explicações mais nenhuma delas os convencia que não era nada. “Bem, eu ouvi essas vozes, Marcela! ”

- Fazer o que homem? Vai cavar o chão?

- Não sei, mas, no início eu achava que tinha mais ouro aqui.

- O que é que você vai fazer? Vai procurar?

- Não sei, estou confuso agora.

- E se a voz for alguém avisando mesmo.

- É, amanhã eu vou dar uma cavada.

O casal dormiu cedo aquela noite. Os dois estavam calados. Um sentimento de mistério no ar. Nem a televisão eles assistiram. Quando terminou o programa Vitoria da Fé às 8 horas eles foram deitar. A janela do quarto aberta dava aos dois a visão da lua que naquela noite brilhava muito forte. Os dois haviam pegado no sono quando se fazem ouvir vozes pela casa, tanto dentro como fora da casa. Raimundo as ouvia, mas, Marcela não. As vozes falavam do ouro que o finado dono da propriedade em tempos passados havia enterrado. As vozes o mandavam desenterrar o rapaz: “Desenterre”.

Cedo pela manhã, Raimundo cava, exatamente, no lugar onde ele encontrou a pepita. Depois de cavar por uma hora ele encontra um osso humano. Era a mandíbula de alguém. Com cuidado Raimundo cava o resto e encontra o esqueleto completo. Assustado ele pede a sua mulher para telefonar para a polícia.

O IML demorou quase vinte e quatro horas para levar a ossada para Salvador. Lá o legista descobriu que a pessoa morreu vítima de mordidas que lhe quebraram os ossos e que a ossada tem cerca de quarenta anos. A história se espalhou pelo povoado Catu e logo chegou aos ouvidos de Raimundo e Marcela.

- Vixe, o homem foi comido por um bicho? Perguntou Marcela,

- Que bicho é esse que tem aqui, meu Deus! Perguntou Raimundo. Raimundo ainda estava ouvindo vozes e agora estava determinado a encontrar mais ouro. As vozes diziam: “Vocês vão ter tudo que precisam”. Raimundo cavava cada vez mais fundo e nada de ouro. Com um metro de profundidade sua mulher o mandou parar: “Olha, homem, eu acho que estas vozes não são do bem não!” Raimundo descansou um pouco e disse de volta para sua amada: “Vou cavar só mais um pouquinho”. Dando mais umas três picaretada e em seguida apanhando a terra com uma pá o homem do sítio encontra mais uma pedrinha de ouro, cerca de 60 gramas o que daria na cotação do ouro da época mais de 18 mil reais. Raimundo se animou e agora ficou atento para ouvir as vozes.

- Psiu! Você ainda não praticou o ato que nós queremos. Ouviu Raimundo a voz cansada e maligna.

- Quem é você? Por que não aparece para que eu possa vê-la.

- Vá ao tanque. Eu vou estar lá. Raimundo chamou sua mulher e ambos foram caminhando na direção do tanque. Enquanto os dois conversam, as vozes se fazem ouvidas audivelmente. Era pessoas acertando o preço de um escravo:

- 2.000 mil reis e estamos conversado.

- Não senhor, só entrego a mercadoria por 3.000.

- Rapaz vamos nos entender. Eu te vendi esta roça a preço de banana.

- Vendeu porque quis.

- Eu te mato seu desgraçado. Você prometeu a mercadoria e agora está com mais mais.

Raimundo a cada passo dado na direção do tanque muda o humor e fica preocupado. As vozes eram muitas e tratavam de assuntos diferentes. A voz do ouro era uma cansada que Raimundo já reconhecia muito bem. “Cave Raimundo”. Raimundo cavou mais um metro meio e olhou a terra para ver se tinha alguma coisa e nada encontrou. Contudo a voz não se calava. Raimundo voltou para casa e a voz o acompanhou. A voz não parava mais e Raimundo começa a enlouquecer. Sua mulher rezava e ele com as mãos nos ouvidos pedia a Deus para que as vozes parassem. Marcela preocupada chama os vizinhos, pede ajuda, mas, isso não foi coisa boa. Quando Raimundo ver o povo e com as vozes na sua cabeça foge em direção a um matagal próximo de sua casa. Desce até um riacho, lava o rosto e percebe que as vozes pararam: “Graças a Deus”. Disse Raimundo do fundo de seu coração.

O comerciante de leite, então, decide voltar para casa. No entanto, quando ele tenta sair do matagal, as vozes retornam. Raimundo volta para o riacho e fica em oração: “E agora meu Deus”. Foi o que o rapaz pensou. Raimundo decide chamar a voz e conversar com ela quem sabe ele consiga alguma resposta. Raimundo chamou a voz: “O que é que você quer?”:

- Quero que você não pare o ato de cavar até nós falarmos que está bom.

- Fazendo isso vocês vão se calar?

- Sim, e você será um homem rico. Raimundo recuperou o ânimo e voltou para casa. Bebeu água e confortou sua amada esposa. Logo em seguida voltou para o buraco. Ele já tinha dois metros e meio de profundidade e dois e meio de largura. Desta vez sua mulher foi com ele. Enquanto Raimundo cavava, os dois conversavam:

- Raimundo você vai cavar até quando?

- Até encontrar mais ouro. Foi isso que a voz disse.

- E se não tiver mais ouro.

- Eu paro.

- E as vozes?

- Não sei.

Para entrar no buraco Raimundo usava uma escada. As vozes de vez em quando voltavam para incentivar o homem a cavar mais. Certo dia, Raimundo nas profundezas do buraco que cavou é soterrado com o barranco. Marcela chora a morte de seu Marido e retorna a Campos...

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 19/09/2023
Código do texto: T7889306
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