O sobrinho dedicado

Você já matou alguém? Era a pergunta que meu paciente fez ao começar realmente falar o que interessava para a sessão.

“Eu matei um homem, ele disse - e continuou seu depoimento - Tenho a certeza de que isso é muito melhor... Na realidade... Saiba que não tem nada a ver com a sensação de morte vista em filmes ou na televisão, a realidade é sempre pior.

Quando você olha nos olhos da sua vítima vê algo inaudito, uma mistura cintilante de ódio, desejo e medo. Como se nada que ela estivesse vivido de ruim até aquele momento afetasse sua vida. Aquele era o momento mais feliz de sua vida, antes do mais triste, sobre o qual todos aguardam, não existem mais problemas. Aquela respiração momentânea é a mais sagrada. Tudo que ela sonhou se tornará real, ela quer viver uma nova vida.

Bobagem. Meus métodos são limpos e rápidos. Aprendi com meu tio que me criou, nunca deixe nenhuma “vítima” sobreviver – ele dizia. Escutei, até um dia...

Foi um dos meus últimos trabalhos, fazia isso desde jovem observando meu tio, fui criado com isso, ele não queria que eu trabalhasse com essas coisas, sempre me colocava em escolas boas para que eu tivesse educação e não precisasse desse trabalho, mas sentia a movimentação dos acontecimentos e sem querer descobri o real ofício de meu tio, assassino profissional.

Estávamos mudando de cidade todo o tempo. Não tinha amigos, os relacionamentos eram muito rápidos, ele era tudo que eu tinha. Meus pais morreram cedo assim como o resto da família, no começo era vingança, depois virou uma profissão para o meu tio... Ele era bom no que fazia, não deixou pistas e conseguiu encontrar todos assassinos de minha família. Não sobrou ninguém.

A habilidade dele logo fora descoberta pelas cabeças do crime, os quais foram atrás dele, ele precisava de dinheiro fácil e rápido e a vida “normal” já não lhe fazia sentido. Aceitou o pedido.

Perdi a conta de quantos trabalhos havia feito, Carlos, meu tio, morreu. Era somente eu agora. Fui incumbido de matar um sujeito que não valia nada, escória humana. Ele era frágil comparado aos meus quase dois metros de altura, ele era um lixo comparado a minha nobreza de caráter, não é pelo fato de ser assassino profissional que não se deve ter honra.

Ele tinha três filhos que viviam descuidados, sua esposa era bêbada e louca. Ele vivia as costas de um chefe recém iniciado no crime, era um rapaz novo, que conseguiu entender a mecânica do submundo de forma fácil, sobrava-lhe inteligência, mas faltava-lhe conhecimento da alma humana.

Esse homem era um “peixe pequeno” nessa nova organização, porém havia se deitado com a filha de um policial que fazia parte de um de meus grandes clientes.

O sujeito era desprezível, ganhava seu dinheiro para não fazer nada, vendia droga a crianças “por fora” e tentava tirar vantagem da sua própria organização, sendo que ele só estava nela por saber um pouco demais. Por isso essa “vítima” era especial, precisava torturá-lo para coletar as informações antes de sua morte, mas eu não gostava de torturas, sujavam muito o ambiente e ás vezes até minha roupa, e quando isso acontecia ficava nervoso. Era sangue de rato Não existem vítimas nessa profissão todos merecem de alguma forma o tal destino traçado pela grana do cliente.

Foi fácil pegar aquele idiota, ele sempre andava com certeza de si mesmo e isso era a sua fragilidade, dei-lhe umas porradas e levei para o "Canário", um galpão vazio e sujo, viveiro de ratos... Torturei-o... Não foi preciso muito para falar o que queria, ele disse tudo e mais um pouco... Tudo ia muito bem, as “vítimas”, no geral sempre eram mais difíceis, mas aconteceu o imprevisto, não consegui matá-lo.

A notícia do acontecimento dele com a filha do policial havia se espalhado como vírus da gripe, era questão de pagamento e execução de trabalho, simples, limpo e rápido, como eu estava acostumado, mas não consegui.

Olhei nos olhos dele e ele disse algo como se fossem suas palavras finais, foi o único que não implorou para que eu o matasse, ele disse nunca ter matado alguém e nem conseguiria fazer tal coisa, mas hoje via, indiretamente destruiu muitas vidas, sabia que as encontraria no inferno, pensava que com o dinheiro se conquista algo, poder. Ser alguém já era sinônimo de ter algo, e para um assassino ter uma arma e outros brinquedos, falará isso em tom de deboche, quase se esquecendo de sua situação.

Tive mais vontade de matá-lo ainda, mas não do jeito convencional, com as minhas próprias mãos dessa vez... Mas ele continuava, e me fez uma pergunta, lembro-me exatamente dela... Qual é a graça de fazer de pessoas “bonecos de massinha”? Você também se sente um? Eu me sinto um agora, e talvez tivesse sido um por toda minha vida, mas me foi descoberto nos últimos segundos.

Senti nesse instante que se o tivesse conhecido em outra situação seriamos amigos, e até confidentes. Ele falou tudo sobre a sua história, era verdade, eu estava parado, nenhuma “vítima” teve esse efeito sobre mim, ele falava de forma firme e nunca chorava ou pedia clemência para salvar sua vida. Ele amava a vida de uma forma patética e simples que não tinha tempo de pensar em outra coisa que não fosse a sua própria vida e manifestações dessa.

Era um homem comum, pensava em cobrança de juros, tinha uma família de aparências, aventuras verdadeiras ou inventadas para contar para os amigos, e tinha muitos amigos... Era insuportável escutar sua voz, suas histórias... Deixei-o, abandonei a “vítima”, nunca tinha feito isso.

Liguei para o cliente falando tudo o que tinha acontecido e dando as informações, falei que ia abandonar meu trabalho, não queria mais ser um assassino profissional. Meus trabalhos já eram bem conhecidos, estava me tornando popular e mecânico demais.

Meu cliente acabou com a vida do sujeito no mesmo dia que estava preso no galpão.

Fiz alguns trabalhos ainda mesmo depois do desse acontecimento, mas não com a mesma paixão. Tenho insônia por causa daquele infeliz, O fantasma dele me assombra toda a noite, conversa comigo sem parar, vejo ele de dia agora, ele anda como antes do mesmo jeito, me sorri, fala sobre vida, vida, vida... Pessoas que são como bonecos de massinha, bonecos de massinha, bonecos de controle remotos ligados por baterias frágeis.

Tive medo de ser interrado em um manicômio, parei de beber e de fumar, dizem que isso é ótimo para a saúde, mas para mim é um mau sinal, pois tenho medo de sair do meu controle, e vem a palavra controle novamente... Penso que estou enlouquecendo.

Um dia tive uma visão de que ele cortava minha cabeça e exibia em uma parede azul exposta, achei que estava dormindo, mas estava acordado. Embaixo da minha cabeça via uma passagem bíblica dessas que falavam de conquistas, do antigo testamento, da época em que Deus era “mal” e a justiça era feita pelas mãos e sangue. Por isso estou aqui narrando minha história para o senhor, espero que me ajude. Meus clientes ficaram sabendo de meus comportamentos e decidiram buscar ajuda médica e sabemos que o senhor é bom no que faz...”

O paciente me pedia ajuda, ele era apenas uma cabeça falante pendurada em uma parede azul, mas não sabia disso, era impressionante, jamais virá um homem de tal forma assustadora, mas escutei e tentei manter a calma... A cabeça falante ainda me dizia que a loucura da mente humana não acontecia na silenciosa noite, mas ao raiar do dia, no passar das pessoas tal quais cadáveres vivos pelas ruas.

*Este é mais um dos contos escrito pelo meu amigo Júlio César Davs, antes de partir, ele atendia pacientes que se sentem "um pouco" perturbados... E de uma forma estranha estes desapareceram tão misteriosamente quanto meu amigo.