Vilolência - Ato I

O sabor de um café preto logo de manhã pode ser amargo. Algo quente que desce pela garganta numa fração de segundos, deixando para trás um caminho de dor que se pode confundir com prazer. O único alimento que sustentará seus músculos até que chegue a louvável hora do almoço.

Depois de ter-se casado e proliferado a situação jamais fora a mesma. Mesmo sendo novo, e tendo talentos, não conseguia um emprego realmente bom, sempre foram bicos, e agora estava naquele período de teste em uma empresa que ficava do outro lado da cidade. Isto o desgastava realmente, eram horas viajando dentro da cidade em uma circular, parando de ponto em ponto, sentindo odores variados e a sensação de ser uma sardinha enlatada.

E eis que o acaso interfere em mais um dia monótono de sua frívola vida, fazendo com que o ônibus fique preso em um acidente. Depois de chegar atrasado à empresa, o capitalismo imperante o olhou com frieza e o dispensou de seu cargo. Não seria difícil arranjar um outro João-Ninguém para substituí-lo.

Cabisbaixo, e com um sentimento de fracasso total ele volta para sua casa. O corpo em pé, mas a alma arrastando sob o asfalto poeirento.

Naquele momento, acredito que se eu pudesse sentir a tal compaixão humana eu me compadeceria daquele ser, mas esse não era meu trabalho. Meu trabalho ali só estava começando.

A porta fez um ruído baixo quando ele entrou pela porta dos fundos da pequena casa alugada, a única que conseguira arranjar com o que tinha de oferecer. Parou e olhou a cozinha ainda vazia. Somente o bule com o café que havia feito estava sobre a pia, uma coisa inanimada refletindo o brilho fosco do sol. Do lado ficava a prateleira com os escassos mantimentos daquele mês. No mês que vem seria ainda mais precária sua situação, será que terá o de dar para comer ao filho e à esposa? Sentou-se e debruçou-se sobre a mesa. Um choro silencioso começou, contido para que não incomodasse a esposa debilitada.

Foi um simples afago que fiz em sua cabeça nesse momento, e toda a realidade a sua volta mudou.

Levantou-se ríspido fazendo a cadeira bater na parede. O rosto fechado, as lágrimas secando enquanto desciam pela pele mal-tratada da face. Os passos agora eram pesados, fazendo acordar qualquer um que estivesse ainda dormindo naquela casa. Foi direto para o quarto onde viu sua mulher saindo da cama e sentando-se na cadeira de rodas. Ela havia sofrido um acidente, logo após o nascimento do filho, que danificou sua coluna e desde então ela não tinha mais o poder de movimentar os membros inferiores. Olhou para ele espantada, parecia não reconhecer o marido naquele corpo. Ele aproximou-se dela como um lobo atacando sua presa, ergueu a mão e lhe deu um golpe no rosto que a fez cair do lado da cadeira. Ela apenas deu um gemido fino e não viu quando o marido cravou as mãos em sua garganta fazendo-a sufocar. Ele ainda sacolejava a cabeça dela, batendo no chão e na roda da cadeira. Ela grudou as unhas nos pulsos dele, mas ele parecia ser feito de pedra agora, e sua força era ínfima.

Eu estava a cabeceira da cama analisando e apreciando cada ação que faziam até que algo na porta me surpreendeu.

- Pai!

Um garoto de uns 5 ou 6 anos, com a cara amassada pelo lençol, olhava assustado para o pai.

O homem olhou o garoto como se nunca tivesse o visto antes na vida e começou a liberar a pressão no pescoço da mulher. A mulher, vendo o que ia acontecer, não tentava mais afastar os braços do marido, ela segurava, com uma força que antes não havia demonstrado, mas que sabia não ser o bastante.

Ele então tira os olhos do garoto e volta para a mulher, parece ganir enquanto suas mãos a sufocam ainda mais forte. Eleva a cabeça dela um pouco mais alto e faz descer rápido sobre o chão e assim ela desfalece.

O garoto sente o frio que seu pai transmite e corre para cozinha onde se esconde infantilmente como em uma brincadeira de esconde-esconde. O pai logo chega, olha para a porta ainda trancada e vê de relance onde o garoto está, mas finge não ver. Caminha calmo até a gaveta de tira de lá a faca de cortar carnes, a faca que sempre estava afiada. Ele pode ouvir o respirar forte do garoto, mas ainda não sente nada por ele. Em rápidos movimentos o homem puxa o garoto pelo braço, tirando-o de seu “esconderijo”, e já sobe a mão livre tapando –lhe a boca para que não grite. Levanta o queixo e passa a faca em sua garganta, como fazia quando limpava porcos, e o corpo do garoto cai inerte ao chão da cozinha, tingindo o piso vagabundo de vermelho sangue.

Voltou ao quarto e brincou de apunhalar o corpo da mulher, provavelmente nem ele sabe quantas vezes desceu a lâmina sobre aquele monte de carne.

Assim que se sentiu que não tinha mais forças para continuar ele sentou-se na cama, largou o braço esquerdo sobre o colchão, mirou e cravou a lâmina no pulso. Não parecia sentir a dor do corte, mas assim que viu seu próprio sangue escorrer, ele pareceu acordar de um pesadelo. Olhou o corpo da mulher no chão e soltou um grito alucinado, que lhe dilacerava o coração. E morreu esgotado pouco antes da ambulância chamada pelos vizinhos chegar.

Virou notícia tapa buraco nos jornais do dia seguinte. “VIOLÊNCIA: Na periferia, homem mata filho, esposa e depois se mata com faca de cozinha”.

Juliano Rossin
Enviado por Juliano Rossin em 01/04/2008
Reeditado em 04/04/2008
Código do texto: T925945