Fúria ou Espíritos Famintos

Para Hell e Lynx

Hell, obrigado pela idéia.

Lynx, obrigado pelo estilo.

Ele já não sabia há quanto tempo estava ali, só que estava há muito tempo. Aquele pequeno quarto era tudo o que vira nos últimos meses. Pequeno, cheirando a mofo e a dejetos humanos, dividindo o espaço e a parca comida que recebia com os ratos que tornaram-se sua compainha (e comida, às vezes).

Fora sequestrado, e isso era tudo o que lembrava, mas daquele homem poderoso não restava nada; o terno nada mais era do que farrapos. Os cabelos eram um emaranhado de fios desconexos que pareciam confundir-se com a barba maltratada. E os olhos já não brilhavam de orgulho como outrora. Pelo contrário, agora emanavam o brilho de uma mente doentia e insana, como se estivesse prestes a devorar tudo e qualquer coisa que cruzasse o seu caminho.

E foi exatamente o que aconteceu.

Era quase noite quando um dos sequestradores – Jorjão, como era conhecido – foi levar comida (chamavam aquilo de comida, ao menos) para seu hóspede. Quando chegou no quarto, porém, deu um grito, soltando um palavrão e deixando o prato de lavagem (definitivamente aquilo era pior do que lavagem) cair no chão. Deitado no chão, com os olhos revirados e os braços abertos, lá estava ele, seus hóespede, morto.

Jorjão berrou mais uma vez, chamando seus comparsas. Demoraram, mas vieram correndo ver o motivo de Jorjão, que tinha dois metros de altura e quase o mesmo de largura, estar berrando como um louco.

– Parece que foi crucificado! – disse um dos comparsas.

– Será que foi infarto? Que merda! – exclamou outro.

Em um tom de voz frio e sem espanto, o que parecia ser o líder da trupe disse:

– Bom, como nestes dois meses ninguém realmente quis pagar o resgate, vamos deixar ele aí. Pode servir de comida para os cachorros. – virou as costas e voltou para a sala de onde veio.

Os outros três juntaram-se ao líder do bando na sala, aonde duas mulheres vestindo apenas calcinhas aguardavam. Demonstravam apenas indiferença, afinal, estavam ali não pelo sequestro, mas pelo diversão com seus amigos. E, como se nada tivesse acontecido, os quatro voltaram à festinha que estavam tendo. O chão parecia coberto por neve, e várias garrafas de cachaça barata e cerveja disputavam espaço com peças de roupa suja.

A festa recomeçou.

Alguns minutos depois, uma das mulheres, servindo de forma generosa dois dos sequestradores, interrompeu a sua prazerosa atividade com um grito agudo que fez com que os dois sequestradores que estavam com ela se afastassem e tampassem os ouvidos.

Ela olhava para a porta que levava ao quarto que servira de cativeiro, seus olhos eram puro pânico e, por um momento, os sequestradores não entenderam o que estava acontecendo. Permaneceram parados olhando para a mulher, enquanto ela se afastava engatinhando pelo chão, e só então resolveram olhar para a mesma direção que a mulher olhava.

A reação dos dois foi semelhante à da mulher, a excessão eram seus gritos, que não eram agudos e sim graves. Na porta, seu antigo hóspede mancava, carregando um imenso machado (encontrado sabe-se lá Deus aonde); de sua boca, uma espuma amarelada escorria interminavelmente e seus olhos, que estavam brancos quando o viram pela última vez, agora eram vermelhos. Vermelhos como o sangue.

Os sequestradores correram desesperadamente procurando por suas armas. Os outros dois já haviam interrompido suas atividades carnais para juntar-se aos dois na procura das armas, tão espantados quanto as mulheres e os outros dois comparsas.

Um dos sequestradores, tomado pelo terror de ver alguém que julgava estar morto, descarregou o pente de 12 balas de sua PT-138 em cima dele.

As balas abriram diversos buracos no corpo hóspede, mas ao invés de espirrar sangue, uma secreção amarelo-esverdeada foi expelida com tanta pressão que sujou quase todos os presentes, sujando também paredes e o teto.

Jorjão, que não conseguia engatilhar sua arma devido ao pânico, falou praticamente gritando:

– Você estava morto, desgraçado! Como você pode estar aqui? Quem é você, afinal?

Com um sorriso insano no rosto e os olhos vermelhos como sangue quase devorando Jorjão, o hóspede respondeu:

– Eu sou aquilo que vocês fizeram de mim. Vocês me criaram.

– Não criamos nada! Não fizemos nada! Qual o seu nome, criatura?

– Meu nome é Legião, pois somos muitos.

E, levantando o machado na altura de sua cabeça, desferiu um golpe que fez com que o aço frio do machado encontrasse o centro da cabeça de Jorjão, partindo-a ao meio como se fosse manteiga. Sangue e miolos voaram por toda a sala. Os olhos saíram de órbita e rolaram pelo chão da pequena sala.

Antes que o sequestrador ao lado de Jorjão pudesse atirar, um golpe de machado decepou metade de seu braço. Enquanto gritava e olhava para cotoco de braço que restou, um novo golpe de machado decepou suas duas pernas na altura do joelho, fazendo que o sequestrador caísse no chão, quase inconsciente.

Quando finalmente encontraram suas armas, o líder e o outro sequestrador ao seu lado engatilharam-nas e estavam prontos para atirar, mas foram atingidos por algo pesado, que só depois perceberam ser uma das mulheres. Ainda tontos, tentaram levantar-se, mas foram novamente atingidos: o líder teve uma das pernas decepadas pelo aço frio do machado; o outro teve seu coração arrancado com as mãos pelo hóspede.

Com um ar de triunfo, o hóspede deu um urro que fez com que uma das mulheres – a que ainda estava consciente – tapasse os ouvidos e se encolhesse totalmente em um dos cantos da sala; parecia um feto no útero materno.

O coração ainda pulsava enquanto estava na mão do hóspede, e ele fitava o coração com o mesmo olhar insano que o dominava desde que entrara na sala empunhando o machado. Abrindo a boca, desferiu cinco mordidas antes de terminar de devorar o coração pulsante. O líder olhava aquena cena enquanto chorava como uma criança perdida, mais pelo horror da cena que presenciava do que pela dor de ter a perna decepada.

Quando terminou, o antigo hóspede parou ao lado do líder, e o fitava com aqueles olhos insanos, espumando e expelindo estranhas secreções de seu corpo. O cheiro era insuportável. Abaixou-se ao seu lado; ele suava e sangrava como um porco prestes a ser abatido. Segurou sua cabeça com as mãos, levando-a à boca, que abriu-se revelando dentes pontiagudos e amarelados. De sua garganta o cheiro do poço de mil infernos era exalado, causando náuseas e provocando vômitos intermináveis. A boca foi aproximando-se do rosto do líder, que urrava e gemia, mas não conseguiu evitar que o hóspede lhe arrancasse a maçã da face com uma mordida dolorida.

Antes que pudesse gritar novamente, ele desmaiou.

Quando acordou, olhou ao redor e percebeu que a perna que restara havia sido comida, e pedaços de osso eram visíveis por toda sua extensão. A dor era latejante, mas ele não tinha mais forças para gritar. Percebeu que a situação de seus companheiros e das mulheres era semelhante a sua. Incluíndo Jorjão, que estava morto. Morto e devorado.

O antigo hóspede abriu a boca e novamente aquele cheiro pútrido tomou o ambiente:

- Espero que estejam gostando do tratamento dado a vocês. Estou tentando seguir o padrão de hospedagem que me foi oferecido. A comida poderia ter sido melhor, então não reparem a minha fome. – Parou por um momento, pensativo, e continuou:

- A propósito, vocês já estão mortos, mas vou consumir suas carnes todos os dias, por toda a eternidade. Estamos no inferno, e o inferno é a repetição. Creio que vocês vão sentir um pouco de dor por, digamos, toda a eternidade.

O líder parecia não ter entendido o que estava acontecendo, e não entendeu mesmo quando Jorjão levantou-se com a cabeça partida ao meio, gritando e agonizando, assim como o sequestrador ao seu lado que, com um buraco onde antes havia um coração.

Estavam todos ali, prontos para servirem de prato principal ao hóspede, por toda a eternidade.

Porque o inferno, como já foi dito, é repetição.