Zona Morta Santo André - Cap. 12 - Perdas

[...]

- Fiquem deitados, assim eles não vêem aonde a gente tá. - Diz o Renan, se arrastando pra borda do ônibus - Tá cheio deles.

- Então já era ? A gente não tem como sair ? - Eu pergunto, pensando se todo o nosso esforço em nos manter vivos teria sido em vão.

- Sem idéias... você ? - Ele pergunta. Respondo que não. - Então...

- A menos que... hei! Olha só! - Eu falo.

- O quê ? - Ele pergunta, aparentando ter ficado confuso.

- Olha! Eles tão indo tudo pra frente do ônibus!

- E ...?

- Não percebe ?! Se eles tão indo pra frente, significa que a parte de trás deve estar vazia! - Eu explico

- Ahhhh! E você acha ...

- A gente pode tentar descer por ali, se não tiver nenhum!

- É uma loucura, mas... já fizemos tantas, essa também pode dar certo. Eu vou ver se tá tranqüilo. - Ele fala, e se arrasta até a parte de trás do ônibus, dá uma olhada e volta. - Tá certo, dá pra descer. Mas e se eles perceberem a gente ?

- Vamos fazer tudo rápido... já sei! Eu vo ali na frente e bato no vidro, assim eles vão ser atraídos pra lá, e enquanto isso você desce com ele. Aí depois eu corro pra lá também.

- Tá.

Então começamos. Os dois irmãos se arrastam até o fundo do ônibus e eu até a frente. Ao sinal de ok, começo a bater com as mãos no vidro. Os doentes começam a se amontoar logo abaixo de mim, se eu caísse seria o fim. Olho pra trás, vejo que eles já desceram. Paro de bater e me arrasto o mais rápido possivel para o fundo. Mas para a nossa infelicidade, vejo o Renan lutando contra um policial doente que não foi atraído, enquanto outro se aproximava. Desço o mais rápido possível e dou um chute na barriga do que se aproximava, fazendo-o dar uns passos pra trás. Renan consegue derrubar o outro. Então ele põe o irmão, que estava se sentindo mal, nas costas e recomeçamos a corrida pelo mesmo caminho que fizemos antes de entrar no ônibus. Passamos reto pela rua que nos levou à avenida, continuamos desviando, escapando, por mais uns três quarteirões, mas então o cansaço começava a vencer. Essa parte da avenida estava mais calma, então paramos um minuto para descansar.

- Tá, a gente não pode parar agora... - eu falo.

- Peraí! Ele não tá bem e eu to cansado - Renan responde.

- A gente não pode ficar aqui!

- Eu sei! Mas a gente precisa descansar!

- Ah não ! - eu falo, olhando para uma esquina.

- O que? - Ele pergunta e olha para lá também. - Ahh nã... droga !

Um grupo de doentes estava virando a esquina, fazendo com que o nosso caminho fosse interrompido.

- Pra onde agora?? - Ele me pergunta.

- De volta. - Mas assim que nos viramos pro lugar de onde viemos, a terrível surpresa dos doentes que nos seguiram, estavam a poucos metros de distância.

- Pro outro lado da rua. - Ele fala, onde havia menos doentes e onde poderíamos ter chance de escapar. Eu sigo, depois de pegar um pedaço de madeira que estava no chão. Um deles chega perto demais e leva uma pancada na altura do peito, que o faz recuar um pouco. Mas não adiantava, porque mais e mais deles chegavam. Estávamos no meio da avenida, quando naquele momento ouvimos uma porta de ferro se abrir e alguém chamar:

- AQUI! RÁPIDO !

Sem hesitar, desviamos de uns dois doentes e corremos para lá. Tão logo quanto entramos, o homem fechou a porta e passou um cadeado nela.

- Obrigado senhor, se não fosse por... - Renan começou a agradecer, mas foi cortado pelo homem.

- De nada! Vocês tão bem?

- Depois de ser atacados por aquelas coisas, acho que sim... - Eu respondo, ofegante.

- Hmmmm... o pequeno aí não parece muito bem.

- Ele tá cansado, com fome, não... - Renan falou, mas mais uma vez foi interrompido.

- Vamos lá pra cima. Vocês vão ficar aqui.

Seguimos o homem por uma escada de metal que levava até o andar superior, passamos por um corredor, por uma porta e por outro corredor, que nos levou até uma sala não muito grande. Lá havia mais três pessoas, duas mulheres sentadas em um sofá, e um homem em pé, olhando por uma janela. Todos se viraram para nós quando entramos.

- Meu Deus! Crianças! Vocês estão bem ? - Disse a mulher que parecia mais velha, se levantando e caminhando até nós. Pensei comigo: "De novo esse papo de criança?"

- Eles tão bem, Gilda. Só precisam comer alguma coisa e descansar. - Disse o homem que nos trouxe.

- Eu vou preparar alguma coisa. - Disse a mulher, saindo para a cozinha.

- Senhora, não precisa se incom...- Tentou dizer Renan, mas o homem o interrompeu.

- Precisa sim, e não é incômodo. Ah, e eu me sinto velho demais quando me chamam de senhor, pode chamar de Pedro, ou tio mesmo. Bem, essa é a Rosana e ele é o André. - Ele nos apresentou a mulher e o homem, os dois pareciam estar na faixa dos 30/40 anos. - E vocês?

- Renan, senhor. Ele é o Lucas, e o Vinicius - Disse Renan, nos apresentando.

- Vocês são parentes? - Perguntou seu Pedro.

- Ah, eu e o Vini somos irmãos, o Lucas é nosso vizinho...

- Ele não parece nada bem. - Disse Rosana.

- É, ele tá fraco, com fome. A gente correu muito... ele não agüentou... - Disse Renan

- Põe ele pra descansar na minha cama, enquanto a Gilda faz a comida. - Disse Pedro.

Renan levou o Vinicius pro quarto que Seu Pedro indicou e o pôs na cama. O coitado estava muito cansado, dormiu assim que encostou no colchão. Enquanto isso, a comida ficou pronta, e nós fomos para a cozinha comer. Só nós dois, os outros ficaram lá e nós conversamos sobre o que tinha acontecido, eles queriam saber mais de nós, e nós deles.

- Eu tava no shopping, que trabalho lá... trabalhava... Mas aí veio o aviso de que deveríamos voltar pra casa. Mas ninguém saiu. - Contava Rosana.

- Por quê? - eu perguntei

- É que não era uma ordem superior direta, acho que todo mundo ficou com medo de ir embora e perder o emprego depois. Ninguém nem sabia o que tava acontecendo. Ou melhor; até sabia ... mas ninguém pensou que fosse chegar até aqui. Sei lá. Só sei que eu tava saindo pra almoçar quando teve uma confusão no corredor e um desses doentes veio pra cima de mim.

- Que que você fez? - perguntei.

- Dei com a bolsa nele e saí correndo pelo shopping. Só que eles vinham de todo lugar, atacavam as pessoas, aí começou a bagunça. Eu entrei em um fast-food e fiquei lá um tempo com os funcionários, depois a gente saiu pelo depósito e um ônibus da polícia, exército sei lá, pegou a gente e levou até um abrigo, que depois foi tomado por "eles".

- Nossa! - Eu disse. - E você correu até aqui ?

- É, mais ou menos, eu tava fugindo por aí, até que cheguei nessa avenida e encontrei o André ali na frente, aí o seu Pedro e a dona Gilda recolheram a gente.

- Então você também fugiu até vir parar aqui ? - perguntou Renan para André.

- É. Peguei um ônibus logo depois de sair do hospital, só que o maldito acabou batendo num poste. Aí eu corri até chegar aqui. - Ele explicou.

- Por quê você tava no hospital? - Eu perguntei.

- Lembra do discurso do Lula na TV? Que ele falou pra estocar alimentos e a cidade inteira foi pro mesmo supermercado... Então, eu fui lá, comprei tudo o que precisava, me preparei pra passar um mês sem precisar sair de casa. Aí eu tava voltando quando um carro bateu no meu num cruzamento. Por sorte eu não morri. Desmaiei e só acordei depois dentro da ambulância. Aí me levaram pro hospital e logo depois do meu caso começaram a aparecer umas pessoas com uns machucados muito estranhos. - Estava contando o André, sobre como ele foi parar ali

- Eram os primeiros zumbis. - Disse Pedro

- Zumbis ?!?! - Perguntamos surpresos, quase instantaneamente, eu e Renan.

- Ele diz que são zumbis, mas eu acho que não. Zumbis não existem né! - Disse Rosana

- Não existiam. - Retrucou Pedro

- Digo, não seria possível eles existirem... - Disse Rosana de novo.

- De certo modo ele tá certo. Quer dizer, se eles não fossem zumbis, não comeriam gente... - Disse André

- São só pessoas doentes! - Falou Rosana

- Doentes que comem carne humana...- Disse Renan, deixando de só ouvir a conversa.

- É fato, aquelas pessoas lá fora são zumbis. Por que estaríamos escondidos aqui se não fossem? - Disse Pedro.

- Eles são doentes, estamos escondidos porque não queremos pegar a doença deles! - Insistiu Rosana

- Mais do que não querer pegar a doença, não queremos ser comidos vivos! - Falou Pedro

- Zumbis ou não, isso não é assunto pra se conversar na hora de comer! - Interrompeu dona Gilda, antes que a discussão aumentasse demais. - A comida tá boa, rapazes?

- Ahh sim, sim ! Tá ótima! - respondemos.

- Que bom! Olha, não é nada muito especial, mas dá pra matar a fome. - Disse ela.

E fez-se silêncio por um tempo, até que seu Pedro falou:

- E vocês rapazes? Por que tavam se aventurando lá fora nessa altura do campeonato?

Nós dois nos olhamos. Renan disse:

- É que...

Antes que ele pudesse completar a frase, eu respondi, sem tirar os olhos do prato de comida:

- Minha casa foi invadida.

Parecendo meio sem graça, ninguém falou nada, exceto quando Pedro disse:

- Se você não quiser contar nada sobre isso...

- Não, tudo bem.Vocês contaram, não tem problema pra mim contar...

- Se for desconfortável pra você, tudo bem...

- Não não, sem problema. Foi assim: - E comecei a contar. - Estávamos em casa, oito pessoas, quando um carro veio na rua e bateu no nosso portão. Aí os doentes... zumbis... ou o diabo que sejam, começaram a entrar. Cada um correu pra um lado, nem vi onde os outros foram. Eu consegui me esconder no meu quarto com o irmão dele e a gente desceu pela janela. Lá embaixo encontramos com ele - apontei pro Renan. - e a gente conseguiu escapar.

- Peraí, não entendi, vocês não disseram que eram vizinhos? - Perguntou André.

- É - Respondeu Renan. - Mas eu e a minha família tava na casa deles por que uma noite antes a nossa foi invadida. Aí eles deixaram a gente ficar lá.

- E só vocês escaparam ? - Perguntou ele de novo, ganhando um leve olhar de repreensão por parte de dona Gilda e Rosana.

- Não sabemos dos outros... - Respondi, olhando pro prato de comida. - Cada um correu prum lado, se nós escapamos eles também podem ter conseguido.

E fez-se silêncio de novo, exceto pelo barulho dos talheres batendo no prato, até que Renan falou que ia ver o irmão. Fiquei sozinho ali, com aquelas pessoas que eu nunca tinha visto, tentando organizar meus pensamentos. "Onde estariam?", " COMO estariam?". Até que ouvimos Renan chamar:

- NÃÃO! ALGUÉM ME AJUDA AQUI!! VINI, NÃÃÃO! ALGUÉM!

Todos correram para lá, inclusive eu. Chegando lá, o Renan estava deitado na cama abraçado com o irmão, chorando. Seu Pedro se aproximou e sentou ao lado dos dois.

- Ele, ele... não... depois de tudo... não...- Dizia Renan, entre lágrimas.

- Sei que é uma perda difícil, mas... - Disse seu Pedro.

- Depois de.... tudo... da avenida... lá fora... - Ele tentava dizer, sendo silenciado pelas lágrimas.

- Você fez o que podia por ele... - Disse seu Pedro.

- Espera! - Disse Rosana. - Ele não morreu!

Todos olharam dela para o corpo de Vinicius, que parecia morto, mas ele estava mexendo os braços. Imediatamente um largo sorriso apareceu no rosto de todos, mas principalmente de Renan, que abraçou com mais força o irmão. Mas algo não parecia certo. Seus olhos pareciam frios, perdidos; os arranhões no braço estavam exatamente iguais, se não piores que no momento em que foram feitos.

- Sai de perto dele! - Falei. Todos me olharam, confusos. Foi então que o menino abriu a boca, soltou um grunhido aterrorizante e avançou no irmão. As mulheres gritaram, todos recuaram. Renan segurava os braços do irmão doente, que se debatia, tentando arrancar um pedaço de sua carne. Depois do susto, seu Pedro pegou o garoto, com certa dificuldade, e o empurrou para o chão do outro lado da cama.

- Sai daqui!!! VAI! - Pedro gritou, e todos correram para fora do quarto. Ele fechou a porta, mas o garoto havia se levantado e agora ficava batendo nela, gemendo e grunhindo. - Precisa pôr alguma coisa aqui, pra ele não abrir. - ele disse. Dona Gilda sai do cômodo e logo volta com uma tábua de madeira nas mãos, que entrega para Pedro e ele a coloca na porta, travando a maçaneta. Encolhido em um canto, Renan chorava, cobrindo o rosto com as mãos. Mais uma perda, mais uma desgraça, que parecia não poupar niguém.

[...]

The Kinslayer
Enviado por The Kinslayer em 15/12/2008
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