Visita ao Passado

‘ Visita ao Passado ou a Tormenta

- -"Que frase estranha ... E que letra !"- diz Nicole , ainda intrigada e atormentada,enquanto descansa depois do lanche.A frase dizia:

-Às vêzes é necessário uma visita ao passado para resgatar o presente!

Resolve pensar a contragosto,forçada,no passado que omitiu do diário.Omitiu já para não reler,relembrar e abrir a ferida. Muitos anos se passaram depois dos acontecimentos desta época. Esquecer, não esqueceu. .Fazem se presentes nos sonhos,nas emoções nos afetos e nas vivências daquele tempo. Assumem formas que a perturbam ao dormir,perseguem... Chegou a se debater na cama devorada por pesadelos.Acordava torturada e segundos após esquecia o sonho. Foi o esquecimento quem a deixou seguir vivendo. Mas não pode mais negar para tocar sua vida para a frente,elaborar... Talvez esteja mais forte . Talvez a solidariedade das amigas, lembrada cada vez que olha os pequenos presentes dados com amor,em uma festa, permita visitar conscientemente o passado .Puxa,mas elas levaram anos para poder fazer isto antes a evitavam!O medo de olhar para um futuro que se apresenta sinistro e soturno para ela ,justamente porque evitava a vivência do trauma ,falsamente esquecido,pode ser solucionado. O futuro pode vir a ser promissor.

Abre o diário,volta anos quando lê aquela mensagem sobre os anos seguintes ao trauma e nota que se faz necessária a visita ao passado,e depois só encontra páginas em branco,perdera a inspiração para escrever. Devia estar em meio a um sonho esclarecedor quando abriu seu caderno nesta página,ou sua sanidade vinha voltando.

As seqüelas do fato permanecem até hoje. Uma delas é o pavor de pensar, relembrar ; mas isto diminuiu , sentia se mais corajosa desde a festa na casa das amigas.

Impressionante, o que a solidariedade pode fazer!

Nicole agarra , amassa entre os dedos os presentes com as estrelinhas,que lhe desejavam uma boa sorte, e uma estranha serenidade se instala nela.

Tudo se passou nestes três meses em que não escrevi , 2000, pensa -,quando era jovem , universitária , cheia de vida , de amores , de entusiasmo e de planos para o futuro , sonhos... Eu nunca mais pensei na possibilidade de concretizar um sonho,nunca mais escrevi. Vou na padaria e compro um sonho recheado ,à guisa de piada,hoje em dia,algo para comer pois que sonhos,esperanças no presente não as tenho mais. Preciso mudar,remover a barreira da repressão e recordar .O suor começa a molhar o linho azul das estrelinhas nos presentes,contorcidos pelos dedos nervosos de Nicole.

Estava no parque quando caiu. Sentiu se adormecida e acordou num exíguo espaço escuro. A princípio não entendeu , procurou a saída, achou que caíra em algum buraco. Luta para ver o azul do céu ,o verde das arvores. Não encontra nada, mal tem espaço para se mover. Toca numa porta que não se abre e uma realidade cruel começa a lhe penetrar. Já está tomada de horror. Berra, grita ,se debate e chora. Acaba extenuada e adormece, já cheia de feridas de tanto se agitar no espaço escuro em que está. Inconsciente quase, e cheia de dores , pensa que vai acordar em casa ,que é um pesadelo. Mas acorda no mesmo lugar, durante três meses, naquele espaço exíguo , nas trevas e no pavor que um dos homens apareça. Era transformada e acordada como um pedaço de carne ,um pedaço de carne para bater ,dar, espancar ,usar, torturar em todos os seus furos e em todos os segundos de sua existência. Cães ferozes a devoram e deixam seu cérebro intacto,lúcida, para que veja , sinta, e rasgam seu abdômen urrando obscenidades ou gemendo prazeres hediondos. Súbito não são mais cães,são homens brutais e debochados que não falam, que mexem no seu corpo inerte , que usam seu pedaço de carne, virado agora em um pedaço de sangue.

Acordou três meses depois em casa rodeada de familiares sem entender nada. Devagar e quase em doses homeopáticas a mãe foi contando a realidade, mostrando os recortes de notícias nos jornais. Ela escuta ,as vezes desmaia, fica sonolenta em meio ao relato, não acredita ,pergunta se não é um delírio.Toma sedativos,a amnésia era melhor que recordar. Prefere ter um episódio de loucura. Porque a torturaram ? Porque contam o que não quer saber? Porque a olham pelas ruas? Porque lhe apontam o dedo? Já não foi suficiente o sofrimento ? Porque a isolam? Porque a vêem com descaso? Porque cochicham quando passa? Porque não a procuram? Porque as amigas se afastam? Porque se sentem mal em sua presença?

Nicole chora convulsivamente pois não sabe o que houve de pior: o seqüestro e a prisão no pequeno quarto com os três miseráveis, ou a reação social desencadeada na pequena cidade de Riocomprido. Cansada pelo esforço de relembrar chora bem baixinho recostada nos travesseiros e vai se acalmando .

Quando volta ao diário já está serena, e anota o dia do acontecimento,naquele ano de 2000,nos mesmos três meses de páginas que havia deixado em branco como se,naquela época, a vida não tivesse transcorrido para ela,por todo o horror que passou.Esquecer não se esquece nunca,mas era passado agora.E o passado quando traumático,à duras penas psicológicas,se vai,esfumaça,embora sempre presente alí,naquele cantinho,pois o inconsciente não tem tempo.

E assim,relembrando,elaborando,chorando e anotando tomou o caminho dos prazeres que a vida pode oferecer inclusive a de voltar a escrever,ter ilusões e esperanças...

Por este caminho o da sublimação dos males passados que se traduzia em escrever sobre o incidente,Nicole pode superar a má experiência do passado.Porém esquecer,isto não existe...

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 03/06/2008
Reeditado em 16/01/2011
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