Disque Moto para matar

George Luiz - Disque moto para matar

Rodolfo recuou com o impacto do primeiro tiro. Sentiu o segundo projétil roçar uma de suas orelhas. O terceiro atingiu-o em cheio, no peito. Escorregou mais do que caiu, até chegar ao chão. O atirador ainda fez um disparo mas a bala atin-giu a calçada. O criminoso, bem jovem, acelerou sua moto, partiu e dobrou a primeira esquina.

No chão, ainda consciente, Rodolfo sentiu um líquido de sabor adocicado sair-lhe da boca, escorrer por seu queixo, seu pescoço. Era o sabor agridoce de seu pró-prio sangue. Em volta dele, pessoas se movimentavam.

- Uma ambulância, alguém chamou uma ambulância ?

- Moça, olhe o ferimento. Esse cara não escapa mesmo. Vai morrer aqui na rua, sem socorro.

- Eu disquei 190 o homem disse que estava enviando uma viatura.

- E eu anotei a placa da moto. Está aqui, neste papel.

A moça de vestido branco voltou-se para as outras pessoas.

- Vamos abrir espaço, ele precisa respirar.

- Olhe, moça ! Estamos com sorte, está chegando o resgate dos bombeiros.

Os olhos de Rodolfo começavam a se embaçar. Ele enxergava vultos, não distin-guia feições. Tentou dizer alguma coisa. A moça aproximou seu rosto do dele. Os lábios de Rodolfo se entreabriram, sua garganta esforçava-se para emitir sons.

- Ade... a

- Não se esforce, o médico está aqui.

O médico e os enfermeiros afastaram a moça e assumiram o controle da situa-ção. Ela olhou com muita compaixão o rosto do homem baleado. Um rapaz ao lado dela tocou-lhe o braço. Estendeu-lhe uma folha de papel arrancada de um pequeno bloco.

- Olhe aqui, moça. É o número da placa da moto do assassino. Eu anotei.Fique com ele, eu tenho que correr para o meu trabalho.

Gilda pegou o papel num gesto automático. Uma viatura policial estacionou qua-se junto dela. Imobilizado na maca, Rodolfo foi posto na ambulância. Ainda cho-cada com o que vira, Gilda afastou-se.

Existiam dias na vida do delegado Afrânio Moreira, que ele considerava dispen-saveis. Este parecia ser um deles.

- Não consigo aceitar isso, Gonçalves !

- O que, chefe ?

- Ora, temos um homem, um executivo de uma empresa importante, morto. Assassinado com dois tiros por um rapaz numa moto. O criminoso foge. Mas uma testemunha anota o número da placa da moto. Passa esse número para uma moça loura, de vestido branco que também estava no local. Só que ela vai embora sem falar com os homens da policia que começavam a investigar o caso. Tudo isso nos é dito por uma terceira pessoa, um advogado que quase assistiu o crime e além disso esse advogado acrescenta que a moça se abaixou junto da vítima e que essa lhe sussurrou alguma coisa. É desesperador !

- Calma, doutor Afrânio. Ela ainda pode nos procurar.

- Mas, que procurar, Gonçalves, nós é que temos que achá-la.

- E como vamos fazer isso, chefe ?

- Não sei ! Não me pergunte ! Trate de encontrá-la para nós.

- Vou por mãos a obra, chefe .

Na piscina do clube de campo, Gilda exibia suas curvas perfeitas. Espichada numa espreguiçadeira ao lado dela, Catarina, sua amiga mais íntima deixava- se banhar pelo sol hesitante da primavera.

- É isso aí, amiga. Foi assim que aconteceu.

- Mas, Gilda, você não vai procurar a polícia ? O homem morreu, eu vi on-tem na net.

- Pois é, só que o Marcio me disse que eu não deveria fazer isso. Que é encrenca pura em que vou me meter.

- Ora, o Marcio ! Queria ver se o cara assassinado fosse algum parente próxi-mo ou muito amigo dele...

- O Marcio só está querendo me proteger, amiga.

- Não entendo como você pode namorar um chato desses.

- Ah, não fale assim ! Ele tem tantas qualidades...

- Claro ! O rapaz que manobra os carros na garagem do meu edifício tam-bém. Mas nem por isso vou namora-lo.

- Que comparação, Cathy

- Desculpe, não quis ser grosseira.

- Tudo bem.

- Mas olhe, amiga. Por que você não conversa com papai ? Ele é advogado criminalista e conhece um monte de gente na policia.

- Não, Cathy. Seu pai vai querer me convencer a fazer o que você já disse.

- Meu pai te adora, querida. Ele só vai dar a opinião dele, mais nada.

- Esta bem marque esse papo com seu pai, mas eu quero que o Marcio esteja presente, ok ?

- Combinado, amiga vou marcar com papai.

No apartamento de Marcio Rodrigues nada ficava fora de seu devido lugar. Mes-mo sendo solteiro, ele exigia de sua doméstica um nível rigoroso de ordem e limpeza. Gilda sempre se divertia com a mania de organizar tudo do namorado.

- Aquele imã da pizzaria está torto, Marcio.

- Que imã ? Ah, você tem razão, meu amor, deixe que eu ajeito. Como foi que eu não percebi ?

- Ora, querido, era uma coisa mínima. Eu falei só para mexer com você...

- É, mas a Guiomar tem o mau habito de não verificar a posição dos imãs, depois que limpa as portas da geladeira.

- Coitada da Guiomar, Marcio. Você exige demais dela.

- É ? Em compensação ela recebe o melhor salário entre as domésticas do edifício e tem um horário de trabalho bem camarada.

- Está certo, está certo. Escute meu bem, vá se arrumar. Temos que ir ao apartamento da Cathy as oito e meia.

- Não estou gostando nada dessa reunião.

- Ah, mas vai comigo lá. Ou então eu vou sozinha.

- Não, tudo bem, eu vou com você.

- Então ande logo.

O pai de Cathy era um dos mais renomados criminalistas do país. Não se limitava a defender réus no Rio de Janeiro. Freqüentemente era contratado para júris de outros estados. Agora, confortavelmente sentado em sua poltrona favorita, olha-va com simpatia a melhor amiga de sua filha.

- Então, Gildinha, será que convenci você sobre que atitude tem a tomar ?

- Espere, doutor Waldir, isso não pode ser resolvido assim com essa precipi-tação !

- Mas que precipitação, Marcio ? Sua namorada tem um dever a cumprir com sua própria consciencia e com a justiça.

- Não concordo com o senhor.

- Fique quieto, Marcio, quem tem que decidir isso sou eu.

- Mas meu amor...

- Como farei isso, doutor Waldir ?

- Bem, minha filha, o titular da delegacia de homicídios é um bom amigo meu, o doutor Afrânio Moreira. Vou conversar com ele antes de irmos juntos lá. Claro que não vou fazer isso profissionalmente no sentido de te cobrar alguma coisa para representar você. Faço como se fosse por minha própria filha de quem você é a melhor amiga.. Se você quiser vou ligar para o Afrânio agora mesmo.

- Gilda, não faça isso !

- Agora chega, Marcio. Tenho vinte e dois anos e sou formada em letras. Trabalho e sou responsável por meus atos e atitudes. Vá em frente, doutor Waldir, ligue para esse delegado.

- Tudo bem, querida, você quis assim. Depois não venha chorar no meu ombro e me dizer que eu tinha razão.

- Que eu saiba isso nunca aconteceu entre nós, Marcio. Olhe, deixe-me resolver este problema com a ajuda do doutor Waldir. Vá, vá encontrar seus amigos e beber um chopinho com eles.

- Estou indo. Com licença, Cathy , com licença, doutor Waldir. Até logo, Gil-da, eu telefono amanhã para você.

Marcio saiu sem beijar a namorada.

- Puxa, amiga, o Marcio ficou muito bravo com o que você lhe disse.

- É, as vezes a gente precisa assumir uma postura que não é muito agrada-vel para o machismo de um namorado. Mas eu tive que fazer isso.

- Ora, Gildinha, ele vai cair em si e até te pedir desculpas.

- Não sei, doutor Waldir. E o pior é que nem sei se estou me importando muito com isso. Bom, o senhor vai telefonar ao seu amigo delegado ?

- Vou. Acho que a essa hora ele vai estar na delegacia. Vamos ver.

O detetive Gonçalves atendeu rápido o chamado de seu chefe. Encontrou-o com a fisionomia acesa em seu gabinete.

- O que foi, doutor ?

- Gonçalves, estou tirando um peso de cima do meu peito.

- Diga logo, chefe, o que está acontecendo ?

- A moça, Gonçalves, a moça do vestido branco que testemunhou o crime e ficou com o número da placa da moto. Ela está vindo para cá com seu advogado, que é um velho amigo meu.

- Aleluia, doutor Afrânio !

- Aleluia mesmo. Vamos finalmente ter uma pista !

- Eles estão vindo agora ?

- Estão.

- E o seu jantar, doutor ? Está quentinho para o senhor .

- Ora, mande pô-lo no congelador, Gonçalves. Quem quer saber de comida numa hora dessas ?

- Deixe comigo , doutor. Depois a gente esquenta seu jantar no microondas novo ! É aquele filé de badejo com alcaparras e batatas cozidas.

- Deixe de ser sádico, Gonçalves, só porque já comeu seu sanduíche de presunto bem gorduroso e porque sabe que eu adoro filé de badejo. Vai, fora daqui !

- Estou indo, doutor, mas assim que a testemunha chegar o senhor me convoca para essa reunião, não é ?

- Ora, vou pensar. Você é um elemento perturbador nessas ocasiões.

- Que nada, chefe. O senhor não passa sem mim.

- Está bem, mas agora caia fora.

A cena estava montada. Gilda, o doutor Waldir, o delegado de homicídios e o indispensável detetive Gonçalves.

- Muito bem, Gilda. Este é o meu amigo, doutor Afrânio Moreira. Você pode falar com ele com a mesma tranqüilidade com que conversa comigo.

- Isso mesmo, Gilda. Estamos ansiosos para ouvir o que nos tem a dizer.

- Bom, o que vou dizer não é muito, mas antes preciso lhe entregar isto aqui.

- Ah, o número da placa da moto.

- Não posso lhe garantir que esteja correto, doutor Afrânio. Não fui eu que o anotei.

- Eu sei, eu sei, mas vamos checar isso logo. Tome aqui, Gonçalves, verifi-que com o Detran. Diga que temos a maior urgência.

- Deixe comigo, doutor.

- Como o senhor já deve estar sabendo, o homem assassinado balbuciou ou tentou me dizer alguma coisa antes de ser levado pela ambulância dos bombeiros.

- Isso ! E o que foi que ele conseguiu dizer ?

- Ele não chegou a completar sequer uma palavra. O que eu entendi foi alguma coisa como ade...a

- Ade...a só isso ? nada mais ?

- Só isso. Lamento não poder ajudar mais.

- Não ! Pelo contrário, me ajudou bastante. Ade...a, meu palpite é que ele tentou dizer um nome de mulher, quem sabe Adélia, ou Adelaide... Então, Gonçalves ? E o número da placa ?

- Placa fria, doutor.

- Humm isso já era de se esperar. E o assassino, Gilda, deu para você vê-lo ?

- Não, infelizmente. E se o tivesse visto, com o capacete que devia estar usando, não seria fácil descreve-lo. O rapaz que anotou o número da placa só o viu de costas também.

- Claro ! E o advogado que também deu seu depoimento só viu a moto se afastando

- Você parece estar com um mínimo de pistas, Afrânio.

- Eu ei, Waldir. Mas vou ter que trabalhar com o que disponho.

- Bem, se você não precisa mais de nós no momento...

- Não, não preciso. Obrigado por ter vindo, senhorita Gilda e obrigado a você meu amigo, por tê-la convencido de que não sou exatamente o monstro da lagoa negra.

- Isso porque ela ainda não o viu diante de um filé mal passado num restaurante...

- Calunias, senhorita, eu me alimento com a moderação de um passarinho. Obrigado mais uma vez e manteremos contato.

O delegado Afrânio parecia satisfeito com o sabor do badejo.

- O senhor está muito tranqüilo, chefe. Será que já resolveu esse caso e está me escondendo alguma coisa ?

- Calma, Gonçalves. Temos que seguir o método de Jack, o estripador.

- Que método é esse, chefe ? E quem é esse Jack ?

- Ah ! O Jack sempre trabalhava por partes, Gonçalves. E nunca foi apanha-do pela policia inglesa. Minha parte agora é comer este filé de peixe e rela-xar um pouco. Não podemos fazer mais nada esta noite. Humm que batatas deliciosas e essas alcaparras...

- Não sei não, doutor Afranio. Acho que o senhor está me escondendo alguma coisa...

- Te dou minha palavra como não, Gonçalves. Não se preocupe, nós dois va-mos resolver juntos o assassinato desse pobre Rodolfo. Coitado, todos di-zem que era uma ótima pessoa. Amanhã de manhã, Gonçalves, iremos conversar novamente com a viúva dele.

O dia de outono amanheceu sonolento. Tinha chovido de madrugada e as ruas ainda conservavam alguns trechos bem molhados. Pelas oito e meia o delegado Afrânio conseguiu falar com Silvia, a mulher da vítima e marcar uma entrevista em casa dela para as dez horas. Agora aproximavam-se da casa num condomínio da Barra. A porta foi-lhes aberta por uma criada de ótima aparência.

- Dona Silvia já vai descer. Pediu para os senhores se acomodarem e aceitarem um café ou um suco talvez...

- Não se preocupe, obrigado.

A casa, luxuosa, de dois andares, era decorada com muito bom gosto. No topo da escada, Silvia saudou os dois homens e desceu rapidamente.

- Bom dia, delegado, veio me trazer uma noticia boa ?

- Ainda não, dona Silvia. Mas quem sabe, com sua ajuda ...

- Minha ajuda ? Como assim ?

- Bem, agora, pelo menos sabemos o que seu marido disse antes de morrer.

- Sabem ? E o que foi ?

- Parece que ele tentou dizer um nome, alguma coisa parecida com ade....a.

- Ade...a ? E o senhor tem alguma idéia do que seja ?

- Aí é que a senhora entra, dona Silvia. Eu acho que é um nome de mulher. Pense bem e me responda: Há alguém chamada Adelia, Adele, Adelaide que seja de suas relações ? Ou mesmo uma doméstica ou ex- doméstica ?

- Não, doutor Afrânio, não consigo me lembrar de ninguém com um nome assim.

- Muito bem...e na empresa que seu marido dirigia ?

- Aí, doutor, não posso afirmar. Conheço apenas a Inês, secretária do meu pobre Rodolfo e antes dela a secretária dele chamava-se Luci.

- É, parece que por aí não vamos descobrir nada.

- Desculpe-me, gostaria tanto de ser mais útil para a sua investigação.

- Não se preocupe com isso. Peço-lhe apenas que volte a pensar no assunto.. As vezes a memória nos engana temporariamente.

- Vou me esforçar, doutor Afrânio. Se me lembrar de algum nome mesmo vagamente parecido, telefonarei ao senhor em seguida.

- Muito obrigado. Vamos, Gonçalves.

Novamente na rua, Gonçalves perguntou a seu chefe :

- E aí, doutor Afrânio? Será que não vamos descobrir nada?

- Não seja pessimista, Gonçalves, claro que vamos elucidar esse assassinato.

- Mas a viúva, chefe, tínhamos tanta esperança nela...

- Vamos tocar o barco para a frente. Estamos indo na empresa que o Rodol-fo dirigia.

A RTS Engenharia. era uma empresa tradicional. Durante anos fora proprie-dade do pai de Rodolfo, até que, quinze anos atrás, tinha sido transformada numa S.A. Tinha se expandido muito. Mas a família continuava como acio-nista principal, detendo sessenta e cinco por cento das ações com direito a voto. Sua principal atividade era a construção de estradas, pontes e viadutos. Por isso era um tanto dependente do governo. E nos últimos anos começara a conduzir seus interesses para outros paises além do Brasil.

Afrânio e Gonçalves foram recebidos pelo diretor de pessoal.

- Então , doutor Afrânio ? O que posso fazer pelo senhor e sua investigação ?

- Temos um fio de esperança, doutor Borges. Seu amigo Rodolfo murmurou o que parece ser um nome, antes de entrar em coma.

- Um nome ?

- Sim e me parece ser um nome de mulher.

- E o senhor quer que nós...

- Quero que o senhor forneça todo o cadastro do pessoal empregado aqui ao meu detetive, o Gonçalves. Enquanto ele o examina, se lhe for possível, o senhor me fornece algumas informações complementares.

- Claro que é possível , vamos tratar disso imediatamente.

- Lhe agradeço muito.

Todas as pesquisas resultaram infrutíferas. Com toda a persistência do delegado Afrânio, ele terminou por deixar de lado essa linha de investigação.

Algumas semanas se passaram. A mídia havia ,de muito, abandonado o caso.

Outros assassinatos, mais ou menos importantes, tinham chegado a delegacia de homicídios. Vários deles tinham sido esclarecidos e as prisões efetuadas.

Mas, numa chuvosa manhã de sábado, um motoqueiro foi detido para investi-gações relativas a um assalto seguido da morte de um comerciante em sua loja de Ipanema. Ao saber da ocorrência, o doutor Afrânio interessou-se vivamente.

- Temos que interrogar esse homem, Gonçalves. O doutor Abreu é o titular da delegacia em que o sujeito foi detido, não é ?

- Ele mesmo, chefe.

- Ótimo, é um excelente policial e um homem flexível, vou falar com ele.

Após um contato telefônico com seu colega, Afrânio rumou para a delegacia em questão. Foi bem recebido por seu colega.

- Então, meu caro ? Como andam as coisas ?

- Razoavelmente, Abreu. De vez em quando conseguimos algum sucesso.

- Ora, não seja tão modesto. Ninguém, na Secretaria pode ignorar a eficiên-cia do seu trabalho, meu amigo.

- Exageros.

- Bem, mas qual é seu interesse em interrogar o motoqueiro detido aqui ?

- É um tiro no escuro, Abreu. Você deve saber, estou engasgado com o assassinato de Rodolfo Sarmento .

- Eu sei. A investigação não avançou muito, não é ?

- Melhor dizer que não avançou nada.

- Que coisa ! E você está achando possível que este assaltante que detivemos pode ter alguma coisa a ver com o crime ?

- É uma tentativa, meu amigo. Não posso me dar ao luxo de despreza-la.

- Está certo. E você quer participar do interrogatório desse bandido ?

- Se você me permitir, quero.

- Claro que permito ! Uma mão lava a outra e você já lavou a minha várias vezes. Vou mandar colocarem o homem na sala de interrogatórios.

- Posso lhe pedir que o Gonçalves, meu detetive acompanhe o interrogatório também?

- Claro que sim, Afrânio. Sei que ele é seu braço direito.

- É um colaborador fiel e eficiente que tenho.

- Olhe, o detido está a nossa disposição. Vamos começar ?

- Vamos.

- Anime-se, quem sabe não surge uma luz no fim do túnel ?

- Que seja uma luz bem clara, Abreu .

- Vai ser sim. Você vai sair dessa escuridão desconfortável.

O homem detido era bem jovem. Tinha uma aparência boa, parecia um rapaz educado, de classe media. Exprimia-se bem, sem cometer erros grosseiros de português. Mas tinha uma expressão determinada, hostil no rosto. O delegado Abreu adiantou-se.

- Então, rapaz. Que tal confessar tudo e acabar com isso ?

- Não tenho nada para confessar.

- Tem sim. Você está mais do que enrolado. Temos todas as provas incrimi-nando você. Confesse logo.

- Não vou dizer mais nada. Quero um advogado.

- Se você é inocente, para que quer um advogado ?

- Tenho esse direito !

- Ah, vamos falar em direito então. E o lojista que você matou ? Ele não tinha o direito de continuar vivendo ?

- Não fui eu ! Quantas vezes vou ter que repetir isso ?

- Está aí, doutor Afrânio. O rapaz afirma que é inocente. O que o senhor acha de tudo isso?

O delegado Afrânio aproximou-se do criminoso. Ficou frente a frente com ele observando-o com ar de quem está num museu vendo uma obra de arte. Seus olhos procuraram os do rapaz,mas este desviou os dele rapidamente.

- Muito bem, Vitor, é Vitor o seu nome verdadeiro, não é ?

- Está nos meus documentos.

- Claro, claro. Pois é Vitor, o doutor Abreu pediu que eu viesse aqui para es-clarecermos se a foto que eu tenho comigo, foto de você atirando num homem de terno cinzento caído numa calçada, é mesmo uma foto sua.

- Foto ? Que foto ? O senhor está querendo me enrolar.

- Não, Vitor, não estou. Os computadores hoje fazem milagres. E esse seu capacete deixa ver bem seus olhos, nariz e boca. A foto é sua mesmo. E tem mais, as balas que você usou no crime estão no instituto de criminalística. Vai ser muito fácil provar que saíram de alguma arma sua,É uma pena você não querer colaborar, poderia melhorar sua situação.

- Que situação ? Vocês não podem provar nada.

- Podemos sim, Vitor. Você vai ser preso e indiciado. Mas antes quero dizer uma coisa a você. Se você conseguir aguardar seu julgamento em liberdade, tome muito cuidado. A pessoa que contratou você para matar Rodolfo Sar-mento também vai mandar executarem você. Seu carrasco vai ser um cri-minoso que ataca de moto, como você mesmo.

- É mentira ! O senhor está blefando !

- Bem, já que você está assim tranqüilo, vou parar de lhe fazer perguntas, deixo para o doutor Abreu e sua equipe, o trabalho de incriminar você definitivamente. Adeus e boa sorte.

- Espere ! Como o senhor sabe que vão tentar me matar ?

- Ora, Vitor...você acha que quem te contratou para matar Rodolfo Sarmen-to vai querer correr mais riscos ? Sua morte vai ser uma queima de arquivo, rapaz...

- Aquela vaca ! Mulher miserável ! Com aquela carinha de grã-fina nojen- ta! Mandou matar o marido pra ficar com a grana toda ! Vou contar tudo. Ela me paga !

- Espere ! O doutor Abreu voltou-se para a porta. Vou mandar vir o escrivão. Vamos tomar seu depoimento.

Vitor começou a depor, continuava com um ar de desafio. O doutor Afrânio, a pedido de seu colega, o delegado Abreu, conduzia o depoimento do assassino.

- Então, Vitor ? Como foi que dona Silvia lhe contratou ?

- Ela ligou para meu celular. Perguntei quem tinha dado meu número a ela mas ela não quis me dizer. Fiquei cabreiro com isso. Mas ela insistiu em falar comigo pessoalmente. Disse que não podia ser perto da casa dela. Marcou comigo numa lanchonete bem movimentada, em Copacabana.

- E aí ?

- Aí eu fui me encontrar com ela. Uma grãfina bem sonsa mesmo. Tem um rosto de anjo, mas é uma víbora, a miserável !

- E o que ela lhe disse ?

- Que queria que eu matasse um homem. Não me disse o nome dele. Tinha cinco ou seis fotos dele, visto por mais de um lado e de frente. Eu insisti para ela me dizer o nome mas ela não quis mesmo. Disse-me que ele sem-pre ia a um banco as quartas-feiras, a pé, perto do escritório dele, logo depois do almoço. Que era para eu fazer o serviço quando ele saísse da agencia. Ela sabia direitinho o caminho que ele sempre fazia para voltar ao escritório.

- E você ?

- Eu disse que era um trabalhinho difícil. Mas ela riu e disse que pagaria muito bem.

- Quanto você pediu ?

- Ah, isso eu não vou dizer. Mas ela tentou um abatimento no meu preço, a desgraçada. Com todo aquele dinheiro na mão. Claro que eu não abaixei meu preço. Então ela me disse que eu não pisasse na bola. Que a pessoa que tinha me indicado para ela sabia de tudo sobre mim.

- E você acreditou nela ?

- Eu tinha que acreditar, doutor. Muito poucas pessoas têm meu celular. Ela falava com muita segurança.

- E então ?

- Então nós fechamos negócio e ela me adiantou uma parte da grana. O resto ela me entregaria na mesma lanchonete no dia seguinte ao serviço. Eu aceitei.

- E ela cumpriu o trato ?

- Claro que cumpriu. Bom, o resto o senhor já sabe.

- Você será acareado com a mandante do crime. Não vai dar para trás na ho-ra, não é ?

- Juro que não doutor. Se eu vou ter que pagar, ela também vai.

Na sala do delegado Abreu, ele e o delegado Afrânio trocavam impressões após o depoimento de Vitor.

- Meu amigo, tenho que lhe dar meus parabéns. Você foi magistral na con-dução desse interrogatório. Olhe, houve um momento em que você quase me convenceu com aquela historia da foto do Vitor. Que loucura !

- Ora, você teria conseguido a confissão dele de qualquer jeito.

- Não, acho que não. Ele estava muito seguro e eu não dispunha de provas.

- De qualquer forma, agora sabemos que existe uma pequena rede de moto-ciclistas assassinos em nossa cidade. A mídia vai acabar chamando-lhes de moto- killers ou algo assim.

- É bem provável. Os repórteres adoram essas coisas. E agora ? Você vai ter que acarear esse assassino com a mandante do crime.

- É, vai ser um negócio complicado. Ela vai fazer tudo para se furtar a isso. Vai contratar os melhores advogados, alegar falta de condições psicológicas para comparecer a uma delegacia. Não vai ser nada fácil.

- - Com certeza, meu amigo.

Três semanas depois, as coisas tinham chegado a seus devidos lugares. Silvia Sarmento fora indiciada e detida. Logo fora solta,claro, era ré primaria e tinha bons antecedentes. Esperava agora em liberdade pelo seu julgamento. Por sorte, o único filho de Rodolfo era de um casamento anterior no qual ele enviuvara. Mesmo assim, o rapaz , que acabara de completar vinte e um anos, ficou muito chocado. Mas tinha o tempo a seu favor. Silvia mudara-se a contragosto para um apartamento. Terminavam assim suas mordomias e fartura de dinheiro. Continuava a negar obstinadamente, contra todas as evidencias, sua culpa. O delegado Afrânio recebera um simpático convite, o doutor Waldir, sua filha Cathy e Gilda, ofereciam-lhe um jantar informal para comemorar a solução do caso e o detetive Gonçalves fora incluído no mesmo Agora, confortavelmente sentados no apartamento de Waldir, saboreavam gostosos canapés, regados por um vinho branco delicioso.

- Você foi perfeito, Afrânio !

- Pode parar , meu amigo. Não vim aqui para receber elogios indevidos, mas para saborear um delicioso salmão ao creme. Sua filha Cathy fez quês-tão de me contar como é preparado.

- Isso mesmo, doutor Afrânio. Estamos aqui para comemorar, não é Gilda ?

- Claro que é. Mas gostaria de fazer uma pergunta ao ilustre homenageado. Posso , doutor Afrânio ?

- Pode, Gilda, pergunte-me o que quiser.

- Afinal, o que significava o Ade...a as últimas palavras do coitado assassi-nado tão brutalmente ?

- Bem, isso realmente não foi comentado pela mídia. Mas Ade...a foi uma tentativa do agonizante de pronunciar oi nome Adélia.

- E quem é essa Adélia ?

- Ah, esse é o ponto. Adélia é uma prima dele, foram praticamente criados juntos. Acho que ele queria, Gilda, que a procurássemos.

- E por que ?

- Porque ela não confiava em Silvia e possivelmente tinha transmitido alguma suspeita a Rodolfo que, ao morrer lembrou-se disso.

- Que legal ! O senhor descobre tudo, não é doutor Afrânio ?

- Meu chefe é um gênio, dona Gilda !

- É mesmo !

- Fique calado, Gonçalves, ou peço a Cathy para fazer um prato para você e te levar para comer lá embaixo, no meu carro. E sem ar refrigerado ligado.

- Puxa, doutor, quem ouve o senhor falar assim até pode acreditar...

- Gente ! O jantar está servido. E para comemorar o sucesso desse caso, o salmão passa a se chamar , de hoje em diante, Salmão a Afrânio Moreira !

- Maravilha, Cathy e o assassino falou demais, morreu mesmo como um peixe, pela boca !

George Luiz
Enviado por George Luiz em 22/02/2008
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