A morte preenche suas casas

George Luiz – A morte preenche suas casas

Dolores correu desesperada. A pequena floresta era densamente arboriza-da. Alguns espinhos arranharam suas pernas ,seus braços, seu rosto. Ela não ousava olhar para trás. Sentia, mais do que ouvia os passos de seu perseguidor. Finalmente divisou uma trilha a sua direita e enveredou por ela. Um objeto, pesado, contundente, atingiu um de seus ombros. Dolores caiu, atordoada ao solo. Seu algoz aproximou-se com uma expressão fria nos olhos azuis.

Há algum tempo a policia se esforçava para localizar um serial killer. Não era um matador qualquer. A ele já eram atribuídos mais de quarenta homi-cidios nos últimos três anos.As marcas registradas do matador eram duas.

A arma empregada, um objeto contundente que causava fraturas no corpo das vítimas, especialmente na cabeça. E a escolha das mesmas,geralmen-te prostitutas, desde as mais comuns, até sofisticadas garotas de progra-ma. A delegacia de homicídios, até então, não conseguira maiores pistas.

- Aconteceu novamente, chefe !

- O que aconteceu, Gonçalves ?

- O serial killer ! Uma mulher jovem de uns vinte e poucos anos foi en-contrada morta na floresta da Tijuca. O crime foi cometido com gol-pes de um objeto contundente. O corpo ainda está lá, doutor Afrânio.

- Vamos rapidamente vê-lo, Gonçalves,antes que destruam algum indi- cio.

Nem o golpe que afundara parcialmente a fronte da moça assassinada, conseguira ocultar sua beleza. Outros golpes tinham lhe contundido um ombro e fraturado uma de suas clavículas.

Suas mãos, crispadas, revelavam o terror que sentira, E na luta para esca-par do matador ela tinha perdido uma de suas sandálias.

Não havia, num exame superficial, qualquer sinal de estupro. Assim, nada indicava que se tratasse de um crime sexual. O delegado Afranio sacudiu a cabeça.

- Nada, Gonçalves. Vamos esperar os laudos da perícia e do IML. Aqui, por enquanto, não há nada a fazer.

Numa sala confortável um homem sentou-se à uma mesa. Sobre ela estava um tabuleiro de xadrez. Muitas das casas pretas e brancas estavam preen-chidas por moedas de um real. O homem colocou uma nova moeda sobre uma das casas vazias.

Havia uma série de teorias sobre os assassinatos de mulheres pelo serial killer. Mas todas esbarravam num problema. Qual seria a motivação do as-sasino ? Nenhuma das vítimas tinha sido estuprada, molestada sexualmen-te. No entanto, , várias delas eram prostitutas ou garotas de programa, co-mo se convenciona denominar as mais jovens e bonitas. O assassino não tinha um tipo físico definido para suas vítimas, nenhuma preferência por louras, morenas, mulatas, negras ou asiáticas. O delegado Afrânio voltou-se para o inspetor Gonçalves.

- Quase três anos, Gonçalves. Praticamente trinta e seis meses tate-ando no escuro sem vislumbrar qualquer luz, mesmo distante. É desa-nimador...

- Eu sei, chefe. Mas o senhor mesmo diz que uma das maiores virtudes de um investigador criminal é a persistência. E que outra é a pacien-cia.

- Sim. Mas tudo tem um limite e o meu em relação a esse matador está se esgotando. Esse desgraçado está me fazendo de bobo.

- Não fale assim, chefe. Eu continuo a pensar que o senhor o pegará, mais dia menos dia.

- Se pelo menos soubéssemos o que o leva a matar. Tem que haver um motivo, Gonçalves.

- Um distúrbio mental permanente, chefe...

- Sim. Mas que tipo de distúrbio ? Se ele as estuprasse saberíamos que o problema é de origem sexual. Mas ele não faz isso. É verdade que as vítimas em sua maioria são profissionais do sexo,mas algumas de-las são mulheres que exercem profissões mais convencionais.

- Uma coisa me intriga,chefe. Por que ele só escolhe mulheres bonitas, ou pelo menos, muito atraentes fisicamente ?

- Difícil determinar a razão exata disso . E já são mais de quarenta, Gonçalves. A mídia, a imprensa já estão escarnecendo da policia. Do nosso trabalho.

- Eles terão sua resposta , chefe, quando o senhor esclarecer o caso e prendermos o miserável.

- Eu gostaria de ter essa confiança, Gonçalves...

Um mês se passara. Com o grande número de homicídios que ocorria nor-malmente na cidade, O delegado Afrânio Moreira deixara de lado o caso do serial killer. Mas não o esquecera. Seu faro de investigador o mantinha li-gado em tudo o que dizia respeito a homicídios. Contudo, o serial killer ain-da não tinha se manifestado outra vez.

No mais conhecido clube de xadrez da cidade,dois homens se defrontavam em um match do campeonato regional. Um deles era um homem de meia i-dade que usava uma barba grisalha, espessa. Tinha uma expressão tran-quila, apesar de sua visível concentração no jogo. O outro era bem mais jô-vem. Não aparentava um dia a mais de uns trinta anos. Louro, olhos azuis, era um jogador agitado. Levantava-se volta e meia de sua cadeira, andava perto da mesa, franzia e desfranzia a testa. Ao fim de trinta e dois lances, o competidor mais velho propôs o empate. O mais novo olhou com raiva o tabuleiro, mas acabou aceitando. Depois, cumprimentou seu adversário e retirou-se rapidamente.

- Viu como o gringo se revoltou por ter que ceder o empate ?

- Ele não é gringo, Artur, é apenas filho de russos.

- Para mim é gringo, com aqueles olhos azuis meio desbotados e o ca-belo louro, fino e liso. Te digo uma coisa, amigo.Esse cara é muito esquisito. Tem a expressão de um criminoso, talvez até de um assassino.

- Ora, Artur, você anda lendo Agata Christie ?

- Não ando não. Mas se você me perguntasse o que acho desse cara, eu te responderia que ele tem todo o tipo de um matador, um cérebro conturbado.

- Sei, sei. Anda, vamos beber uma cerveja bem gelada.

O matador estava sentado frente à sua mesa. Nela o tabuleiro de xadrez se destacava sob a luz forte e direcionada sobre ele.Ele sentiu que sua dor de cabeça aumentara. Levantou-se e, no armário do banheiro, pegou outro comprimido. Suas têmporas latejavam. Ele molhou a cabeça com a água fria da torneira. Tomou o comprimido e bebeu o restante da ´água fria com que enchera o copo de plástico.Olhou-se no espelho sobre a pia. Por fim saiu em passos rápidos para a sala.

Na noite escura de Copacabana, as prostitutas andavam lentamente sobre o calçadão.Não havia lua ou estrelas. O tempo estava encoberto. Um carro diminuiu sensivelmente a velocidade e parou junto a uma lourinha de mini-saia e botas de cano longo. O motorista dirigiu-se a ela.

- E aí, quanto você quer por um programa completo ?

- Depende do que você chama de programa completo.

- Quero você num motel, na Barra, pelo resto da noite. Diga quanto vo-cê quer.

- Pelo resto da noite ? Quero quinhentos reais.

- Fechado. Entre no carro.

- Quero a grana adiantada.

- Tudo bem, tome aqui, dinheiro vivo.

A garota pegou o dinheiro e entrou no carro. Ele arrancou em direção ao Leblon. As luzes da madrugada piscavam repetidamente. O carro atingira a avenida Sernambetiba. O homem parecia concentrado no volante.

- Em que motel vamos ?

- No meu preferido.

- Mas aqui é a praia.

- Gosto de respirar o ar marinho.

- Por que parou aqui ?

- Venha, vamos caminhar um pouco.

- Na areia ? Este lugar é perigoso.

- Que nada ! Sempre caminho aqui.

- De madrugada ?

- Isso mesmo. Estou te pedindo alguma coisa errada? Alguma tara ? Alguma perversão ?

- Está bem, vamos.

A garota saltou agilmente do carro. O homem a seguiu. Caminharam em di-reção ao mar.

- Não vai querer fazer sexo na areia, não é ?

O homem não respondeu. A garota parou desconfiada.

- Você não é de falar muito, não?

- Falo só o essencial.

De repente , Daisy, a prostituta, estremeceu. Como do nada, surgira um ob-jeto na mão direita do homem, uma espécie de martelo, de cabo curto. Ela ficou imóvel. O homem avançou para ela. Tentou golpeá-la no peito. Ela se esquivou, mas ele era implacável. Golpeou de novo e acertou-lhe o queixo, de raspão. Ela gritou de dor e medo. Tropeçou na areia e caiu. O criminoso tornou a atacar. Ela agarrou-se em sua camisa, desesperada. E então, de um carro que rodava devagar um homem viu a cena. Parou e saltou do car-ro. O matador hesitou. Tentou livrar-se do abraço desesperado da garota em seu corpo, suas pernas. Alguma coisa em sua roupa se rasgou. Ele des-fechou um último golpe com a estranha arma. A garota se estatelou na areia e ele correu para seu próprio carro. O homem, ainda correndo em di-reção à cena não o perseguiu. Preferiu socorrer a mulher imóvel sobre a a-reia. Sua companheira saltou do carro e correu para eles. Enquanto ligava para 190 pedindo auxilio ele observou que a garota ainda respirava. Rezou para que uma ambulancia chegasse logo. Sua namorada percebeu então que havia alguma coisa caida junto a uma das mãos da vítima. Era um pedaço de tecido, um bolso, certamente arrancado da camisa do agressor.

Observando melhor ela viu que também havia um pedaço de papel.

A garota de programa estava na UTI de um hospital, lutando contra a mor-te. Na delegacia de homicidios, aquela manhã, o delegado Afranio Moreira examinava os indicios colhidos no local do crime.

- Você joga xadrez, Gonçalves ?

- Eu, chefe ? Mal sei movimentar as peças num jogo de damas.

- Pois eu joguei xadrez, como adolescente e durante alguns anos.

- Não joga mais, chefe ?

- Não. Parei quando percebí que teria de estudar muito para me tornar apenas um enxadrista regular, sem qualquer brilho.

- É tão dificil assim, doutor Afranio ?

- É sim. Você já examinou com cuidado este pedaço de papel dobrado ? Ele foi encontrado na areia junto a uma das mãos dessa garota ata-cada pelo serial killer.

- Tem certeza que foi ele, chefe ?

- Tenho. Os golpes, as marcas da arma usada, é o nosso homem, Gon-çalves.

- E o papel, chefe, o que significa ?

- O papel é parte de uma página de bloco. Os clubes e federações de xadrez usam esses blocos para anotar os lances de uma partida.

- E como vamos descobrir quem é o jogador ? Só há umas anotações esquisitas nesse aí.

- Essas anotações vão nos ajudar, Gonçalves. Pelo menos é o que eu espero. Daqui a pouco um amigo meu, um craque nesse jogo, estará chegando aqui. Confio na opinião dele para tentar chegar nesse cri-minoso desgraçado.

- É incrivel, chefe ! Se não fosse o senhor que está me dizendo isso, eu acharia que era um blefe.

Davi Curvelo era um homem de estatura mediana,com um ar meio abstrato nos olhos protegidos por grossas lentes.

- E então, Afranio ? Nunca pensei em ser chamado por você para ajudá-lo na elucidação de um caso policial. Como poderei fazê-lo ?

- Bem, meu amigo. Quero que dê uma olhada nessas anotações de um enxadrista, nessa partida, e me diga o que acha.

Davi Curvelo examinou atentamente o pedaço de papel. Ao fim de uns dez minutos voltou-se para Afranio.

- Bem, Afranio. Em primeiro lugar, devo dizer que foi uma partida entre dois jogadores muito fortes, dois mestres. O jogo terminou empata-do. Realmente, seria dificil um deles sair vencedor.

- Seria um absurdo que eu pedisse a você para identificar um dos com-tendores. Mas, em que pode me ajudar ?O que você me sugere ?

- Olhe, o campeonato de xadrez da cidade está em plena realização.

- Sim. Você está participando dele ?

- Não. Tenho jogado e estudado pouco. Mas acho que poderiamos con-versar com o árbitro geral e com alguns participantes.Provavelmente chegaremos aos dois homens que jogaram essa partida. Podemos fa-zer isso , se você quiser, ainda hoje, no inicio da noite.

- Se eu quero ? Se sua sugestão der certo, Davi, estarei com a possibi-lidade de prender o autor de mais de quarenta homicidios.

- Não diga ! Um serial killer ? Esse de quem a midia já falou tantas ve-zes ?

- Ele mesmo,meu amigo.Já é mais do que tempo de engaiolarmos essa ave carniceira. Há quase três anos estamos tentando prendê-lo.

Davi Curvelo, o delegado Afranio Moreira, o inspetor Gonçalves e mais um policial à paisana, chegaram ao clube de xadrez um pouco antes do inicio da rodada daquela noite. O árbitro geral já lá estava. Os cinco homens conversaram por alguns minutos. Depois, Gonçalves e o outro detetive colocaram-se em posições estratégicas, um no bar e o outro no jardim da casa antiga em Botafogo que era a sede do clube.

- Lembre-se, coronel Arruda. Não quero chamar a atenção para o pro-blema. Se nosso palpite estiver certo, não posso despertar a suspeita do criminoso e provocar uma evasão dele.

- Não se preocupe, doutor Afranio. Vamos ser bem discretos. Deixe-me antes de tudo identificar quem jogou essa partida. Só houve duas ro-dadas até agora. Não vai ser dificil.

Pouco depois, as sete e meia, o clube começou a ficar bem mais movimen-tado. A rodada daquela noite ia se iniciar.

O assassino chegou as cinco para as oito, consultou o árbitro geral e sen-tou-se em frente ao seu adversário daquela noite. Ia jogar com as peças brancas. Mas não fez sequer o primeiro lance da partida. Abordado pelo inspetor Gonçalves, reagiu com violencia,mas foi logo imobilizado pelo po-licial, assessorado pelo outro detetive. Houve um pequeno inicio de tumul-to, mas logo o serial killer foi retirado do local e conduzido, algemado, à delegacia de homicidios. Seu nome era Ivan Liubov, tinha vinte e oito anos e nenhuma passagem pela policia.

- Então, Ivan ? Vai facilitar as coisas e confessar tudo ao delegado Afranio?

- Não sei do que estão falando. Não podem me acusar sem provas. Não fiz nada. Não sei de nada.

- Estamos obtendo um mandado de busca para sua casa, Ivan. Você não tem nada escondido lá, não é ? E depois, a garota que você ata-cou, a Daisy, vai sair da UTI. Vai reconhecer você.

O rosto de Ivan contorceu-se num espasmo de agonia e raiva.

- Seus demonios ! Aquela garota é uma puta !

O delegado Afranio,que estivera calado assistindo ao interrogatório, adian-tou-se.

- Olhe ,rapaz. É melhor você colaborar conosco.

- Colaborar em que ? Sou um homem inocente.

- Claro...você tem quarenta e duas mortes nas costas. Com essa se-riam quarenta e três. Colabore conosco. Um bom advogado poderá alegar sua insanidade mental, você poderá ir para uma instituição médica ao invés de uma penitenciaria.

- Não sou nenhum maluco !

- Está bem, está bem. Recolha-o a uma cela , Gonçalves. Uma noite de sono talvez faça nosso simpático assassino mudar de idéia.

A verdade geralmente tem um efeito devastador. De posse do mandado de busca, o delegado de homicídios teve como vasculhar a residência do se-rial killer. Havia nela, além da arma dos crimes, um curioso martelo de ca-bo curto, um diário do criminoso, altamente comprometedor. Nele estavam anotados os homicídios, com suas datas e locais, alguns com os nomes das vítimas. O tabuleiro de xadrez com as quarenta e duas casas preenchi- das com moedas de um real parecia significativo. Com o caso práticamen-te concluído, o criminoso, encurralado pelas provas contra ele, decidiu, aconselhado por seu advogado, confessar. Sua única chance era ser consi-derado portador de uma séria insanidade mental, No entanto, em sua com-fissão, ele mostrou-se frio e lúcido. Em suas próprias palavras ele atribuiu seus crimes ao próprio passado. Sua mãe tinha sido,se não uma prostituta, pelo menos uma mulher imoral que traia sistematicamente o marido, pai de Ivan, por prazer e também para obter algumas vantagens. Ela terminara por abandonar marido e filho e seguira, com um amante norte-americano, para o México. Ivan e o pai, a partir daí, não tiveram mais noticias dela. O garoto tinha quatorze anos quando isso acontecera. Com a morte do pai por doença cardíaca quando Ivan tinha quase vinte anos, o rapaz passara a viver sozinho e decidira, numa transferência doentia de sentimentos, vin-gar-se de sua mãe matando mulheres de vida fácil.

Na delegacia de homicídios,o delegado Afrânio e o inspetor Gonçalves, co-memoravam o fim do caso.

- Sempre soube que o senhor resolveria essa seqüência de crimes, chefe !

- Com uma longa demora, não é, Gonçalves ? Pense no número de mu-lheres que teriam deixado de morrer jovens e brutalmente assassi- nadas , se eu tivesse sido mais eficiente.

- Desculpe eu discordar, doutor Afrânio, mas como o senhor poderia ter descoberto o assassino, se ele nunca deixava a menor pista ?

- Bem, pelo menos ele ficou distante de sua meta, que era matar ses-senta e quatro vítimas, o número de casas de um tabuleiro de xadrez.

Acho incrível imaginar esse homem colocando mais uma moeda de um real numa casa vazia do seu macabro tabuleiro de xadrez.

- É verdade, chefe ! Ficaram faltando vinte e duas.

- Acho que ele não cumprirá uma pena por todos esses homicídios, Gonçalves. Meu palpite é que ele será considerado um doente men-tal pelas autoridades judiciárias e terminará seus dias num hospital psiquiátrico.

- Se ele é um psicopata ou não, pouco me interessa,chefe. O importan-te é que ele nunca mais terá como matar !

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George Luiz
Enviado por George Luiz em 04/03/2008
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