Sombra de Nekalah: O Início da Vingança

AVISO: o conto a seguir é uma continuação de "O Enterro", disponível neste site em meu profile, embora este possa ser lido individualmente.

Baltazar estava nervoso com os últimos acontecimentos. Agora estava errado, muito errado. Seu amigo, velho amigo Cristiano, morrera poucos dias atrás,e por mais que dissessem o contrário, ele sentia dentro de si que aquilo não fora acidental.

Rosa, que ignorava as preocupações do marido, cuidava dos afazeres domésticos com dedicação dobrada: Baltazar andava tenso, distante, e por mais que tentasse, ela não sabia o que fazer para atrair a atenção do marido.

Passara uma semana, e a primavera ganhava força. O sol começava a brilhar mais forte, os pássaros começavam a cantar com mais força, um dia que tinha tudo para ser maravilhoso. Após preparar um belo café da manhã, Rosa decidiu que era hora de cuidar do Jardim, e essa era uma das suas maiores paixões: o paisagismo e a jardinagem. Alguns anos atrás ela e seu marido foram passar férias visitando algumas cidades serranas e lá ela pode ver os mais belos arranjos paisagísticos, como nunca antes encontrara na cidade. Enfim, com a iminência da primavera ela já começaria os preparativos no seu, de modo que fosse o primeiro jardim florido da rua.

Com calma ela se arrumou, com sua roupa de jardinagem. Baltazar estava na sua biblioteca, lendo tomos antigos em línguas que ela desconhecia. Ela sabia o quão inteligente era o marido, doutor em uns cem números de línguas diferentes, algumas das quais ela sequer ouvira falar. Assobiando, ela buscou algumas revistas para inspiração e abriu a porta da frente para sair.

Baltazar em sua biblioteca revirava atentamente alguns tomos empoeirados, quando o grito de sua mulher cruzou o espaço a sua volta. Sem qualquer cuidado ou zelo ele jogou o livro pelos ares e voou até a sala, de onde viera o grito. Sua mulher estava lá, apavorada, encostada na parede apontando para a porta e falando: “Ba... Ba... quê... quê... é.. i... isso?”.

Baltazar se aproximou lentamente do grotesco que estava a sua frente:. uma pilha, cuidadosamente montada, formada pelos corpos de sete gatos pretos empilhados no centro de um triangulo bizarro, por sua vez formado pelos corpos de três corvos. A cima, escrito em sangue, as palavras NEKALAH.

O espanto, claro em sua feição, não durou mais que alguns segundos, antes de ser substituído por um ar de desdenho. “Malditas marginais”, ele praguejou. “Miseráveis que vem importunar aqueles que estão calmos. Vamos, entre querida. Não olhe para aquilo, deixe que eu limpe essa bagunça”. Conduzindo a apavorada Rosa pelo antebraço, Baltazar a levou para a sala, sentada em um dos sofás. “Vou limpar aquela maldita bagunça querida. Já volto”.

Rosa começou a tremer. Nunca antes era vira algo tão grotesco em sua frente. Pela porta ela via Baltazar com um saco e uma vassoura, varrendo aquilo. Descansando o olhar, ela esticou pescoço para frente e para trás, quando mirou para a televisão desligada e, por uns pouquíssimos segundos, teve a impressão de ver algo, um rosto maligno, na tela apagada. Foi um tremendo choque, mas dessa vez ela não gritou. Apenas piscou os olhos e quando os abriu a coisa já não mais estava lá.

Baltazar voltara poucos minutos depois dizendo: “Querida, falarei com o delegado sobre esses pivetes. Nunca mais eles voltarão aqui para nos atormentar, eu prometo”. Eles se abraçaram, e ela, sentindo o toque de seu marido, o cheiro do seu marido, a aspereza da pele de seu marido, acabava por se sentir a mulher mais segura do mundo. Nada, nada poderia machucá-la enquanto ela estivesse com Baltazar.

“Querida” disse ele afastando o rosto dela de seu peito e conduzindo suavemente a olhar para seu rosto. “Precisarei ir a capital por alguns dias. Na verdade dois dias apenas”, ele disse. Ao escutar essas palavras seus olhos enrubesceram e uma pequena lágrima rolou. “Não fique assim”, ele disse afagando seus cabelos. “Nada lhe fará mal, pois eu estarei sempre aqui com você”, disse apontando para seu coração. “Serão apenas dois dias, prometo”.

Ela o puxou para perto e mais uma vez mergulhou em seus peitos, dizendo, “sim querido”. Podem ter sido meros minutos, mas para ela aquele abraço significara uma vida inteira. Uma vida inteira ao lado do homem que a amava e que a protegeria.

No dia seguinte, bem cedo, Baltazar se levantou. O sol acabara de nascer e Baltazar, e vestindo o terno que normalmente utilizava quando pretendia se encontrar com outros acadêmicos, se despedia de sua esposa. Ela sorria e acenava com um “volte logo”, porém em seu coração ela chorava, sentindo que algo de ruim aconteceria. Nada, nada no mundo poderia ser tão ruim quanto não reencontrar seu amado.

Afastando os pensamentos ruins de sua mente, ela prosseguiu com suas tarefas, iniciando claro, pelo jardim. Muitas plantas ainda estavam por nascer e muitas flores por desabrochar, mas ela já tinha em mente qual a decoração que usaria neste ano. Na hora do almoço ela preparou dois belos galetos. Puro erro, por alguns instantes ela se esquecera que seu marido estava em viagem e que almoçaria sozinha. O almoço foi seguido de uma cesta, que durou praticamente toda a tarde.

O sol começava a se por. O tempo passará rápido e... compras! Ela esquecera de ir fazer compras! Durante o trabalho no jardim ela vira o quão desgastadas estavam sua algumas de suas ferramentas e pretendia ir a loja exatamente para comprar novas, mas agora... Se bem que ela já havia dormido o dia todo, por isso não iria conseguir pregar no sono tão cedo a noite, por isso, por quê não ir até a loja?

Vestindo uma roupa esporte, ela pegou seu velho carro e foi. Juntando as compras de jardinagem com outras ela foi de loja em loja, até que por fim todas se fecharam, afinal, por mais que não sejam iguais as do interior, as cidades de médio porte acabam se juntando ao grupo dos “não funcionamos 24 horas”.

O relógio batia as vinte e duas horas quando Rosa voltou para sua casa. Do lado de fora, ela observava com estranheza uma luz acessa no quarto do casal. “Podia jurar que deixei a luz apagada”, pensou consigo mesma, mas em seguida afastando tal pensamento da cabeça, ela entrou na casa. Um forte cheiro pútrido, talvez o esgoto, tomou suas narinas. “Argh”, disse se lembrando dos recorrentes problemas de esgoto devido ao aumento da pressão nos canos que sempre ocorria nessa época. “Preciso mandar consertar isso”, dizia a si mesma enquanto subia em direção ao quarto. Lá chegando não encontrou nada demais. Ela pagou então as luzes e desceu novamente para o primeiro andar da casa.

O jantar passara rápido, assim como o resto daquela noite, na qual a presença de Baltazar se fez sentir. Após um final de noite em companhia de sua televisão – de um ou dois ratos, que a fizeram anotar um lembrete de “ligar para o dedetizador” - ela foi para sua cama dormir. Era estranho, pois normalmente quem apagava as luzes era Baltazar, e enquanto ela fazia isso um pressentimento ruim se abatia em sua alma.

Ela se deitou na cama. De subido, uma sensação estranha tomava seu coração. Ansiedade, nervosismo. Sentimentos absurdos que surgiam vindos de lugar algum e que a assombravam. Susto! Medo! Surpresa! Uma mão que surgia em meio às trevas e que com uma força descomunal torciam seu pescoço. Sufoco! Ela lutava para se soltar, porém a mão não a largava. O ar começava a lhe faltar e sua visão começava a ficar turva, quando a mão a soltou. Foi rápido e inesperado, igual a maneira como a mão a havia lhe agarrado.

Aflita ela levantou cambaleante em direção a cômoda, porém bastou que tirasse o segundo pé da cama para que uma força a empurrasse em direção aos lençóis. A cada vez que esboçava uma reação, a coisa lhe atingia com mais e mais força. Socos lhe em aplicados no rosto enquanto garras rasgavam suas carnes.

Eram pouco mais de quatro da manhã quando Baltazar acordou assustado, suando frio. Algo de ruim acontecera em sua casa. Telefone. Chama, chama, chama. Rosa tinha um sono pesado, é verdade, mas não a ponto de escutar tantos toques do telefone. Sem esperar o sol nascer, Baltazar arrumou suas malas e deixou o hotel.

Passavam das 10 da manhã quando ele chegou a sua casa. Pelo lado de fora a casa aparentava a mais completa normalidade. Girando a chave ele entrou. Sala, cozinha, tudo como ele lembrava de haver deixado no dia anterior. “Rosa”, ele gritava, porém sem resposta. O subir nas escadas gerava um ruído de agonia. Mais dois passos, e lá estava ele de frente para a porta do quarto que estava fechada. Contando até três ele respirou fundo, girou a maçaneta e entrou. Sua mulher estava na cama, nua, com braços e pernas amarrados, o ventre aberto com as tripas a cair pelo chão, e no rosto um olhar sereno. Nas paredes grandes letras vermelhas, escritas com sangue, diziam: NEKALAH NYTHRA.

Baltazar caíra no chão de joelhos. Seus olhos verteram lágrimas como nunca antes fizera. Ele não entendia o que estava acontecendo, ele não entendia o porquê daquilo estar acontecendo, mas naquele momento ele jurava a si mesmo que descobrira todas as respostas e puniria aquele que ousara fazer isso com sua esposa, nem que para isso ele tivesse de afrontar o próprio Deus ou o Diabo, mas ele faria!