Um corpo em Gaza

Quando Ranen Zundel e seu grupo de operadores de retroescavadeira receberam permissão para entrar naquele ponto ao norte de Gaza, o bombardeio da aviação israelense já havia se estendido para o sul há alguns dias. A infantaria também já havia feito o seu trabalho de rescaldo e a área fora declarada segura (após algumas baixas por armadilhas deixadas pelos guerrilheiros do Hamas). Podiam finalmente começar a limpar a área dos destroços de edificações e abrir um caminho até a praia.

- Podiam ter jogado mais bombas, - reclamou seu colega operador, Yered Mond, quando fizeram uma pausa na remoção do entulho para almoçar - ainda ficaram muitos prédios de pé!

- Esses não vão ser trabalho nosso, - ponderou Zundel - pelo menos, não agora. Devem mandar equipes de demolição para colocá-los abaixo, antes de retomarmos o serviço.

- Mesmo com dez equipes como a nossa, vai levar meses até limpar tudo - avaliou Mond. - Quanta gente vivia amontoada aqui, ocuparam cada metro quadrado!

Zundel deu de ombros.

- Eles não tinham muito espaço pra construir na horizontal... a solução foi fazer prédios, é claro.

- Pois vamos deixar tudo lisinho, como bunda de bebê - riu Mond. - Para construir casas decentes, para gente decente!

- É para isso que estamos aqui - assentiu Zundel.

O trabalho prosseguiu pela tarde adentro; as retroescavadeiras enchiam as pás de entulho e as descarregavam em caminhões, que os levavam para fora da área sendo limpa. Volta e meia o trabalho era interrompido quando encontravam algum corpo soterrado, o que não era incomum. Os corpos tinham que ser removidos para que não fossem misturados ao entulho. O calor era forte e o fedor de podridão se espalhava, apesar das máscaras que os operadores usavam.

- É como escavar um maldito cemitério! - Comentara Mond quando começaram o serviço naquela manhã.

- Pelo menos não somos nós que temos que recolher os corpos - filosofou Zundel.

Como a ordem de desobstrução do acesso à praia era prioritário, a orientação do exército é que o trabalho prosseguisse noite a dentro. No crepúsculo, quando o grupo de Zundel estava terminando o turno, Mond ergueu a pá da retroescavadeira e pôs o corpo para fora da cabine:

- Ei! Tem um corpo debaixo daquela laje! - Gritou para a equipe de remoção.

Enquanto os homens se aproximavam com pás e um saco para cadáver, Mond saiu da cabine e ficou de pé sobre a esteira esquerda do veículo, apreciando a cena. Havia algo diferente com aquele corpo.

- É um homem branco? - Perguntou à equipe de resgate.

- Mais branco do que você - zombou o líder da equipe, antes de curvar-se sobre o cadáver. - Sem roupas, olhos arrancados, mas sem outras marcas de ferimentos... é como se tivesse morrido faz poucas horas.

Mond desceu da retroescavadeira. Outros operadores, inclusive Zundel, também pararam seus veículos e vieram se juntar à equipe de remoção.

- Será que é um dos reféns, que o Hamas deixou para trás? - Questionou Mond.

- Pode ser - ponderou o líder dos resgatistas. - Mas esse sujeito não foi sequer amarrado... não há marcas nos pulsos, nem nas pernas. Muito estranho.

- E também não é judeu - avaliou Zundel, mãos nas cadeiras, fazendo uma alusão ao pênis não-circuncidado do homem.

- Prestou logo atenção, hein? - Ironizou Mond.

- Havia muitos estrangeiros entre os reféns - disse o líder dos resgatistas. - Pode realmente ser um deles. Vamos remover o corpo e avisar o capitão Rosenthal.

O corpo foi colocado num saco preto de cadáver e depositado na caçamba de uma camionete da empreiteira. Em seguida, o veículo rumou para o acampamento do exército, fora dos muros da cidade, onde Rosenthal já o aguardava.

- Verifiquem a identidade do homem - ordenou o capitão aos seus auxiliares. - Precisamos confirmar se é um dos reféns e passar a informação ao primeiro-ministro.

O corpo foi imediatamente levado para a morgue de campanha, onde foi fotografado pelos legistas e colhidas as impressões digitais. Uma busca no sistema de identificação de pessoal não encontrou nenhuma correlação.

- Não é dos nossos, não é um refém, não consta nos bancos de dados criminais - declarou pouco depois a chefe dos legistas, a doutora Orian Machuv. - Vou ter que entrar em contato com o Mossad.

Alguém no Mossad teve a ideia de passar os dados para a CIA, e a CIA acionou o FBI. Já era madrugada quando finalmente Rosenthal recebeu uma confirmação.

- O FBI informou que os dados enviados correspondem aos de um Garry Roach, desaparecido há dez anos em Black Eagle, Montana - informou a doutora Machuv.

- Desapareceu em Montana e apareceu morto em Gaza, dez anos depois? - Questionou Rosenthal. - Alguma ligação com os terroristas do Hamas?

- Nenhuma, até onde se saiba - redarguiu Machuv. - A irmã prestou queixa à polícia pelo desaparecimento e por alguma razão, isso chamou a atenção do FBI.

- Ela era suspeita de ter sumido com esse Roach? - Questionou Rosenthal.

- Não. Tem algo a ver com a propriedade dos Roach, mas o FBI não quis dar detalhes. Enfim, a marinha vai mandar um helicóptero do porta-aviões, recolher o corpo pela manhã. Há uma coisa que nem eles nem eu estamos entendendo...

- Há muitas coisas nessa história que nem eu estou entendendo - replicou Rosenthal. - A qual delas se refere, especificamente?

- A idade de Roach. Ele tinha 33 anos quando desapareceu, há dez anos... e não parece ter envelhecido um dia sequer desde então.

Rosenthal ergueu os sobrolhos.

Ao amanhecer do dia, quando um helicóptero do USS Gerald R. Ford pousou próximo ao acampamento israelense e a equipe de resgate foi levada à morgue para recuperar o corpo, uma surpresa os aguardava: o cadáver havia desaparecido da gaveta da câmara frigorífica.

- [22-11-2023]