Uma Noite No Cemitério

A noite mal começara e Arlindo já se encontrava fugindo, correndo ensandecido pelas ruas atrás de abrigo. Não era da polícia que ele fugia, talvez antes fosse. Os homens que o perseguiam eram cobradores do sr Julião, a quem Arlindo recorrera alguns meses antes para pegar alguns réis emprestados, de modoa poder pagar ao sr Alcindo, a quem por sua vez havia recorrido para conseguir dinheiro para pagar ao sr Hildebrando, a quem perdera uma imensa fortuna numa partida de pôquer.

Hildebrando era conhecido como corta-dedos, pelo modo como costumava lidar com os devedores, covardes, cagüetes e rivais. Arlindo havia embarcado no jogo achando que seria fácil arrancar alguma grana do velho chefão, porém esse velho mostrou ser uma penca de coisas, menos senil. A partida fora longa e divertida - ao menos na opinião do velho – porém terminal deixando um malandro desesperado pela quantidade perdida nas fichas. Quantidade tal que se fosse cobrada na moeda em que Hildebrando mais gostava, provavelmente levaria todos os dedos das mãos e alguns dos pés.

Foi ai que começou a bola de neve que agora estava prestes a esmagar Arlindo. Pedir dinheiro a um agiota para pagar um gangster não era uma das coisas mais inteligentes a se fazer, mas o que ele poderia fazer em uma situação dessas? Com certeza não era negociar prazos.

Como divida de malandro não decresce, só cresce, cada conto de réis de Arlindo já haviam se transformado em muitos outros, de modo que nem mesmo que ele conseguisse um modo honesto de trabalho ele conseguiria pagar a Julião. No modo desonesto, Arlindo andava por demais visado no meio da jogatina e cafetinagem, de modo que sem recursos só lhe restava uma opção: esperar o agiota mandar seus capagas atrás dele, e foi exatamente isso que ele fez.

Arlindo levou um bom tempo antes de conseguir despistar os capangas, e só o fez próximo ao cemitério da cidade. Já havia estado lá antes, um lugar bonito e que vivia recebendo novos moradores a cada dia, geralmente sempre do mesmo ramo de trabalho que ele. Apesar de um tanto supersticioso, ele sabia que mesmo os caras voltassem e resolvessem procurar lá, demorariam um bom tempo até achá-lo.

Para a sua sorte, o muro que rodeava o local era alto, mas fácil de ser escalado, mesmo por alguém com tanta inaptidão atlética como ele. Lá dentro as construções, mausoléus, covas baixas e árvores tomavam o local. Uma leve neblina vagava dando um certo charme ao local, mas o que mais impressionava era a precisão dos arquitetos ao construir um muro que servisse para além de limitar, abafar os sons que vinham de fora do cemitério. Era um local de paz, mesmo para alguém com tantos problemas a atormentar a cabeça como ele.

Ele caminhou por horas, olhando as tumbas, percorrendo ruas e quadras onde as pessoas encontravam o seu descanso eterno. Lá para a meia-noite, ele encontrou um velho mausoléu, com os portões abertos. Normalmente, cada mausoléu trazia a sua frente o nome da família que ali repousava, com os portões devidamente lacrados para evitar roubos e profanações, porém aquele além de aberto não trazia qualquer inscrição sobre quem lá estava.

Sem querer passar o resto da noite dormindo ao relento, Arlindo entrou. O espaço lá dentro era relativamente grande, de modo que a aparência externa não fazia jus ao seu esplendor. Nas paredes, algumas fotos e nomes estranhos, de pessoas que ele nunca ouvira falar antes. Oposta a porta de entrada, uma escada que descia se perdendo na escuridão.

O medo começava a despertar no seu coração. Era hora de sair daquele lugar sinistro, afinal dormir sob o luar nunca antes matara ninguém, porém vozes fortes e pouco amistosas começavam a chegar aos seus ouvidos. Seu nome era pronunciado, com um misto de raiva e sarcasmo. Os capangas o haviam descoberto, e provavelmente não estavam nem um pouco felizes pelo tempo que perderam procurando. Desesperado, Arlindo não pensou uma segunda antes de voltar correndo ao mausoléu e descer apressado as escadas.

Era engraçado, como a luz parecia que o acompanhavam. O pequeno facho de luz descia pela entrada, pouco iluminando o que havia a frente, apenas o local onde ele estava. Depois de muito descer, quando este já não mais adiantava, um brilho no final da escada começou a ficar cada vez mais forte. Por um momento Arlindo pensou ter escutado o pronunciar de seu nome, isso só o fez apressar mas o passo, até chegar ao final da escada, onde uma tocha queimava em uma parede repleta de símbolos estranhos, onde uma porta fechava o caminho.

Um calafrio percorria sua espinha. Até então a idéia do local onde ele estava se metendo não havia passado pela cabeça de Arlindo. Coçando um crucifixo no pescoço com os dedos de uma mão, ele empurrou a porta. A aparência era de uma daquelas portas antigas, pesadas, porém ela se abriu levemente, dando lugar a um grande corredor iluminado por tochas.

O desespero começava a tomar seu coração. Que diabos de local sinistro era aquele? Ele queria dar a volta, subir as escadas, implorar uma segunda chance a Julião, porém ele sabia que naquele momento as suas duas únicas escolhas eram ou encarar o corredor que se estendia a sua frente ou voltar para a morte certa e dolorosa. Ele era um covarde, mas um covarde que queria e iria continuar vivo.

Dando passos lentos e imprecisos ele avançou metro a metro do corredor, até encontrar, muitos minutos depois, uma outra porta. Abrindo esta, com tanto ou mais medo com que ele abrira a primeira, ele se viu na entrada de um grande e luxuoso salão, ricamente descorado, aquecido por uma lareira, onde em frente um divã servia de apoio a uma mulher deitada. Uma bela mulher, cujas curvas, mesmo distância, lhe chamavam a atenção e faziam com que outra cabeça começasse a ditar as regras.

Ele se aproximou. A cada passo, a visão daquele corpo aumentava, revelando detalhes assombrosos. A mulher não estava vestida. Ela usava um robe que mais incitava do que escondia qualquer coisa. Seus cabelos negros caiam por suas costas formando belos desenhos. Era como se cada fio estivesse em uma posição escolhida minuciosamente. A respiração, um tanto frenética para alguém em repouso, criava movimentos sensuais que cada vez mais excitavam Arlindo.

Quando ele então se aproximou bastante, a libido já comandava por completo suas decisões. Se sentando no divã, ele começou a passar as mãos suavemente pelo corpo da mulher. Um carinho malicioso. Ao chegar no rosto, ele a virou lentamente até se deparar com a face do demônio.

Foram instantes, antes que a mulher, de olhos amarelos e dotada de longas presas que saltavam de sua boca, pulasse sobre Arlindo, e que com suas garras dilacerasse o peito ao mesmo tempo em que sugava o sangue do coitado. Ele gritava, se esperneava, se debatia, se contorcia, enquanto ela aproveitava o momento como a uma orgia bizarra.

Em pouco tempo, o último suspiro de vida deixara o corpo de Arlindo. A estranha então se levantou e fitou, com um certo olhar de aprovação e reflexão, antes que sua cabeça se virasse para a porta, onde ela sabia, novas refeições estariam prestes a chegar em poucos instantes.