Conto de 1906

Conto de 1906

By: Vitória Régia Sarmento de Abrantes

Àquela comunidade respirava calmaria, amizade, e à espreita de dias moderados, mesmo diante da labuta diária, uma forma colaborativa de ajudar uns aos outros, às vezes, surgia um fato aqui, um cochicho ali. Coisa de lugar pacato. Entrementes, falácias corriqueiras importunavam, em particular, cada morador da redondeza.

Um clarão entre duas partes da janela de madeira do casarão, onde servia de moradia, herança do pai de dona Isabel, soava como um barulho esquisito.

De arquitetura antiga, o imenso alpendre do sobrado lembrava um palácio de dois andares, com janelas abertas até o sol se deitar.

A cadeira de balanço de dona Isabel embalava do matutino ao vespertino. Era uma senhora alegre, de vida farta, porém de pouca vizinhança. O povo do lugar vivia a resmungar:

- Naquela casa tem mistério!

Outro dia fugi dos meus princípios. Resolvi visitá-la. A cancela de acesso tinha uma tramela de madeira pesada. Antes de abri-la, fiz uma revista ao derredor do ambiente. De repente, um barulho agudo e longo vinha da janela alta da casa. Curioso e ofegante, cruzei a porteira. Pisei forte à calçada do alpendre. Recebi como surpresa, uma ação pretensiosa de dona Isabel. Disse ela:

- O carpinteiro chegou. Agora é só domar o leão no sótão. Logo, logo, a janela vai estar consertada.

Cruzei a cancela em disparada. A vizinhança queria saber do fato.

Nunca mais voltei lá.

Era primavera de 1906.