Café Colonial

à Thainá Laforet.

Esta não é uma história de horror. Contudo, está cercada de mistérios.

Mistérios esses que carregam os interiores, os confins de quaisquer países, estados ou cidades do mundo. Situações que fogem da compreensão da racionalidade humana.

No interior gaúcho, cujo nome da cidade cá não importa, vivia uma freira muito bem-quista por seus pares, pelos clérigos, pelos diáconos, pelo bispado. Mulher de conduta idônea diante dos seus, irmã Berenice – irmã Nice, para os mais chegados – fazia os olhos dos fiéis brilharem diante de sua beleza ímpar escondida sob o hábito.

Desde que irmã Nice ali chegara, transferida de Porto Alegre, tornou-se o assunto naquela cidade. A despertar mexericos e inveja nas carolas daquela paróquia a qual ajudava padre Silas e alguns coroinhas, virou quase a protagonista daquele templo católico.

Morava em um casebre a pouco mais de um quilômetro da igreja. Caminhava aquelas ruas de paralelepípedos pela manhã, sob um sol escaldante durante o verão ou sob uma geada insuportável no inverno, a parecer estar sempre contente com o que a Providência se lhe impunha.

Não importava quem à sua casa visitasse, estava sempre pronta a servir o melhor presunto e a melhor linguiça que o interior gaúcho experimentara. Embora os habitantes daquele lugar, em sua grande maioria, pouco tivessem visitado as cidades que avizinhavam. A maioria de seus hóspedes era composta de bem-apessoados rapazes que lhe faziam alguns favores – tais como pintar a fachada de seu casebre, consertar algum buraco do telhado ou trocar as vidraças das janelas – em troca de presunto e linguiça no cacetinho.

Embora o açougueiro fosse também um fiel frequentador da igreja e de casa de irmã Nice, não sabia onde ela conseguia tais carnes, pois ela nunca havia comprado sequer um quilo de linguiça toscana consigo. Mesmo assim, às sextas-feiras, a visitava a levar-lhe um pouco de carne suína.

Belo dia, padre Silas saiu às pressas da cidade numa madrugada quente, a deixar com irmã Nice uma carta. Ela fez a leitura da carta aos fiéis e lhes assegurou que a enviaria à diocese competente para a trazida de um novo clérigo.

Outras pessoas, contudo, também começaram a sair de repente ou a simplesmente desaparecer da cidade: a princípio, dois coroinhas, um bispo, o marceneiro e o caixeiro viajante.

Quase um mês após a partida do padre, chegou à cidade um clérigo de compleição seca, nariz rotundo, pele avermelhada de sol e bastante curvado. Sob seus olhos investigativos e cansados, protuberantes olheias. O bispo fez questão de apresentar padre Antonio prontamente à irmã Nice, aos novos coroinhas e, em seguida, aos fiéis.

O padre vislumbrou irmã Nice com curiosidade: parecia sentir-lhe o olor, a perscrutá-la em silêncio sob seus hábitos pretos como a noite. Ela – que olhava-o também no fundo dos olhos – fazia a mesma coisa.

Novos fiéis foram desaparecendo da igreja conforme os dias foram passando. Sempre homens. As carolas apareciam a chorar, com seus terços na mão, a implorar ao novo clérigo orações para que seus filhos, maridos, irmãos e tios aparecessem de uma vez.

- Ele saiu ontem à noite, padre – disse uma idosa, a ajoelhar-se sob os pés de padre Antonio, chorosa. – Disse que ia levar um leite encomendado e até agora não voltou!

Padre Antonio, como que instintivamente, olhou de soslaio à irmã Nice, que pigarreou e apertou seu terço entre os dedos da mão direita.

- A polícia não age neste lugar? – reclamou o padre, a disfarçar.

Fez uma oração a pedir pelo reaparecimento dos fiéis, dos coroinhas e do antigo padre.

Ali pelas sete da noite, a igreja começou a esvaziar. Irmã Nice recolhia seus pertences quando Antonio a interpelou:

- Muito misteriosos esses sumiços, não? – perguntou ele, enquanto os coroinhas terminavam de organizar o altar para a missa do dia seguinte. Parecia incomodado com a presença deles.

- Pois sim, padre – redarguiu a freira, em voz alta. – Peço a intervenção da Virgem Santíssima e de Nosso Senhor para que apareçam imediatamente!

O padre fez silêncio por um instante. Parecia pensar em algo enquanto secava uma taça.

- Tu que ostentas deliciosos comes em tua casa, nunca me convidaste – propôs ele.

- Nunca me pediste para experimentá-los – redarguiu ela, prontamente.

- E quando me darás a honra?

- Por que não agora? – replicou ela, a sorrir.

- O altar está pronto, padre – exclamou um dos três coroinhas que ali estavam, a interromper a conversa.

Fecharam as portas da igreja e selaram-na com grilhões e um cadeado pesado. Despediram-se dos coroinhas e puseram-se a caminhar por veredas que irmã Nice não costumava seguir em direção à sua casa.

Ela abriu a porta do casebre, adentrou-o e esperou a entrada do clérigo. Ele, prontamente, sentou-se ao sofá. Estavam ambos em silêncio. Irmã Nice dirigiu-se à cozinha. De lá, trouxe duas taças e uma garrafa de vinho e sentou-se ao lado do padre.

Deram-se um longo e apaixonado beijo. A concupiscência do ato era tal que fê-la despir-se de seus hábitos e atos carnais exerceram ali, sobre o sofá, sob influência do ato.

- Quem será a nossa próxima refeição? – perguntou Antonio, a desfazer-se da batina e do crucifixo.

- Penso em algum dos coroinhas – replicou Nice, nua, a fumar um cigarro. – Reparaste como me olham a bunda?

Ambos riram diabolicamente. Contudo, ouviram um ruído pelo lado de fora da casa. Ao achegar-se à janela, Antonio percebeu que os três coroinhas fitavam, com olhos assustados, através do vidro.

Prontamente, buscou na gaveta de um cômodo um revólver e, quando eles pensaram em fugir, interpelou-os. Não havia mais testemunhas – certificara-se disso. Após as oito horas, muitas pessoas refugiavam-se em suas casas. Fez os três entrarem e ficarem de joelho, a apontar-lhes sua arma.

- Como ousaram nos seguir, seus merdinhas? – inquiriu Antonio.

Com a voz trêmula de medo, um dos coroinhas arriscou a explicar:

- Queríamos espiar irmã Nice – disse.

- Além disso, pecadores – exclamou Nice, ainda desnuda, sem se mexer no sofá.

- A gente só queria um pouco de presunto e linguiça – falou outro deles.

- Pois é o que terão!

Fizeram os três sentarem-se à mesa. Nua, irmã Nice buscou-lhes pedaços de presunto e linguiça cruas – evidentes carnes humanas ainda conservadas.

Um dos coroinhas vomitou à mesa, horrorizado.

- Isto é o que sobrou do padre Silas!

Apenas um dos coroinhas comeu os restos mortais do antigo clérigo. Impiedoso, Antonio centrou-lhes a cabeça em fila indiana.

- Três coelhos em uma só tacada – afirmou, a apontar o revólver à têmpora do primeiro. Apertou o gatilho. Pedaços de crânio e muito sangue voaram pelas paredes do casebre, a sujar a batina pendurada do padre.

Naquela noite, Antonio e Nice recolheram os corpos e desapareceram.

No dia seguinte, os fiéis oravam pelo desaparecimento do clérigo, da freira e dos coroinhas. Ninguém nunca desconfiou tampouco apurou os sumiços.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 19/12/2023
Código do texto: T7957042
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