O relógio verde

George Luiz - O relógio verde

Eram mais de onze horas quando Evaristo chegou em casa aquela noite. Seu dia de trabalho tinha sido cansativo. Comera um sanduíche, as pressas no bar do Zé ao meio dia, bebera um suco e retornara ao escritório.

Com a chuva, o trânsito estivera difícil e ele agora queria um bom chuveiro e ca-ma. Ainda respingando água, entrou na cozinha. Pablo, seu gato siamês olhou-o esperançoso. Ele abriu o armário e retirou o saco de ração.

Olhou o relógio verde ao deitar-se. Ligou a TV num volume baixo, aquilo sem-pre lhe dava sono. Não demorou a adormecer.

A madrugada trouxe de volta a fome. Evaristo acordou as quatro e meia, um bu-raco no estomago. Calçou seus chinelos macios e voltou à cozinha. Resolveu fa-zer um par de torradas e beber um leite com achocolatado. Pablo tinha comido quase toda a sua ração. Esfregava-se em suas pernas, ronronando baixinho. O calor ainda era grande e Evaristo tomou mais uma ducha fria. Deitou-se outra vez. O relógio verde tocou....cinco horas.

Não havia nada que irritasse tanto Evaristo Lopes como dormir pouco. O sono era como um alimento para ele. Mas essa madrugada estava inquieto. Ouvia com nitidez o tic tac do velho relógio alemão. Tinha pertencido a seus avós pa-ternos esse relógio. Não era muito grande. Marcara com precisão o percurso na vida de três gerações de uma mesma família. Sua madeira, mogno laqueado de verde escuro, resistira bravamente à corrosão da maresia que entrava pelas já-nelas do apartamento...Sem sono, Evaristo lembrou-se do rosto severo do a-vô,do rosto doce, de olhos azuis de sua avó Cecília. Curiosamente, seus pais pareceram aliviados quando ele levou o relógio consigo ao ir morar sozinho. Talvez ele os fizesse lembrar-se da morte de Noemia, a filha caçula que uma pneumonia traiçoeira levara aos nove anos e que passara suas últimas horas arquejante, procurando em vão encher seus pequenos pulmões de ar. O relógio verde fora testemunha de alegrias e sofrimento. Seu mostrador de números romanos guardara o mesmo brilho, a mesma indiferença. Impassível, para ele não parecia importar a passagem inexorável do tempo.

Evaristo, finalmente, adormeceu.

O escritório da Almeida & Fernandes era bem moderno. Não tinha sido sempre assim. Mas a tradição perdera a batalha contra a inovação e os moveis atuais eram todos funcionais e confortáveis. Joana, uma das secretarias, interfonou para Evaristo:

- O doutor Aquiles numa ligação de Florianópolis, doutor. O senhor vai atender ou digo que está ocupado ?

- Tudo bem, Joana, vou atender.

- Alô, como vai, Evaristo ?

- Bem, obrigado, e você ?

- Também estou tranqüilo.

- Ótimo...

- Queria lhe pedir uma gentileza especial.

- Diga lá...

- É minha sobrinha, a Laura. Ela está indo ao Rio comprar livros estrangei-ros e outras coisas para usar na faculdade. Vai passar três ou quatro dias aí.

- Entendo. Se eu puder ser de alguma utilidade para ela...

- Bem, como eu sei que você é um leitor inveterado, pensei que talvez pu-desse leva-la a uma ou duas livrarias realmente boas.

- Claro, meu amigo, será um prazer. Forneça-lhe meu celular por favor.

- Te agradeço antecipadamente.

- Imagine ! Diga – lhe que não deixe de me procurar.

Laura ligou para o celular de Evaristo numa terça-feira. Viajaria para o Rio na tarde do dia seguinte. Ele prontificou-se a ir busca-la no aeroporto. Ela se descreveu fisicamente para ele e disse que roupas estaria usando. O vôo atra-sou uns vinte minutos. Já escurecia quando Evaristo a recebeu no saguão do aeroporto. Laura parecia mais jovem do que ele esperava. Usava um rabo de cavalo e óculos de grau de armação pesada, era alta e magra; Evaristo a rece-beu com amabilidade.

- Então ? Cansada da viagem ?

- Que nada ! Foi um vôo ótimo.

- Vamos pegar sua bagagem na esteira.

- Está bem, é só uma valise e nada pesada.

- Pensei em irmos jantar num restaurante de comida japonesa, em Copa-cabana, o que acha ? Quer passar antes no hotel em que tem reserva ?

- Acho perfeito. Gostaria de tomar um chuveiro e me ajeitar antes de sair-mos.

- Então está resolvido. Vamos pegar sua valise.

Evaristo estava sentado no saguão do hotel, quando uma garota linda saiu do elevador e encaminhou-se para ele.

- Então, vamos ?

- Você...você...

- Claro que sou eu, a Laura...

- Desculpe, é que não lhe reconheci assim, como posso dizer ?

- Vestida para sair ? Produzida ?

- É, mas seu rosto, tem alguma coisa diferente.

- Bobo ! Tirei meus óculos. Estou usando minhas lentes de contacto.

- Você está deslumbrante !

- Obrigada. Podemos ir ? Estou com fome...

No restaurante japonês, a beleza de Laura chamava a atenção. Evaristo não se cansava de olha-la.

- Acho que você não deveria me olhar tanto, estou ficando intrigada.

- Desculpe...é que estou encantado com você.

- É serio ? Então fiz uma conquista ?

- Ora, você sabe muito bem que conquistaria quem você quisesse aqui.

- Hummm é animador ouvir isso de você. Isso significa que você vai me levar para dançar depois do jantar ? Vai me beijar na boca ?

- Bem, eu...

- Que gracinha ! Você ficou corado...

- Você é bem desinibida.

- Já sei, você achou que uma catarinense, mesmo uma universitária, não seria tão audaciosa como eu...

- Eu não disse nem pensei isso, Laura.

- Tudo bem, mas vai me levar para dançar com você ?

- Vou.

O quarto de Evaristo estava na penumbra. Laura e ele estavam na cama, nus. A

garota o fitava com uma expressão estranha, parecia uma fera no cio. Eles se enlaçaram, se embolaram sobre o lençol.

Horas depois a luz da manhã iluminou o quarto.Evaristo acordou sobressaltado. Que horas seriam ?

Uma forma meio rígida estava quase encostada nele. Ele a olhou assombrado. Deitada numa posição esquisita, Laura arregalava para o teto seus olhos sem vida. Sua boca estava aberta e dela pendia a língua violácea. No pescoço, as marcas dos dedos de Evaristo.Meu Deus ! Ele a matara ! O rapaz ouviu, horrori-zado o relógio verde batendo as sete horas. E prosseguindo no seu tic tac horrendo, sinistro, implacável, para sempre...

George Luiz
Enviado por George Luiz em 28/02/2008
Código do texto: T879747