CONFIDÊNCIAS DA MORTE

“E naquele dia morreram muitos. E amanhã morrerão muito mais. E depois continuarão morrendo... Nós estaremos trabalhando sempre.”

Olá! Acabei de matar uma família inteira, e agora me restam cerca de seis dias de folga, coisa inédita em minha profissão. Calma, não sou nenhuma assassina, é apenas meu trabalho, e me desculpem pelo mau jeito, porém é a primeira vez que me aventuro na escrita, e assim compartilhar minhas histórias. Isto é, se alguém quiser compartilhar, é claro. Sei que não é a leitura mais procurada, pois muitos me temem, justamente pelo medo causado pela obscuridade sobre mim, mas espero que fique a vontade seguir minhas escritas recheadas de novidades para a grande maioria de vocês. Então me deu vontade de escrever sobre mim, de desabafar, pois até mesmo eu, adjetivada pela grande maioria de a mais dura e cruel entre todos os seres – Mas também não posso negar que há outros que me vêem de maneira menos trágica – possui sentimentos e dilemas. Relatarei aqui minhas agruras, meus momentos bons e as dezenas de histórias que envolvem meu trabalho. Não acredito que o anonimato nos favoreça, e por isso revelações serão postas neste blog. Sim neste blog, pois já que não posso me manifestar diretamente a alguém, porque não fazê-lo aqui.

Para muitos não passo de mera formalidade, numa vida longa. Eterna. Tantas, faces, tantos rosto me são dados. Outros quando chego, esperam uma aparência monstruosa, rosto disforme, corpo decrépito, e coisas assim... Os mais simplistas me colocam dentro de um roupão negro, com o rosto escondido sobre um grande capuz e com os olhos vermelhos cintilando atrás de sua vítima. Confesso que este figurino não me atrai, embora muitas companheiras o utilizem. Só para manter o folclore, é claro. E dizer que este traje foi usado pela primeira vez há tanto tempo, na época em que se pensou que homens podiam fazer nosso serviço. Deu no que deu, ele falhou, e um sortudo sobreviveu para contar a história da morte com seu traje negro, e aquela foice ridícula. Muito amador. Espero que com meus relatos muitas destas idéias se desfaçam, e quem sabe daqui por diante todos passem a ver-me com outros olhos, pelo menos os que tiverem coragem de me acompanhar até o fim dos meus relatos.

Creio que nesta altura, você já tenha ligado o nome a minha criatura. Sim, sou eu mesma, Jeniffer, mas pode me chamar de Senhorita Morte. Como disse muitas coisas se falam de mim, e a mais correta é me chamarem pelo feminino, pois não tenham dúvida, a morte é uma mulher. Melhor dizendo, somos muitas mulheres, mas explicarei isto mais adiante, pois primeiro é preciso esclarecer porque uma mulher. Já disse do tempo que homens também faziam este trabalho, mas embora alguns até tivessem o dom para o serviço, a grande maioria não satisfazia as metas impostas pela “Chefia”. Sim, temos metas a cumprir, e quanto a isso nós mulheres temos excelência, e nosso perfeccionismo raramente nos deixa fracassos. Além disso, precisa-se de artimanha para o trabalho. Alguns casos são mais complicados, necessitando planejamento, delicadeza, e outras coisas que necessitam de um toque feminino. Mas o que poucos sabem é que este trabalho não é feito unicamente por um único ser. A resposta é um tanto óbvia, pois num mundo tão vasto, extenso e populoso não haveria como apenas uma “Transportadora” dar conta de tudo. Pois é exatamente isto que somos, transportadoras, ou seja, transportamos a alma da matéria física, para o espiritual. Sempre deixamos nossos transportados num ponto pré-fixado. Depois disso o que fazem com eles não é problema nosso. Somos, então, por assim dizer um grande conglomerado, uma empresa com milhares de funcionárias, com representações em todas as comunidades do mundo. E como uma empresa funciona nosso trabalho, tem as supervisões locais, e regionais, que fiscalizam o cumprimento de nossas metas, que vem da “Chefia”, a qual ninguém conhece, viu, ou ouviu, nem mesmos as supervisoras. É a “Chefia” que semanalmente envia a lista de nomes que temos que transportar. A lista vai sendo escrita no livro negro que ganhamos quando somos recrutadas. Ele possui trezentos e sessenta e quatro páginas, uma para cada semana dos sete anos que teremos de cumprir nossa função. É nestas páginas que surgem os nomes que temos que transportar. Nelas estão o nome, o endereço, o nascimento, e a data para a pessoa a ser transportada. Carimbada a lista pela supervisão, cabe a nós elaborar o meio de transporte, o que nem sempre é fácil.

Aos que são bons de matemática, dá pra perceber que cada uma de nós – transportadoras – transporta durante sua função cerca de duas mil quinhentas e poucas pessoas, um número pequeno pode-se pensar, mas lhes garanto que não é nada fácil cumprir a meta de transportar uma alma por dia. Tem de arrumar o local, o método, e a maneira da partida, para que não se cometa erros e se transporte junto alguém fora da lista. Aliás, este erro acaba sendo normal entre principiantes. Dos integrantes da lista tem os que facilitam as coisas, fumam, bebem, levam uma vida totalmente desregrada... Outros ao contrário levam uma vida quase que perfeita, regrada, exercício, boa alimentação... Quando um deste surge na lista, quase sempre temos que bolar alguma tragédia, dificultando nosso trabalho. Além disso, vocês que estão ainda do lado dos vivos sabem melhor que eu que não há idade para ser transportado, e no livro nomes vão surgindo nas mais variadas faixas etárias e estilos de vida, gente próxima da morte, e outros que sequer contavam com nossa chegada prematura. Mas, tem algo sobre a lista que sempre me incomodou: Não podemos questioná-la. Por mais injusto que pareça, uma ordem da “Chefia” tem de ser cumprida. Minha supervisora disse que os desígnios do comando não devem ser questionados, e que a “Chefia” sempre sabe o que está fazendo. Disse-me isto quando questionei um nome em uma das minhas listas. Era apenas uma criança.

Estou vendo que a conversa está se estendendo. Mas como deves imaginar são muitas as histórias que tenho a revelar. Sequer falei como vim parar neste trabalho. Entre nós há dois tipos de “trabalhadoras”. Tem as que cometeram alguns erros quando matéria, e como segunda chance, trabalham para á “Chefia” como transportadoras. Uma alternativa para escapar do limbo, ou do inferno. Neste caso não podem falhar. Embora compreensiva, a Ira da “Chefia” não é nada agradável. Outras simplesmente partiram antes da hora, por erro de alguma transportadora desajeitada. É o meu caso. Morri num acidente de carro. Era pro caminhão bater no carro que vinha atrás do que estava, mas a transportadora se equivocou com os nomes. Também, tive muito azar, pois duas Jeniffer na estrada àquelas horas era muita coincidência. Bem mais isso não vem ao caso. Fui recrutada ainda na fila. Não sei para onde ela levava, mas estava aguardando ali. Era um fila enorme, e mal se movia. Fui abordada por uma supervisora, que perguntou meu nome completo. Respondia, e ela prontamente disse ter havido um engano, e então me levou para uma saleta vazia com apenas duas cadeiras. Ela falou do meu transporte prematuro e deu-me duas opções: Vagar na terra até meu dia chegar, o que levaria mais uns trinta anos, ou abreviar, trabalhando sete anos como transportadora, e depois seguir meu caminho. Como ganharia vinte e três anos não pensei nas alternativas, e aceitei a proposta. Só não sabia que seria tão difícil passar estes sete anos. Muitas vezes pensei que trinta anos vagando pela terra não teria sido tão mal assim. Mas também, isto não importa muito, já que estou prestes a me aposentar, pois falta apenas um, o último da minha lista, e depois deles minha aposentadoria.

Talvez eu esteja falando demais, mas nos últimos seis anos, onze meses e três semanas não tive muita folga, e como os últimos seis que transportei eram da mesma família, estou cinco dias a frente do meu outro compromisso. Até então me lembro de neste período ter tirado apenas quatro ou cinco dias de folga, mas em semanas diferentes. Com certeza um trabalho puxado. Por falar em trabalho vou contar a história desta família, até agora meu ultimo trabalho. Você deve saber que ninguém pode nos ver, antes que esteja realmente morto – a não ser é claro quando há falhas no transporte – e assim não passo de um ser invisível, que vaga nas proximidades dos que irei transportar. Sou uma sugestão, uma energia... Alguns dizem que sentem minha presença, um vento repentino a passar por trás da nuca. Não posso confirmar tal hipótese, tampouco desmentir. O fato é que ainda o hoje, andava buscando um meio de transportar a família Oliveira. O pai, a mãe, a filha mais velha, o namorado, e os dois filhos caçulas estavam na página trezentos e trinta e seis. Deveriam partir na mesma hora, e no mesmo dia.

Cada uma de nós tem o seu método de trabalho, e sua rotina. Eu gosto de ir para o trabalho bem apresentada, e porque não, um pouco sexy. É um meio mais agradável para recepcionar os que são transportados para o além – Embora as mulheres me olhem com certa desconfiança e desprezo – Por isso abdico dos trajes negros, usados pela maioria das transportadoras, e como não é obrigado usar uniforme, uso minha coleção de vestidos vermelhos, esvoaçantes, longos, e extremamente leves... O vermelho até que combina com a situação, já que na maioria dos casos é quase impossível não haver sangue durante o transporte. Também não uso aquela foice das histórias em quadrinhos, e nem o capuz, deixo meu rosto amostra, olhos verdes, cabelos negros, e lábios vermelhos e carnudos. Levo junto apenas uma bolsa, na qual carrego o livro com a lista. Mesmo não caminhando, já que flutuo suspensa no ar, calço meu sapato com salto quinze, apenas para completar a estética. Foi exatamente assim que cheguei à casa dos Oliveira.

Cheguei lá na noite anterior, no sábado. Fazia uma semana quente, e não foi difícil cochichar no ouvido do Senhor Oliveira. Quantas vezes, você ouviu falar de alguém que teve alguma idéia estúpida, ou mudou de planos na última hora e acabou se dando mal? Pois é, em muitos destes casos devo confessar que somos nós – Transportadoras – a sugerir as pessoas. Surge como um estalo, como uma idéia, mas na verdade não passa de uma indução à mente. Na oportunidade induzi o Senhor Oliveira passar o domingo no litoral. Na mesa do jantar ele comunicou a família, “Vamos à praia amanhã. Partiremos bem cedo” disse. Todos adoraram a idéia. Carolina, a garota subiu eufórica ao quarto. Ela até pensava na oportunidade de curtir a praia sem Marcelo, seu namorado, queria se divertir com suas amigas, que com certeza já estavam no litoral. Mas ele estava na lista, e gentilmente convenci ela repensar a idéia. Foi até romântico, ela ligou o rádio, e tocou a música qual ela usava como tema do seu namora, pois foi a primeira a dançarem junto. Meninas têm dessas coisas, há sempre algo marcante em seus relacionamentos, uma data, uma música... Na mesma hora ela ligou para Marcelo.

Saíram – Os Oliveira – sete da manhã, e uma hora depois estavam na casa de praia do Senhor Oliveira. Daí em diante meu trabalho foi facilitado. Induzir a uma latinha de cerveja... Duas... Três... O senhor Oliveira nunca foi dos mais adeptos a bebida, mas com um pouco de ajuda, depois do almoço ele já estava bem embriagado. A Senhora Oliveira até cogitou em falar-lhe, mas uma força a impediu. Nem precisa adivinhar. Eu mesma, mais uma vez traçando os detalhes. Neste meu trabalho tem de estar atenta a tudo, e um minuto que se perca atenção, pode se perder todo um trabalho. Por isso não desgrudava de nenhum deles, para ter a certeza que o plano ia bem. Quase me atrapalhei no horário, pois o Senhor Oliveira demorava a achar Carolina, que ardia em calores no quarto com seu namorado. Ele insistia, mas com o meu auxílio ela resistiu, e acabou morrendo ainda virgem. Mesmo para uma menina de quinze anos, um fato raro nos dias de hoje. Pegaram a estrada pra voltar para a capital às cinco da tarde. Como previsto por mim. O acidente ocorreu exatamente na hora marcada para a morte dos seis, cinco e cinqüenta e sete. Com os sentidos alterados, o Senhor Oliveira não conseguiu desviar de um animal que cruzava a rodovia, freou, mas não evitou as onze piruetas que a camionete deu, capotando no asfalto. Ah! O animal na pista também foi uma providência minha. Como disse, neste trabalho são muitos detalhes e muitos fatores, mas apenas uma certeza, o que está na lista tem que ser cumprido, não importa de que maneira, e a quem.

O que aconteceu a família Oliveira, foi sem dúvida uma grande tragédia. O fato teve repercussão na imprensa, embora nas estatísticas não passassem de mais uma porção de números que os humanos criam. E, são nesses momentos de grandes tragédias que nos colocam – as transportadoras – a imagem de vilania, de ser cruel e atroz que chega apenas para findar uma existência, que ás vezes curta, noutras mais longa. Até os compreendo em suas dores, mas aqui entre nós, não sou eu quem define á hora de quem parte. Apenas transporto. Claro que os meios por qual são transportados geralmente são idéias minha. Tenho que me virar, de um jeito ou de outro para cumprir as ordens e antes das críticas ao modo que faço deveras pensar uma maneira melhor de transportar uma família inteira ao mesmo tempo, que não em um acidente de carro. Também é preciso levar em conta que tenho mais de duas mil pessoas para transportar, e sinceramente não posso ficar repetindo os mesmos métodos. Seria uma rotina cansativa, e estes sete anos transformar-se-iam em sete séculos. Além disso, muitas vezes temos que nos adaptar ao cotidiano de quem transportaremos. Sim, pois se, os Oliveiras não tivessem carro e casa na praia, seria o trabalho um tanto mais complicado. Se bem, que pensando melhor, um curto circuito também viria a calhar. Mas nesses casos quase sempre alguém consegue escapar. Melhor assim, já está feito.

Foi bom ter falado dos métodos. Nunca fui de falar de colegas de trabalho, mas que fique entre nós, algumas transportadoras não possui criatividade alguma. Conheci uma – já se aposentou. Há três anos – que transportava sempre das mesmas maneiras. Ou acidente, ou assassinato. Podia ser alguém bem velho, que mesmo assim, preferia ao homicídio, que um simples infarto. Tinha vezes que fazia velhinhos baterem o carro, quando uma carga emocional seria mais natural. Dizem que ela precisou muitas vezes conversar com a supervisão. A “Chefia” mostrava preocupação com o alto grau de psicopatia que ela demonstrava. Isto também gerava problemas, pois quando ela atuou em certa cidade, os índices aumentaram inexplicavelmente. Por outro lado, existiam outras que transportavam sempre minimizando a situação – se é que isto é possível para quem está vivo – e jamais provocaram um transporte mais violento. Por isto muitas me chamavam de sádica, já que sempre preferia mesclar os dois estilos. Porém imagem todas as pessoas morrendo da mesma maneira. Ninguém compreenderia, pois os humanos são diferentes dos animais. Eles têm sabedoria e consciência, e isto os separa em muito das galinhas, pois elas não dão bola, se milhares tiverem os pescoços cortados nos trilhos do frigorífico, sempre da mesma maneira mecânica. Por isso meu currículo, tão vasto e criativo. Os vivos precisam de questionamentos, sobre mim, meus atos, meus meios... E principalmente precisam estar consciente que um dia eu chegarei até eles, mas que eles jamais saberão quando e onde, pois existem milhares de maneiras de partir. Pode ser hoje, pode ser amanhã. Não importa. Isto já esta decidido, e apenas a “Chefia” é quem sabe, e eu é claro, mas apenas um pouco antes do nosso encontro. Assim melhor pensar como alguém que conheci. “Pra morrer, basta estar vivo”. É uma boa filosofia, pois que sabe disto viverá mais intensamente dos que se preocupam demais comigo, e perdem tempo buscando adivinhar ou abreviar minha chegada.

Espero que não esteja ficando chata com tantas palavras e tantas histórias. Mas está sendo a melhor forma de aproveitar esta folga. É como se fizesse um balanço do meu tempo de serviço. Aquilo Que as pessoas fazem a cada fim de ano quando ainda vivem, estou fazendo agora ao se aproximar o fim do meu trabalho. Um balanço. Acho que é isto que estou fazendo. Se não for servirá também como entretenimento, para passar os próximos ___ dias sem fazer nada. Sem nenhum ser para transportar. Falando nisso, também poderia aproveitar para planejar um meio especial para este ultimo. Quem sabe. Afinal, o ultimo dia é sempre especial, seja na aposentadoria em vida, ou aqui neste outro plano, afinal foram sete longos anos.

Ainda lembro-me do meu primeiro trabalho. Comecei depois de sete semanas de treinamento num congresso de preparação de novas transportadoras. Eram dez turmas, quase mil alunas. Pelo jeito a “Chefia” estava necessitando de muitas trabalhadoras. O curso foi intensivo, mas deu uma boa bagagem, no entanto a prática quase sempre é diferente. Na teoria coisas como nossos sentimentos, não são contabilizados. E isto muitas vezes pesa na hora de transportar alguém. Ainda recordo como fosse hoje das aulas da professora Eulália. Ela dava aula na disciplina de “Métodos e Meios de Transporte”. Sua aula era concorrida, e foi com ela que aprendi a necessidade da criatividade neste trabalho. Eulália era uma das professoras mais renomadas, e com grande afeto da “Chefia” que precisava de alguém como ela, que conseguisse passar a mensagem que a “Chefia” nos queria passar. Ela sempre nos deixou claro, que não éramos o monstro que os vivos nos chamavam, apenas um meio por qual cumpríamos as ordens da “Chefia”, que por mais que se questionasse, sempre havia razão em suas ordens. Outra aula interessante era a de “Aproximação”. Sim temos que ter cautela na hora de nos aproximar dos que serão transportados, para que não percebam nossa presença. Metade dos casos ditos como premonição ou sorte, não passam de falha da transportadora ao se aproximar. Confesso que o curso me motivou muito, mas a primeira experiência é complicada. Quem dera todos fossem os últimos, com experiência e sabedoria. Mas os primeiros serão sempre primeiros, e com a primeira vez sempre vem o friozinho na espinha – seu eu ainda tivesse uma – e a vulnerabilidade a erros.

Comecei tão logo a formatura se encerrou. No lugar do diploma, o livro com as páginas em branco – para ser exato pardo, da cor do papel – e a bolsa para carregá-lo. Uma coisa sempre foi muito fixada pelas professoras, e pelas supervisoras: uma transportadora jamais poderia perder seu livro, e se isto acontecesse, passaria a eternidade vagando, até encontrá-lo. Faz muito tempo a ultima vez que se perdeu algum livro. Não sei onde e nem o nome da transportadora, mas reza a lenda que antes de perder o livro ainda faltava um nome, e a transportadora ruim de memória se esqueceu de onde era o trabalho. Deu sorte, pois este último integrante não foi encontrado, e os boatos é que ele viveu uns seis séculos, até o sistema da “Chefia” perceber o engano. Se, é verdade? Não posso confirmar, mas já virou lenda. Por me lembrar disto, sempre tomei muito cuidado com o meu livro. Não somos as únicas neste plano, e sempre surge outro espírito fanfarrão, ou maldoso para roubar de uma transportadora desatenta. Dizem que até aqui – em nosso plano espiritual e despercebido – existe um movimento revolucionário que se organiza para roubar nossos livros e dificultar as ordens da “Chefia”. Um dos que eu transportei, disse que era coisa do “PT”. Mas eu tenho a teoria que isso é coisa da “Concorrência”, já que muitos dos beneficiados com o roubo destes livros são pessoas, que digamos assim, não mereciam tanto, ainda estar em vida.

O primeiro nome da lista que surgiu em meu livro era Cleber Pereira dos Santos. Olhei seu endereço, e a data a qual deveria ser transportado. Numa terça-feira. Tinha dois dias para o trabalho. De imediato sua idade me chamou a atenção, tinha vinte anos. Mesmo sendo os jovens vulneráveis à nossa visita, nenhuma transportadora gostava de começar seu trabalho com um jovem. Penso que estas determinações eram uma espécie de teste da “Chefia”, para ver nossa habilidade para o trabalho. São muitas que começam transportando jovens. O receio se dá, não tanto pela dificuldade do trabalho, mas sim por não estarmos habituadas a ele, e ainda carregarmos alguns vícios trazidos de quando em vida, como questionar toda nossa existência, nossa passagem, nosso fim... Eu mesma me perguntei por qual razão transportar um jovem, ainda tão cheio de vida, e com um futuro a ser realizado. Parti para o endereço indicado, um dia antes, pois há sempre um estudo sobre o transportado, hábitos, rotina, seu histórico... Fizemos isto numa espécie de meditação. Com o livro aberto e o dedo indicador sobre o nome a ser pesquisado, toda a vida deste se passa em imagens. Em poucos segundos absorvemos toda a sua existência material, suas dores, suas alegrias, seus atos... E para dificultar minha iniciação descobri que teria que transportar um jovem de conduta irretratável. Se fosse um destes que vive bebendo, cheirando e fumando coisas estranhas seria mais fácil. Mas ele não fazia nada disso, era regrado, nem namorar, namorava. Dedicava-se apenas aos estudos nada mais. Seu isolamento acabava sendo seu principal defeito.

Cleber tinha um perfil suicida, mas não se adiante em suas conclusões, não podemos induzir a isto. É uma das sete regras das “Transportadoras”. Induzir ao suicido é contra os preceitos da “Chefia”, que não aceita tal método. Quem o faz, na verdade não está seguindo as datas e os desígnios da “Chefia”, e sim exercendo sua liberdade de escolha. São chamados de auto-transportados. São penalizados por isto, já que nenhum ponto está preparado no outro plano, e suas almas ficam vagando, ou são sugadas pelas sombras do limbo. As outras seis regras são: Jamais perder o seu livro, Trabalhar no mínimo sete anos ininterruptos cumprindo as metas designadas pela “Chefia”, Não cometer equívocos ou troca de transportados; Jamais transportar por conta própria – Neste caso é interessante contar a história duma transportadora que conseguiu levar junto para o outro plano, lembranças de sua vida, e não teve dúvidas ao aceitar o trabalho. Depois de passar no curso, ignorou as regras, e voltou até o seu endereço, para transportar seu marido, que ainda vivia. Não fez por amor, mas sim pela raiva em saber que este já tinha outra. Ela foi severamente castigada – Não contestar, ou negar-se a transportar algum nome, e não usar exacerbadamente os poderes que nos são confiados. Sim, nós temos alguns poderes, mas falarei mais adiante, pois necessito terminar de contar sobre meu primeiro transporte.

No caso do meu primeiro transporte não estava definida á hora exata – Nem sempre a “Chefia” tinha a mania de ser perfeccionista em suas ordens – mas o dia, e o período para acontecer o transporte, entre duas, ou três da tarde da terça-feira. Veja bem o desafio que tinha pela frente, pois neste horário ele – o transportado – estava sempre em casa, morava numa cidade pequena, onde poucas coisas aconteciam, e não possuía nenhum antecedente que me facilitasse o trabalho. Vivia de boas condições, e não adiantaria um curto, ou desabamento, pois não tinha nenhum morro por perto. Assalto também não podia. O fator de risco que mais o expunha era a viagem à noite para a faculdade em outra cidade. Na estrada todos estão vulneráveis à minha presença. Ele almoçava, e eu zanzava ao redor da mesa olhando-o, e ainda sem nenhuma idéia de como transportá-lo. Também não tinha um único amigo que pudesse induzir a convidá-lo para algo perigoso. Meu tempo estava escasso. À uma hora da tarde, ele foi para o quarto estudar e escutar música. Sentei na ponta da cama e fitei-o compenetrado nos livros. Era um bom garoto, e cheguei a sentir algo muito perigoso pra meu trabalho: pena. Mas não tinha o que fazer, tinha de transportá-lo. Eram as ordens. Tinha que cumpri-las apenas, mas como? Então vendo o rádio ligado a todo volume, surgiu á idéia.

O plano corria o risco de não funcionar, mas tinha sido a melhor idéia até então, e não custava tentar. Se não funcionasse tentaria algo mais drástico. Tinha apenas que esperar pelo horário, e fique fazendo companhia a ele. Penso que por uma ou duas vezes ele sentiu minha presença. Quando o relógio marcou duas horas iniciei meu plano. O rádioque estava em volume alto, de repente silenciou. Ele mexeu em todos os botões do aparelho, e nada de funcionar. Tirou o plugue uma, duas, três vezes da tomada, e colocou-o novamente. Contava com a curiosidade do garoto, quem em minha pesquisa aparecia como alta. Dito e feito, ele saiu do quarto, e não demorou a voltar com uma chave de fenda e uma chave-teste. Não entendia quase nada de eletricidade, mas pôs-se a abrir a tomada, até encontrar seus fios. Testou os fios, que pareciam normais. Mas sem querer, num exato momento de uma sobrecarga de energia, ele tocou as mãos nos fios. Mas não foi o choque e matá-lo, embora quase tivesse feito – e na verdade era o que eu imaginava - ele acabou morrendo por causa do impulso que o jogou para trás fazendo-o bater sua nuca na quina de uma cômoda de madeira, rachando seu crânio. Traumatismo craniano constou em seu óbito. Contei com a sorte em meu primeiro trabalho. Ele foi transportado às duas e trinta.

Bom, digamos que no meu primeiro transporte tive trabalho, inclusive o de preparar o método, mas preciso esclarecer que não são todos os transportes, em que temos que nos ocupar com eles. Em muitos trabalhos – cerca de cinqüenta a sessenta por cento – temos apenas que transportar para o segundo plano, sem a necessidade de artifícios. São casos de pessoas que já vem com á hora marca ha um tempo maior, fruto de suas necessidades terrenas, ou até mesmo resultado do livre arbítrio. Uma pessoa com câncer, por exemplo, sabe que o tempo é curto, mas seu nome aparece no livro apenas na semana do transporte. Neste tipo de situação nosso trabalho como transportadora é de apenas acompanhar a passagem, e transportá-la ao ponto pré-fixado pela chefia, pois ao contrário, se uma de nós não estiver presente, como já disse, poderia se perder, já que é complicado encontrar o tal ponto, e sempre fazendo lembrar que mais que morte, nós – transportadoras - somos um meio de transporte entre a vida terrena e o outro plano, para onde transportamos os mortos. Tenho certeza que se você um dia fizesse meu trabalho também torceria para aparecer no livro nomes nesta categoria de transportados, pois nada mais que acompanhar o processo é necessário, coisa muito fácil, se comparados com os casos em que temos que fazer milhares de peripécias para poder transportar alguém.

Ah, se todos fossem com o Seu Alfredo, um senhor de idade avançada, quando seu nome surgiu no livro com o dia do transporte, dizia que tinha oitenta e seis anos. Ele partiria em torno da dez da noite. Cheguei cedo á casa dele, sequer pesquisei seu perfil, pois sabia que se tratava de morte natural, então apenas aguardei. Durante o dia ele honrou todos os seus compromissos, com o banco, com os empregados, e voltou para a fazenda... Jantou satisfatoriamente como há muito não fazia, banhou-se, e foi dormir ao lado de sua esposa. Às dez e meia, um respiração ofegante, a garganta sem ar, e ele fechou os olhos. Seu espírito enfim havia se desligado do corpo, e ele fazia a passagem – acompanhado por mim é claro – tranquilamente. Não sei se por causa da sua vida duradoura, ou pelas emoções que vivera, ele chegou feliz ao outro lado, sabendo que sua missão estava cumprida. Uma coisa sempre me marcou, pois os que vinham de forma natural chegavam do outro lado sem revolta, talvez pela sapiência adquirida com a idade terrena, coisa que faltava a alguns que vinham de maneira precipitada – no entender deles – sempre buscando negar as suas reais condições, de mortos.

CONTINUA...

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 26/06/2008
Código do texto: T1051637
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