A mulher da mesa sete

 

Tudo parecia igual às noites anteriores, exceto uma linda mulher que o fitava com olhar penetrante. Sentada, sozinha, encarava-o insistentemente. Desde o dia em que Patrícia sumira misteriosamente de casa, há exatos sete meses, Cândido costumava freqüentar aquele bar. Porém, tinha certeza de ser a primeira vez que via aquela figura encantadora: boca e unhas vermelhas, uma verdadeira tentação. Se já a tivesse visto, certamente não esqueceria. Como não lembrar daquelas curvas? Após um longo gole de uísque, resolveu ir até lá. Levantou-se decidido e partiu em direção à mesa sete. 

                Boa noite! Posso sentar-me ao seu lado?

                Claro! Fique à vontade; estou mesmo precisando de companhia.

Ao ouvir a voz daquela mulher a sua frente, Cândido ficou pálido. Um frio incômodo percorreu sua coluna ao perceber que aquela voz meiga e aveludada não lhe era nada estranha; por pouco não perdeu os sentidos. Notando o estado em que Cândido se encontrava, a mulher, pegando-o pela mão, conduziu-o até a cadeira.

                O que está acontecendo? Você está bem?

                Sim, estou. Não foi nada.

Cândido tentava, inutilmente, disfarçar o mal-estar. Sentia-se ridículo, dando aquele chilique logo no seu primeiro encontro. Que impressão ela vai ter de mim? – lastimou-se em seu íntimo. Sua situação piorou quando, após um breve sorriso enigmático, a mulher lançou-lhe a seca afirmação:

                Eu sei o porquê desse seu mal-estar!

Cândido ficou completamente sem jeito; detestava ser previsível.

                Como você pode saber?

                Acredito que eu lhe faça lembrar do passado, alguém que foi importante para você, que você, talvez, tenha amado.

Aquelas palavras, como chuva de punhais, tiveram o poder de dilacerar alma e carne de Cândido, levando-o a descontrolar-se.

                Cale-se! Cale-se! - ordenou, aos gritos.

Imediatamente, como se catapultada da cadeira, a estranha levantou-se; bateu o salto pontiagudo do seu sapato com tanta força contra o piso que chegou a descolar algumas pedras da cerâmica sob a mesa. Saiu, a passos largos, em direção à rua. Cândido ainda tentou alcançá-la para pedir desculpas, mas, ao chegar à porta do bar, ela havia desaparecido. Não acredito que isso tenha acontecido comigo. E eu sequer perguntei o seu nome. Arrastando lamentações, Cândido voltou para o balcão e pediu outra dose de uísque. Ficou surpreso ao constatar que, na pressa, a mulher havia esquecido uma bolsa vermelha, da mesma cor do número 7 pintado na mesa, pendurada no encosto da cadeira. Cândido viu naquela bolsa a esperança de rever a estranha mulher cuja voz era idêntica à da sua esposa Patrícia que, após apenas um ano de casados, sumira de casa sem deixar sequer um bilhete de despedida. Por muitas vezes ouviu aquela voz aveludada pronunciar seu nome, dizendo que o amava e também, por muitas vezes, que o odiava; e agora, sequer sabia seu paradeiro.

 Vermelho, a cor preferida de Patrícia - recordou Cândido, com lágrimas nos olhos. Caminhou sorrateiramente até a mesa sete; fugia ao olhar do barman. Aproveitou, então, o momento em que o homem atendia outro cliente, e pegou a bolsa. Saiu apressadamente do bar em direção à praça do outro lado da rua e sentou-se num canto menos iluminado. A luz branca da lua incidia sobre aquela bolsa dando-lhe um tom mais escuro, quase preto. O tempo passou a ameaçar; uma nuvem negra já impedia o brilho da lua e fortes pingos começavam a cair. Tomado pela curiosidade de conhecer o conteúdo daquela bolsa, Cândido, como se anestesiado, sequer sentia a chuva que já lhe encharcava os cabelos e escorria pelo seu rosto.  Abriu o zíper com dificuldade, não contendo o tremor em suas mãos. Tomou um grande susto quando uma mão pousou pesadamente sobre seu ombro e uma já conhecida voz feminina, em tom espremido entre os dentes, explodiu contra os seus ouvidos:

                Essa bolsa é minha.

Envergonhado por estar violando algo que não lhe pertencia, Cândido já se preparava para pedir desculpas àquela estranha que conhecera, há pouco, no bar. Porém, ficou surpreso ao levantar-se e constatar quem realmente estava ali, a sua frente.

                Patrícia! Patrícia! É você?

Após tomar, com violência, a bolsa das mãos de Cândido, a mulher respondeu com outra indagação:

                Esperava nunca mais me ver?

Cândido ficou mudo por alguns segundos, demonstrando não entender a situação por que passava.

— Não! Não é nada disso, meu amor; procurei você como um louco; onde você estava?

Diante da aparente perplexidade de Cândido, a mulher deixou um leve sorriso irônico escorregar pelo canto da boca para, em seguida, falar em tom ameaçador:

— Covarde! Encare a realidade: ninguém melhor que você sabe onde eu estou.

Nesse momento, sem que desse a mínima chance de reação, a mulher tirou da bolsa um robusto revólver e disparou contra a cabeça de Cândido. Ele só teve tempo de dar um grito para, em seguida, acordar no chão da cozinha de sua casa, encharcado pela água da torneira, que esquecera aberta. Constatou, aliviado, que despertara de um pesadelo. Lembrou-se de ter chegado em casa, na noite anterior, completamente bêbado e sedento. Deduziu ter ido até a cozinha beber água e, não suportando o porre, dormiu ali mesmo, no chão da cozinha. Não era a primeira vez que isso acontecia. Seus porres eram constantes e a eles Cândido atribuía o sumiço de Patrícia. A coitada certamente não suportou conviver com um alcoólatra incorrigível como eu – lastimava-se. Recordava do verdadeiro inferno em que transformara sua vida conjugal e sentia-se um miserável. Um angustiante sentimento de culpa o perseguia. E agora, para completar, esse pesadelo; lembrava-se dos seus detalhes como se os tivesse vivido realmente. O som daquele tiro ainda estava nos seus ouvidos e um forte gosto de pólvora na sua boca. 

O sol denunciava a proximidade do meio-dia, mas o relógio sobre a mesa da cozinha, que estava parado há meses, marcava, em dígitos vermelhos, exatamente 7h. Ao olhar para o relógio, Cândido relembrou nitidamente do último desentendimento que tivera com sua esposa, e cenas terríveis voltaram a sua mente. Num impulso, abriu o armário da pia e passou a jogar tudo para fora. Encontrou o que parecia procurar: estrategicamente escondida atrás dos produtos de limpeza, uma bolsa vermelha; não precisou abri-la para ter certeza do seu conteúdo. Deixou escapar, então, um pavoroso berro de desespero e, em pranto, jogou-se ao chão. Fixou o olhar sob a mesa e viu que, com toda aquela água, algumas pedras da cerâmica do piso estavam soltas. Nesse momento, completamente encharcado de água e lágrimas, Cândido convenceu-se: Eu sei, Patrícia; eu sei onde você está. 

O relógio sobre a mesa marcava, em dígitos verdes, 11h45min.


Elenildo Pereira
Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 26/04/2008
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