DESEJOS MORTAIS - CAPÍTULO 7

 

 

      Antes de viajar, Rosalina tinha levado um pote de água para Alvina, ela se negava a beber a água de sua casa por temer que estivesse envenenada. O pote estava sendo mantido na mesa de cabeceira, coberto por um guardanapo branco de linho e Alvina vinha economizando a água, bebendo somente o necessário para mantê-la viva.    Embora já fizessem dois dias que não ingeria qualquer alimento, não sentia fome. Sua última refeição tinha sido o prato enviado por dona Lalá.

   Uma tarde, aproveitou a saída de Marinalva, telefonou para a farmácia e encomendou dez caixas de Pervitin, e vinha tomando dois comprimidos por dia para mantê-la acesa. Conheceu este remédio quando era estudante e precisava estudar até tarde. Não queria e não podia dormir, tinha de estar alerta para se defender de seus algozes. O som da desonra continuava a atormentá-la dia e noite levando-a ao desespero e gritava para que parassem aquele batuque, que ecoava em seu cérebro como se fosse uma marreta moldando um artefato de ferro em uma bigorna, tendo um efeito multiplicador na intensidade da dor de cabeça, localizada na altura da nuca, que a vinha torturando há dias. Sentia tremores por todo o corpo e era acometida de impulsos incontroláveis, ora com os braços, ora coçando a cabeça, o corpo, ora sacudindo a cabeça de um lado para o outro como se estivesse negando alguma coisa.

      Estou má, acho que o veneno já está fazendo efeito, me ajude Meu Deus. – pensou com desespero, enquanto rodopiava pelo quarto sem conseguir parar. Seu organismo demandava cada vez mais comprimidos e já havia dobrado a dose inicial. Tinha de manter o quarto à meia-luz, porque não vinha suportando excesso de claridade, mas também não queria ficar na escuridão. Às vezes sentia as imagens fora de foco e tinha dificuldades para identificar com nitidez alguém que se aproximasse. Sentir o coração disparar como se fosse saltar-lhe pela boca, vinha se tornando uma rotina desesperadora, que a deixava bastante mal. Mas, pelo menos, o estado de euforia, que vinha experimentando, acelerava o seu raciocínio forçando o seu cérebro trabalhar excessivamente e, além de lhe ajudar a arquitetar diversas formas de se proteger de seus inimigos, também trazia pensamentos destrutivos, que a induziam a ter planos de acabar com a própria vida. Seus filhos, Galdino os levara para ficarem com a sua irmã até que as coisas se ajeitassem. Em uma manhã, pressentiu uma presença e firmando a vista reconheceu Marinalva, que estava de pé ao lado da cama mexendo no seu pote de água e teve um ataque de fúria, gritando com ela e a expulsou.

      — Acalme-se, senhora, que foi que eu fiz?

      — Já lhe ordenei para não mexer na minha água.

      — Só estava conferindo se precisava reabastecer.

      — Nunca, mas nunca mesmo, mexa nesse pote outra vez, entendeu?

      — Sim, senhora, me desculpe, isto não vai se repetir. Mas já mudou de opinião quanto a se alimentar?

      — Não, não tenho fome. Galdino deu notícias?

      — Ah! Verdade, ia me esquecendo. Ele ligou e está muito preocupado com a senhora. Tive de lhe contar sobre o seu estado. Acho que ele vai interná-la. Eu disse a ele que desse jeito a senhora não vai durar muito. – e um sorriso cínico se estampou em seus lábios.

      — Não vou morrer ainda, seu urubu, vai gorar outro e me deixa em paz!

      Alvina vinha emagrecendo a olhos vistos e tinha tomado uma decisão de não mais beber a água do pote. A boca e a mucosa do nariz estavam ressequidas e os lábios apresentavam uma leve descoloração e profundas rachaduras. Também não conseguia se controlar, estava excessivamente irritada e queria desforrar em alguém, mas estava só e vinha esmurrando o guarda-roupas e outras vezes a parede do quarto, ferindo os punhos. Seu estado era deplorável!

      Dias depois, contra a sua vontade, Alvina tinha sido internada no hospital local por alguns dias. Se revoltou e retirou a agulha que lhe fincaram na veia para aplicar-lhe soro e medicamentos e tentou fugir. Quando os enfermeiros a seguraram ela gritou, esperneou, os arranhou e mordeu o médico. Gritava que todos estavam a serviço de Galdino para matá-la. Teve de ser amarrada na cama. Mas nada disso adiantou, quando recebeu alta e retornou à sua casa tudo voltou como antes e ela estava definhando. Mesmo uma pessoa leiga podia diagnosticá-la com um quadro grave de desnutrição e desidratação. Suas narinas e lábios voltaram a apresentar ulcerações graves, causadas pelo uso indiscriminado de anfetaminas e pela falta de ingestão de líquidos. Seus rins estavam entrando em colapso. Já era o quinto dia consecutivo sem ingerir uma gota sequer de água ou qualquer outra bebida. Não conseguia mais urinar, os olhos estavam fundos e muito ressecados e preferiu manter as pálpebras fechadas, pois uma vez abertas tinha medo de não conseguir mais fechá-las.       Também não vinha dormindo. Tinha dificuldades de coordenar os movimentos e seus músculos oscilavam entre o retesamento, que deixavam partes do corpo paralisadas, e a retração que a faziam encolher-se e já vinha perdendo a sensibilidade; tinha vômitos intermitentes, alternando com diarreia, dando um imenso trabalho para as empregadas, que tinham de limpá-la e trocar a roupa de cama. Sua pele apresentava um tom meio azulado e constantemente muito fria. Alvina estava entrando em estado de choque, sua vida chegava ao fim. 

      Mesmo com todos os impecilios para dormir,  uma tarde, sentindo uma fraqueza imensa, recostou na cabeceira da cama, fechou os olhos, que estavam ressequidos, e cochilou por um tempo impreciso e o seu velho pesadelo voltou a atormentá-la. Seus olhos dançavam em sua órbita e a cena fatídica voltou-lhe nitidamente e, como sempre acontecia, ela gritava desesperada: Pai, acorda, pai, a brincadeira acabou. Pai, me desculpa,  acorda, por favor! - Marinalva, de pé ao seu lado, observava tudo com uma curiosidade infantil, mas com uma crítica maquiavélica e pensava: Hum, o que houve, será que ela causou a morte do pai? - quando a Alvina acordou e viu Marinalva ao lado de sua cama ficou possuía de ódio e a expulsou de seu quarto praguejando e xingando. O som da desonra já não a incomodava mais, sua alma estava sendo sugada para fora daquele corpo, que em nada lembrava a bela mulher que fora um dia. Era um monte de pele e ossos inabitável, que só aos vermes agora prestava e começou a ter visões. De repente, sua mãe entrou pela porta, veio até a sua cama e se ajoelhou ao seu lado, com um semblante suave e acolhedor. Alvina iniciou um diálogo com ela, apenas em pensamento, porque já não conseguia emitir um som audível, apenas os seus lábios mexiam e tentava levantar a mão movendo-a como se estivesse fazendo carinho em alguém:

      — Mãe, é a senhora? Veio me ajudar, mãezinha? Querem me matar, não deixa, não. Tenho filhos para criar. – ouviu sua mãe censurá-la e retrucou – Eu sei, mãe. Fiz tudo errado, Galdino não merecia isso. Ele é um bom homem, mas não me perdoou como prometeu. Decepcionei muito a senhora, não foi? – ouviu mais um pouco e continuou – Ir com a senhora? Aonde? Ah, sim, para luz. Mas onde está a luz, não vejo luz alguma. Onde? Oh, mamãe, que luz linda, chega a me cegar, nunca vi nada igual, nem mesmo a do sol. Vou encontrar a paz aí, mãe? Jura? Oh mãezinha, me espere, não me deixe ir sozinha, segura a minha mão, como quando eu era criança. Tenho medo! Como? Sei, entendi, vou ter de ser forte, vou ser... forte, forte... como a senhora. Hem? Sim, igual... ao papai... também. Estou indo, estou indo... aaaaaaahhhh — emitiu um gemido e, com o pouco da força que ainda lhe restava, deu um suspiro bem forte, como se estivesse buscando o ar e expirou bem devagar até que cessou a respiração, abriu os olhos, o seu braço caiu e a cabeça pendeu para o lado. Alvina havia partido!

      Marinalva, que a tudo assistia impassível, se aproximou da cama levou os dedos indicador e médio até o pescoço de Alvina e não sentiu qualquer pulsação. Mas para ter certeza, pegou um espelho e o colocou em frente às narinas dela e não havia sinal de respiração. Então, decretou: a Messalina desceu ao inferno! Agora está com a sua laia! — saiu do quarto e se dirigiu à sala de estar, onde se encontrava Galdino e deu-lhe a notícia.

      — A agonia terminou, patrão. A infiel partiu! O senhor foi vingado!

      Ele teve um acesso de choro, soluçou e as lágrimas rolaram pelo canto dos olhos. Depois suspirou fundo e manteve a dignidade. Marinalva lhe sorriu e colocou a mão sobre o seu ombro, numa demonstração de apoio.

      — Mande alguém avisar a Rosalina.

      — Mando avisar aos parentes dela também?

      — Logo mais, ainda são duas horas da tarde. Temos muito tempo! Temos de chamar o médico também. – se levantou rodou pela sala e parou bem em frente ao porta-retratos, onde havia uma foto de seu casamento e pensou – Por quê, Alvina, por quê? Te dei tanto amor e olha o que você fez, destruiu a nossa vida. – pediu a Deus o perdão para si e a compaixão pela alma dela.

Rosalina chegou apressada à casa de Alvina e encontrou todos reunidos na sala de estar. Galdino estava visivelmente triste, Marinalva era só sorrisos, tinha cumprido a sua missão e Romilda servia cafezinho.

      — É verdade que a Alvina... morreu?

      — Sim, dona Rosalina, ela já está prestando contas a Deus, ou a quem quer que seja. – respondeu Marinalva, com uma falsa demonstração de piedade.

      — Eu gostaria de ficar uns minutos a sós com ela. Posso, Galdino?

      — Claro, vai lá. Só uma coisa, Rosalina, se prepare para o que vai ver, é apenas um monte de pele e ossos e não fixe nos olhos dela. São assustadores!

      — Tudo bem, acho que posso lidar com isso.

      Rosalina entrou no quarto e quando viu a amiga seu estômago embrulhou e teve ânsias de vômito, mas se conteve. Respirou fundo, aproximou-se da cama e olhou o que restara daquela mulher, que um dia lhe causou tamanha inveja, tanto pela beleza, quanto pela elegância e agora não passava de um farrapo humano, uma trouxa de carne e ossos, mais ossos que carne.

      Pois é minha amiga, como a vida dá voltas! Você que sempre me humilhou por ser gorda, não ter muita vaidade e dizia que eu não ia arranjar namorado, que estava fadada a ficar para titia, veja, se puder, daí de onde você está, e faça uma comparação entre nós. — desabafou.

      — Rosalina? Está tudo bem com você?

      — Sim, Galdino, estava botando o papo em dia com a Alvina. Tinha algumas coisas entaladas aqui na minha garganta. – respondeu e em pensamento continuou a torturar o espírito da amiga – Agora estou tão bem, Alvina, você nem imagina! Para quem ia ficar solteirona, fisguei até o seu marido. Como nada é perfeito me coube a missão de cuidar de seus filhos. Mas não fique preocupada, não, vou tratar bem deles. No fim, quem saiu ganhando, querida amiga? – sentiu uma satisfação mórbida.

      Rosalina enlaçou Galdino pelo pescoço e deu-lhe um longo beijo na boca. Eles ficaram ali com os corpos colados por longos minutos, com a intenção de afrontar Alvina por tudo que aprontara com o marido e com a amiga. Depois se retiraram e foram sentar juntos no sofá da sala.

      — Galdino, foi bom a gente ter internado ela naquele dia. Depois de todo o escândalo que ela aprontou lá no hospital, não irão questionar nada. Não acha melhor chamar logo o médico e avisar os parentes dela?

      — É, meu amor, você tem razão! Por favor, faça isso Marinalva.

      — Ainda bem que acabou aquele batuque de moeda no prato. Eu já não suportava mais aquele som e ter de dizer a ela que era só a sua imaginação. Ufa! Enfim terminou! – desabafou Rosalina.

      — Querida, vamos prosseguir com o plano. A gente vai continuar se encontrando, mas por enquanto fora de Miraí, até o luto acabar. Depois marcaremos o nosso casamento. Certo?

      — Claro, meu amor. Sem problema.

      O enterro de Alvina foi muito concorrido. Praticamente toda cidade tinha ido ao velório. A maioria pela curiosidade em ver como a bela e admirada ruiva tinha envelhecido e ficara com a aparência daquelas bruxas das estórias do Walt Disney.

      Após o término do luto, Galdino e Rosalina se casaram numa cerimônia chique, com mais de 200 convidados. Mesmo mantendo o sigilo de seu romance, enquanto Alvina era viva, Rosalina ouviu muitas insinuações e soube de muitos comentários maldosos. Preferiu fazer ouvidos de mercador e viver a sua vida dando muito amor a Galdino e educando os filhos de Alvina, com paciência e dedicação.

 

                              F I M

 

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Foto: Pixabay

Musica: Nocturne n° 20 - Chopin - Executor: Wladyslaw Szpilman

Saavedra Valentim
Enviado por Saavedra Valentim em 01/12/2023
Reeditado em 02/12/2023
Código do texto: T7944888
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