O PROPRIETÁRIO [atualizado em11/01/2009]

Ademar Murtosa não era como destes policiais que aparecem nas telas de cinema. Não era nem um pouco galã, e a prova cabal era sua volumosa barriga, fruto do malte da cerveja, bebida que apreciava diariamente. Não se poderia chamá-lo de careca, mas a calvície se aproximava com certa rapidez. Nos olhos carregava as olheiras dos plantões, e das noitadas nos subúrbios, onde conhecia os lugares mais quentes da cidade. Outra grande diferença estava em sua condução. Ao invés de carrões esportivos dos “tiras” das telonas, chegava à delegacia em seu Monza oitenta e oito. Em seus mais de vinte anos de policia civil, onde passou de inspetor a delegado, jamais vira tal brutalidade, e olha que naquela cidade, e nas jurisdições muitos crimes horrendos aconteciam rotineiramente, mas nada se comparava àquilo. Com sua saúde ainda frágil, do pouco tempo que regressara de uma hospitalização, não segurou a ânsia e o vômito que empestearam ainda mais o ambiente, já tenebroso.

O apartamento da vítima era pequeno, um quarto apenas. Era onde se encontrava o corpo do homem. Os lençóis estavam encharcados de sangue. Muitos respingos inclusive nas paredes e no teto. Seu abdômen estava rasgado na altura do coração. Refeito da coragem, o delegado Murtosa aproximou-se, e logo constatou que algo faltava ao morto. O coração. Ele tivera seu coração arrancado. – Procurem pelo apartamento. Ordenou o delegado aos seus subordinados. Ficou sozinho analisando a cena do crime, principalmente o fato mais estranho entre todos. A própria vítima segurava em sua mão uma adaga de fio cortante, e completamente ensangüentada. Buscou por rastros de sangue, pois isto poderia indicar que houvesse tido algum tipo de luta, e o assassino poderia ter sido ferido por sua vítima. Não encontrou. Os outros policiais também não encontraram mais, nada. O possível assassino tivera seqüestrado o coração do morto, que logo ao remexer em seus documentos, descobriu-se o nome, João Carlos Belo.

A carteira continha boa quantia em dinheiro, cartões de crédito e a sua identidade. Tinha quarenta anos. – Que faz um homem desta idade sozinho, perguntou-se Murtosa. Nada fazia sentido, e isto lhe intrigava. Assalto foi á primeira hipótese a ser descartada. Absolutamente nada havia sido retirado do local. Nisso perguntas começaram a ser rabiscadas numa caderneta. Este era o método por qual Murtosa trabalhava. Perguntava-se a todo instante, pois somente deste jeito conseguia manobrar teorias que melhor se adaptassem a suas perguntas.

Como o assassino entrara no local? Foi á primeira pergunta que se fez. Os policiais só conseguiram invadir o local depois de arrobarem a porta, que estava com todas as travas de seguranças pelo lado de dentro. O apartamento estava no oitavo andar, eliminando assim as janelas. Aliás, o corpo só foi descoberto de pelo menos uns quatro dias da morte, quando o sumiço e o mau cheiro vindo do local, começou irritar os demais condôminos. “Foi suicídio”, balbuciou um dos policiais. Murtosa virou-se rápido. Olhou novamente o corpo, e viu-o de uma forma diferente. De fato sua posição indicava tal possibilidade, até então não cogitada. Refletiu por alguns segundos, e voltou-se ao outro policial, e concomitantemente rabiscou mais uma pergunta em seu caderno, e falou em voz alta, “pode até ser, mas cadê o coração?”

Numa agenda os policiais encontraram um nome destacado e um número de telefone celular. Ligaram, e descobriram que Suzi, era filha do homem que jazia morte. Do outro lado da linha o policial que fez o telefone pode ouvir os soluços e o choro incontido da jovem, que morava com mais três amigas próximas à faculdade. “Estou indo para aí.” Disse ela. Era um avanço saber alguma coisa da vítima misteriosa, pensou o delegado Murtosa.

O tumulto aumentava no local, com a chegada de legistas, e mais policiais. O pequeno apartamento estava repleto de pessoas estranhas a ele. A bagunça era geral. Não demorou muito para que os parentes chegassem ao local, abrindo um corredor entre vizinhos curiosos. Eram duas belas mulheres. A mais jovem estava aos prantos, enquanto a senhora, visivelmente abatida a continha. “É carinho de mãe.” Sentenciou o delegado. Estava correto.

Suzi tinha dezenove anos. Cursava direito, e havia saído da casa da mãe desde o início do ano para morar mais perto da faculdade. Era uma jovem muito bonita. Provavelmente herança genética, já que sua mãe ostentava grande beleza aos trinta e oito anos de idade. Havia se separado há pelo menos dois anos da vítima. Ele era escritor, o que foi a causa da separação, pois a bela Rosane disse que o trabalho passou a invadir seu casamento, a absorver a vida de João. “Na verdade ele começou a ficar muito estranho, ausenta da família, e sempre buscando se isolar. Muitas vezes peguei-o falando sozinho, e depois da separação poucas vezes nos vimos. Ele dificilmente saía deste apartamento.” Disse a mulher sentada no saguão do prédio. Murtosa as levara até ali por ser um local mais tranqüilo, e ele precisava descobrir um pouco mais sobre á vitima, já que se tratava de um crime muito incomum.

A conversa com as duas serviu para inundar as páginas de sua caderneta com perguntas. Um homem solitário poderia ter inimigos? Que tipos de obras ele escrevia? Nunca ouvira falar nele. “Edu Leal”. Disse a mulher respondendo ao cochicho do delegado. “Não entendi.” Respondeu ele. Ela lhe explicou que o nome como autor era “Edu Leal”. Por isso ele não ouvira falar no escritor João Belo. Levava ele outro nome nas capas de seus romances policiais. Este o delegado conhecia, pois havia lido alguma de suas obras. “Então investigarei a morte de um ícone das histórias policiais.” Disse ele. Uma negra coincidência. Pensou ele.

A conversa se estendeu por cerca de meia hora, porém as mulheres estavam impacientes por ver a vítima. “Eu não as aconselho.” Ponderou o delegado. E vão, pois mãe e filha estavam obstinadas em ver o corpo do homem, que embora solitário e distante, elas o amavam muito. O delegado ainda tentou insistir, mas não conseguiu as conter, e as duas invadiram o quarto onde o morto estava envolto a peritos, e flasches das máquinas que fotografavam a cena do crime.

Ao vê-lo, as duas caíram em prantos e terror. O choro era convulsivo, e as lágrimas inundavam seus rostos. “Meu deus. O que foi isto... o que foi isto...” Um Grupo de policiais se aproximou para retirá-las do local, já que a emoção era demasiada e podia lhes atrapalhar. Gaguejando entre soluços e lágrimas a mãe quis saber o que acontecera, e principalmente que rombo carregava seu ex-esposo no peito. O delegado relutou e falar, mas acabou cedendo. “O coração minha senhora. O assassino lhe roubou o coração...”

Os rostos de mãe e filha ficaram pálidos. A voz que tentava ser pronunciada teimava em não sair. “O que foi senhoras?” indagava o delegado percebendo o congelamento das duas mulheres. Pareciam petrificadas com a informação. “Água... água...” ordenava o delegado aos seus subalternos. Em alguns minutos ele conseguiu acalmá-las, se é que isto fosse possível. Foi então que com as poucas forças que restavam a elas que delegado ficou a par de um fato macabro. Pelo menos foi o que lhe pareceu em primeiro instante. “Ele sofreu com uma cardiopatia grave, e há cerca de dez meses passara por um transplante... De coração.”

A notícia causou choque em todos na sala. Quem ouviu paralisou. E antes que a frieza habitual necessária a sua função, o delegado Murtosa permitiu-se aos sentimentos humanos e teve seu corpo invadido por um calafrio de medo e terror, deixando a razão fugir em devaneios mentais. Demorou alguns segundos para se recompor, mas não lhe saíram outras palavras de sua boca que não fosse “Meu Deus, o que aconteceu aqui?”

O investigador saiu da sala desnorteado. Era uma informação que poderia vir a ser relevante para o caso. Um morto, que tivera seu coração arrancado e levado pelo assassino, e que coincidentemente sofrera um transplante de coração. Poderia ser um ponto de partida. Porém nenhuma pista fora deixada no local. O apartamento indicava a presença de uma única pessoa, o próprio morto, mas talvez a revelação lhe desse uma linha de investigação, na verdade a única que conseguira criar até então.

Os repórteres, assim como os abutres pela carniça descobrem rápido um fato que possa vender jornais. Murtosa não gostava deles. Na verdade detestava-os. Por isso se afastou com a chegada deles, e foi até uma padaria próxima. Pediu uma taça de café preto e um pastel. Tirou do bolso uma segunda caderneta. Tinha uma capa verde, e era bem volumosa. Tinha ele um hábito estranho. A cada café, punha-se a julgar os pastéis do lugar. Ele apreciava um bom pastel, e por este motivo irritava-se com o local que servia pastéis preparados com estas massas prontas encontradas em mercado. Sua crítica era vasta, com vários locais visitados. Era uma terapia de fuga para cenas como a que acabara de presenciar. Ali, frente a frente com o pastel que pedira, era um momento singular, o único capaz de fazê-lo esquecer a cena macabra encontrada no apartamento do escritor. Ficou um tempo ali saboreando seu pedido, que até ganhou boa nota. Depois que bebericou o ultimo gole do café, amargo ao seu gostou retornou para a delegacia. Queria por em ordem seus rabiscos.

A grande dificuldade era estabelecer uma linha de investigação, e na falta de idéia melhor, optou por fazer uma pesquisa ao problema de saúde do falecido escritor. Encontrou alguma coisa em sites de buscas, e em jornais. Mas nada mais aprofundado, já que mesmo sendo um autor de certa repercussão, Edu Leal, era totalmente avesso á badalação. Seu nome circulava pouco, já estava muito mais para João Belo, que para Edu. Entre duas vidas ele habitava. Famoso sem o ser, e um notável desconhecido, onde suas duas faces puderam se encontrar apenas em sua morte, pois afinal a partir deste momento, havia apenas uma vida. Neste caso uma morte.

Nem sempre um investigador de mover-se apenas por fatos e indícios. Murtosa sempre acreditou na vocação das pessoas, e fazia seu serviço por vocação. Tinha em mãos um crime brutal, e poucos caminhos a seguir. Exatamente por isso resolveu crer em sua intuição. Algo lhe dizia que o sumiço do coração não era mera coincidência. “Um transplantado ter sacado o coração de seu corpo... Isto é demais... “ falava para si mesmo.

Isadora era inspetora nova no departamento. Tinha os cabelos ruivos, e os olhos verdes como esmeralda. Seu corpo era bem delineado. Ela dedicava horas na academia buscando manter a forma, e a força. Alguns policiais mais atrevidos saíam humilhados das competições de queda-de-braço. Foi ela que Murtosa ordenou a acompanhar caso junto com ele. Próximo da aposentadoria, ele via nela pulso firme para quem sabe comandar o departamento de investigações criminais. Levou-a também por ser seu oposto. Ela não acreditava em intuição. Assim quando ele entrasse em devaneios absurdos, Isadora lhe traria de volta aos fatos.

Ela em princípio não concordou muito com a linha adotada pelo delegado. Mas ele a convenceu de que era o pouco que tinham, principalmente até a chegada dos primeiros relatórios da perícia. Murtosa ligava sempre o fato do sumiço do coração. Para ele este fato era extremamente relevante. Talvez até mesmo a causa do assassinato. “Neste mundo há todo que é tipo de louco e pode acreditar, apenas um louco faria o que fizeram àquele homem.” Disse ele para a investigadora. Ordenou a investigadora que fosse ao hospital. Queria saber quando, e quem doara o coração ao escritor. E se possível queria informações dos familiares do doador. Enquanto ela obedecia às ordens, ele teria de cumprir seu papel, e dar alguma explicação para as dezenas de jornalistas que se aglomeravam em frente da delegacia.

O delegado nunca gostara dos holofotes. Sua virtude era manter a distância de jornalistas. Em seu departamento, quanto menos a imprensa soubesse dos crimes, para ele melhor, pois tinha uma visão que o falatório em rádios, e na TV serviam para atrapalhar a investigação, já que o criminoso sempre fica a par do andamento do caso. Porém a morte do escritor era uma notícia vendável, e ele não pode escapar de uma entrevista coletiva. “Foi um crime lamentável, e extremamente violento. Mataram uma boa pessoa e a sociedade pode ter certeza que este caso será elucidado. Nossa polícia dispõe de todas as condições de chegar ao criminoso, e antes que vocês façam esta pergunta, lhes digo: sim, já temos um suspeito, porém não entraremos em detalhes, para não atrapalhar a investigação.” O delegado foi econômico em seu pronunciamento, e blefou, pois sua esperança era que o assassino o ouvisse. Sua experiência comprovara que bandidos entram em desespero na iminência de serem descobertos.

Isadora voltou à delegacia na metade da tarde. Era um dia nervoso, regado a dezenas de xícaras de café. Murtosa inclusive já havia bebido seu “drink” tradicional de dias assim. Café com coca-cola. Ele sabia que viria um longo período sem sono. Cansado, tinha a obrigação de se manter alerta. A investigadora falou ao seu superior que havia sido difícil sua tarefa. Nem sempre funcionários de hospital são acolhedores, e tampouco diretores manifestam-se sem qualquer mandado judicial, algo que ela não tinha em mãos. Sua salvação foi uma nota de cem reais, sobrevivente ao seu salário do mês. “Foi minha única alternativa.” Disse ela. O delegado se comprometeu em ressarci-la, mas antes queria saber suas descobertas.

Graças a uma secretaria voluntariosa, Isadora conseguiu algo para trazer ao delegado. O escritor Edu Leal havia sofrido o transplante há treze meses. Da cirurgia a recuperação tudo fora um sucesso. Era isto que diziam as planilhas mostradas por Suzete, a secretária. Apenas algumas anotações rabiscadas falavam das sessões de psicoterapia. Aparentemente, o escritor demorara a se adaptar ao fato. Mas situação de rotina, confirmada pela própria secretária. Já o doador era Fabrício Veiga. Tinha vinte seis anos em sua morte. Vítima de uma briga entre torcidas sofreu traumatismo craniano após forte pancada na cabeça. A família doou todos seus órgãos. “Acho que recordo este caso, não foi lá na décima quinta...” falou o delegado que sempre fora atento a fatos de repercussão. O nome do jovem logo ressonou em seus arquivos mentais.

O delegado engoliu com pressa o conteúdo da xícara, e avisou aos colegas que partiria em uma diligência. Na verdade iria até ao décimo quinto departamento de polícia. Em vão Isadora buscou contestar sua atitude, e se esta, de alguma forma ou outra não estaria atrapalhando a investigação. Mas esta era sua única linha de pensamento. Ordenou a Isadora que esta ficasse no departamento aguardando algum sinal dos legistas, e antes de sair ainda encontrou tempo para uma brincadeira. “Olha só, nosso defunto tem algo em comum comigo...” Intrigada a investigadora o indagou a causa. “Também faz treze meses que passei por uma pequena cirurgia...” Ele deu as costas a sua colega, juntou suas cadernetas de rabiscos e partiu.

Fabrício Veiga era filho de um empresário de classe média na cidade. Era arruaceiro, e as pessoas que preferiam a verdade ao invés de ocultá-la sabiam do temperamento difícil do jovem. Prepotente e violento lutava em academias, e nos clássicos de futebol. Tradicionalmente era expulso de casas noturnas. Gastava o dinheiro do pai, mas jamais o ajudara na empresa. Vivia torrando dinheiro em festas ou com drogas. Muitos familiares cochichavam, “já foi tarde!” em seu velório. Esta foi á síntese feita por Palhares, delegado no décimo quinto departamento, ao Delegado Murtosa. Segundo Palhares, seus pais, desconhecedores da vida de seu próprio filho passaram por forte trauma. Um tio muito afeito ao garoto também ficou inconsolável, este inclusive era suspeito pela morte de um dos jovens envolvido na confusão com Fabrício. Foi pensando na imagem do próprio filho, ou talvez um meio de redimir seus atos, que a família decidiu pela doação de órgãos, revelou Palhares.

Murtosa não demorou muito com o delegado Palhares, e da mesma maneira achara pouco proveitosa sua diligência. Para ele havia algo entre o crime, e a doação. Não sabia os motivos que o levavam a tal obsessão. A cidade fervia. O calor subia do asfalto, e parecia fritar o delegado em seu automóvel sem ar-condicionado. Ele estava cansado, pois afinal faziam mais de quarenta e oito horas que não dormia. Era uma semana agitada em seu departamento. A imagem cada vez mais turva, e um sussurro que começava a lhe atrapalhar. Seus ouvidos eram invadidos por um som estranho, inaudível. Murtosa sentia a necessidade de parar para descansar. Meia hora de sono talvez lhe fizesse bem. Assim mudou seu trajeto, e foi até seu pequeno apartamento. Tinha de dormir um pouco, pois as idéias se embaralhavam em sua cabeça, e ele punha em dúvidas suas próprias ações.

O sono foi revigorante, embora sobressaltado pela batida na porta. Era Isadora. “Meus Deus, porque o senhor sumiu?” perguntou á investigadora. Meio tonto ele questionou-a, até que a mulher lhe trouxesse ao mundo real. Murtosa dormira por um dia inteiro. Sua vontade de uma soneca de trinta minutos transformou-se em vinte e quatro horas sem por os pés na delegacia. Depois de várias tentativas no celular, Isadora resolveu procurá-lo em sua casa. Levava os resultados preliminares da perícia. Os resultados embora parciais intrigaram o delegado. Os peritos não encontraram nenhum sinal de que outra pessoa estivesse o no apartamento do escritor no dia do crime. Testemunha alguma presenciou movimentação estranha. Na portaria não havia qualquer registro de visitante. Nenhuma digital, ou corpo estranho ao local foi encontrado. Nenhuma outra faca, o rastro de sangue foi achado, o que seria normal, já que a vítima foi cortada de maneira bruta. Apenas o quarto, continha as marcas do crime. Pelas janelas seria impossível qualquer invasão. O delgado apenas comichava seus cabelos desgrenhados, até que certo ponto interrompeu-a. “Mas que droga, que raios de peritos são esses... Cadê o coração? Cadê o coração? Alguém me explica como aquele coração saiu daquele apartamento...” Ele estava irritado, deixando a investigadora nervosa. Mesmo assim ela se aventurou em falar novamente sobre sua hipótese: “Acho que foi suicido, delegado.” Mesmo em tom baixo o delegado pode ouvir, e ficar ainda mais irritado. “e diga dona Isadora, como um homem se mata, arranca seu coração, e depois de defunto consome com ele... Me diga, dona Isadora...”

Para esta pergunta ela não tinha resposta. Já o delegado sabia. Era impossível. Nenhum homem poderia suicidar-se, e sair andando para dar um sumiço em seu próprio corpo. Enquanto ele foi tomar banho para sair para o trabalho, a investigadora ficou aguardando. Curiosa, como são as mulheres, observava o bagunçado apartamento. “Bem coisa de homem sozinho.” Pensou. E talvez fosse esta a melhor maneira de resumir o local onde o delegado morava. Roupas espalhadas. Latas vazias de cerveja por todos os cantos. Um rádio velho e uma televisão grande frente a um sofá que pelo jeito lhe servia de cama. Quando saiu do quarto pronto para ir trabalhar, uma voz sussurrou nos ouvidos do delegado Murtosa: “devolva-me”. “O que a senhora disse, dona Isadora?”. “Nada delegado. Não falei nada”. Sabendo que a moça não o compreenderia, o delegado não deu importância ao sussurro e partiu para o departamento analisar o que tinhas em mãos até o momento.

Os dois saíram, mas antes de irem ao departamento, Murtosa parou em uma padaria para tomar café. Afinal fazia um dia sem alimentar-se, e sentia fome. “Aceita um pastel?” A resposta foi um balançar de cabeça, dando seu sinal de negativo. “Agora sei o segredo de sua boa forma.” Disse ele sacando um sorriso envergonhado no belo rosto de Dona Isadora. Realmente era uma bela mulher e na delegacia viviam os inspetores a olhar suas belas pernas sempre nuas, pois ela sempre vestia saías, instigando a imaginação dos homens, inclusive do delegado Murtosa. Enquanto ele devorava um graúdo pastel de frango, ela apenas bebericava uma taça de café, enquanto folhava uns papéis. Foi neste momento que seu celular tocou. Seu rosto, de certa forma alegre até aquele momento, se desfez. Era o escrivão Antenor. Sem adiantar o acontecido, solicitou que ela e Murtosa se dirigissem até o Pronto Socorro. Ele apenas falou que o caso tinha a ver com a morte de Edu Leal, e nada mais adiantou. Também pediu pressa.

Quando os dois chegaram ao hospital, o Doutor Antonio Carlos os aguardava. Vinha com uma pasta em mãos, e com semblante nada agradável. “Em tantos anos de profissão, é uma das coisas mais estapafúrdias que já vi.” Disse ele se dirigindo aos policiais. Era uma história longa, que relatou em sua sala. Falava de Marcio Abreu. Um jovem que chegara ao Pronto Soco em estado crítico de vida. No início da conversa Murtosa ficou sem entender o motivo de sua presença, mas ao passo que o médico ia falando, a conversa se tornava familiar. Márcio foi encontrado por um colega de apartamento que logo chamara a polícia. Ele agonizava na cozinha. O piso branco estava encharcado de sangue, e em suas mãos uma faca. Sua barriga apresentava um corte largo e profundo. Ele apenas gemia. “Não entendo seu chamado.” Disse o delegado ao seu interlocutor. Ele falou para Murtosa que por orientação do Delegado Conceição da Décima Quinta Delegacia o chamara. Este fato se devia por toda polícia, e também a população ter acompanhado o que acontecera com escritor. Por isso Murtosa fora chamado até ali, embora o caso tivesse acontecido fora de sua jurisdição. O fato é que Márcio foi encontrado com uma mutilação, a qual os investigadores da décima quinta trabalhavam como autoflagelação.

O delegado então passou a se mostrar mais atento ao que falava o médico. Isadora estava apreensiva, e os rostos dos dois foram tomados por perplexidade e espanto quando o médico lhes revelou que Márcio retirara seus rins. Os olhos de Murtosa se arregalaram de surpresa, mas ainda não era tudo, pois ele ainda ficou sabendo que também o jovem havia feito transplante. “Não sei o que dizer, mas deve haver um surto de transplantados com problemas psicológicos.” Disse Doutor Antonio. “E acharam o rim?” Indagou o delegado. “Não.” Disse enfaticamente uma voz latejante e aguda do homem que acabava de entrar na sala. Era o Delegado Clodoveu Conceição. Foi ele que resolvera chamar Murtosa. Como com o escritor, o órgão sumiu, evaporou... “Não posso acreditar nisso, tem alguém brincando com a polícia. Não acredito que um ser humano faça isso consigo mesmo.” Disse Murtosa se negando a crer na posição de Conceição que tinha por certo que o jovem tinha tirado seus próprios rins. Como seu colega não se dispusera a investigar outra hipótese, se quer sabia mais detalhes, coisas que Murtosa procuraria fazer antes que o departamento estadual fizesse alguma intervenção nas investigações.

“Não posso crer nos idiotas da décima primeira;” resmungava Murtosa para Isabela. Desde o que acontecera com Edu Leal, ele pusera em sua cabeça que havia alguma ligação entre os acontecimentos e os transplantes. Por isso não conseguia acreditar que seu colega acreditasse fielmente que o jovem Márcio tivesse sacado seus próprios rins, e consumido com o órgão. Voltou ao departamento, e foi investigar de onde provinha o órgão recebido. Para sua surpresa ou não, e resposta foi: Fabrício Veiga. Ele finalmente chegava a uma ligação concreta entre os fatos. Isabela não sabia o que falar, e a mulher, tão adepta da linha de suicídio, agora ponderava que seu superior talvez estivesse certo, e que algo de muito estranho acontecia na cidade.

Ela seguiu seu chefe que entrou que pegou seu carro e partiu em mais uma diligência. Seu destino era a mansão em que residiam os pais do jovem doador. Era um senhor distinto e educado. Romero Veiga, pai do jovem doador confessou ao policial que tivera tal atitude para dirimir certos defeitos em vida de seu filho. Segundo ele o jovem era cheio de vida, porém um tanto rebelde. Tinham uma vivência conflituosa, mesmo assim a falta que Fabrício lhes fazia era muito grande. Havia certo ressentimento no homem, por talvez não ter vivido com seu filho tudo que imaginava ter sido possível fazerem juntos. “Percebemos nossos erros apenas após nãos restar tempo para corrigi-los.” Disse o homem aos seus policiais. Relatou também a difícil decisão em doar os órgãos dos filhos, mas que a mesma fora tomada em conjunto com sua esposa. Ela acompanhava a conversa, e parecia confusa com as perguntas já que um bom tempo havia se passado, e lhe doía remoer velhas feridas.

O delegado Murtosa indagou do senhor Veiga quanto aos destinos dos órgãos doados por seu filho. Infelizmente ele nada sabia pois a família preferira não estabelecer qualquer ligação com os beneficiados, o que inclusive é uma prática adotada nestes casos. Embora a conversa tenha sido boa os policiais iam se retirando sem muitos avanços, e o delegado Murtosa não encontrara nenhum indício que a família o escondesse algo, ou que ali houvesse alguma ligação com os novos crimes. Mas seu faro de investigador ainda o levou a mais uma pergunta. “Senhor Veiga, alguém da família se contrapôs à doação?”

A pergunta revelou uma nova expressão no homem. Embora pouco a vontade com o caminho que a conversa se dirigia, o Senhor Veiga confessou que um tio havia sido contrário. Não era apenas um tio. Era Paulo Veiga, o irmão caçula de Romero. Era a principal companhia de Fabrício, seu melhor amigo. Nele o jovem depositava a figura paterna mesclada a de um irmão mais velho, coisa que o jovem não tinha. A proximidade dos dois gerava certo desconforto e ciúme em seus pais. Era com este tio que o jovem passava a maior parte do tempo, e era ele quem o defendia quando aprontava das suas. Paulo vociferava contra a decisão de seu irmão e sua cunhada. “O mano – apelido do jovem – jamais faria isto, ele sempre foi contra, jamais, jamais...” Talvez ele conhecesse o jovem mais que seus pais, mas isso não foi o suficiente para convencê-los a não doar os órgãos do filho. Em uma de suas ultimas tentativas, Paulo fez um escândalo nos corredores do hospital, mas era totalmente impotente contra a situação. Depois disso nunca mais procurou o irmão, e também não deu mais notícias. Havia sumido do convívio familiar. Quando a porta se fechou, Isadora fitou com seus olhos verdes o delegado, e sorriu. “Acho que o senhor encontrou um suspeito, não é?”

Murtosa parecia cada vez mais disperso. Talvez fosse as turbulências dos últimos dias. Um caso de repercussão é coisa que nenhum delegado gosta. Pelo menos os do tipo Murtosa, desarraigados de vaidade e de convívio social, e mais preocupados com os resultados. Sua delegacia por sinal era referência em elucidação de crimes, e continha os menores índices de crimes insolúveis registrados. Aí se justificava o afinco do delegado em buscar respostas ao crime acontecido com Edu Leal, cuja única prova cabal que tinha era o sumiço de seu coração. No carro trocou poucas palavras com a investigadora. Nem mesmo seus olhares mais atrevidos para o par de coxas de sua colega eram jogados. Murtosa admirava as coxas de Isadora. Torneadas, pele brilhante... Nem mesmo isso lhe chamava mais atenção. Ela percebia que algo não ia bem com seu superior, embora se mantivesse em silêncio, pois creditava todas as preocupações do delegado ao caso que investigavam.

Mas nada disso afligia o delegado. Nunca um crime lhe causou preocupações ou distrações. Era homem muito centrado no que fazia, e se Isadora o conhecesse há mais tempo saberia que Murtosa padecia de outro problema. Sua mente vinha lhe produzindo peças nos últimos dias. As dores de cabeça eram constantes e só não o irritava mais que os sussurros que passara a ouvir. Primeiro era como um sopro, uma presença, mas de dicção inaudível. Com o passar dos dias consegui compreender melhor as vozes que se apoderavam de seus pensamentos. Elas surgiam inesperadamente, e quase sempre proferiam frases como “Eu quero de volta” ou “Devolva-me o que é meu”. Quando dormia, seus sonhos também eram angustiantes, com figuras fétidas e pútridas. “Deve ser algo ruim.” Refletia ele.

“Vamos procurar esse tal de Paulo, delegado?... Delegado?” Houve demora no raciocínio de Murtosa, mas logo ele voltou suas atenções para a mulher que o acompanhava. Seus planos em primeiro lugar eram outros que o de Isadora. Ele se dirigia ao Hospital onde morrera o jovem Fabrício. Queria antes de encontrar o culpado, salvar possíveis vítimas do assassino, pois fosse quem fosse certamente seguiria sua jornada de assassinatos. Ainda mais se u suspeito realmente fosse alguém revoltado com a doação dos órgãos de um ente querido, como ele suspeitava. O delegado havia chegado até Fabrício pela ficha de Edu Leal, mas era necessário agora ter a relação de todos os pacientes que receberam órgãos dos jovens. No hospital de seu óbito certamente encontraria. Demorou a ter seu pedido atendido, mas um diretor lhe venho em socorro compreendendo a necessidade de tal documento, e, além disso, que lhe pedia era um delegado. Murtosa pegou o papel com uma lista de nomes e ficou pálido. Nela constavam sete nomes, e para sua surpresa, também continha um tal de Ademar Murtosa, receptor da córneas do jovem morto. O delegado nunca dera importância para a fonte das córneas obtidas num transplante que lhe garantiu a permanência no trabalho, visto que sofria de grafe problema oftalmológico. Mas naquele momento o destino lhe pregava uma peça, que o envolvia diretamente no caso mais estranho que já investigara.

A informação mexeu ainda mais com o delegado. Até então ele pouco dera importância a sua cirurgia para transplante de córneas, porém com a descoberta do doador, fato a que ele também jamais se detivera, o mesmo ganhou muita significância. Seguiu até a delegacia sem proferir nenhuma palavra, e vez por outra mantinha o gesto de comichar seus poucos cabelos. Isadora tentou puxar conversa as tudo, em vão. “Temos que encontrar este tal de Paulo Veiga”. Foram as primeiras palavras que ele proferiu, cerca de uma hora depois da nova descoberta.

Murtosa tinha pressa em elucidar o caso, e tinha certeza que estava próximo de sua vontade. Em muitos momentos se questionou se suas perturbações dos últimos dias não vinham contribuindo para a demora em sua investigação. Mesmo não confessando aos seus colegas, aqueles sussurros lhe atrapalhavam, lhe tiravam o raciocínio... Mas quem nunca padeceu de stress ou enxaqueca, e por final, ele sempre julgava que seus problemas logo cessariam, assim como o estranho caso que investigava. Naquela tarde, ele botou em polvorosa toda sua equipe. Os corredores do departamento estavam tumultuados, com investigadores zanzando de uma sala a outra. Não desgrudavam dos telefones em busca dos contatos que lhes satisfizessem as ordens de Murtosa que se recolheu ao seu gabinete analisar as provas encontradas até ali. Precisamente tinham como missão descobrir onde residiam os outros quatro receptores de órgãos do jovem doador. Um havia morrido na jurisdição do delegado, outro estava quase morto, e Murtosa, o último receptor era o único á saber na cidade a ligação entre os dois fatos, entre a morte do escritor e o jovem hospitalizado em coma. A soma de tudo isto era suficiente para provocar temores no experiente delegado.

Compenetrado em fotografias e laudos, Murtosa foi interrompido por Sebastião, um dos funcionários do departamento. Trazia más notícias. Eraldo Pereira, cinqüenta e cinco anos, pequeno empresário, e, receptor de um dos pulmões de Fabrício Veiga havia morrido há pelo menos dois meses. A viúva foi quem lhe passara as informações. Segundo ela a autoria do crime não havia sido descoberta, pois ele foi encontrado num lugar inóspito após uma semana de férias em local retirado. Ele tinha por hábito recantos campestres onde podia pescar e caçar. Ele tinha o isolamento temporário como prática comum, e por isso a esposa só passou a procurá-lo dois dias após sua volta programada não se concretizar. A polícia ainda demorou mais de uma semana para encontrar seu corpo em avançado estado de decomposição. Num primeiro momento o delegado teve reação de surpresa e espanto, coisa que já estava ficando habitual naquela investigação. Depois deixou seus olhos cintilarem, pois teve a certeza que encontrava sob sua responsabilidade um dos casos mais intrigantes da história, e pra um homem apaixonado pelo trabalho, este poderia seu grande caso, aquele que apos solucionado lhe daria todo o direito de se aposentar com o sentimento de missão cumprida.

Mas antes mesmo que o delegado tomasse qualquer atitude á sala foi invadida pelo estagiário. Vinha com notícia semelhante. Marcos Pereira, outro dos receptores foi encontrado morto em um matagal. Animais teriam devorado seus restou mortais, mas as causas da morte jamais foram concluídas, e o crime ainda se encontra aberto. O fato com cerca de três meses, levou Murtosa a colocá-lo como a primeira vítima do maníaco das vísceras, alcunha que os integrantes de seu departamento passaram a dar ao suposto suspeito. “Mas que droga, será que sou o único delegado nesta cidade.” Murtosa estava irritado com tantos crimes semelhantes, mas até o momento sem qualquer ligação estabelecida pelos departamentos policiais.

“Dona Isadora.” Gritou o delegado chamando sua imediata. Ela entrou esbaforida na sala, mas não continha as informações que o delegado necessitava. Buscava pelo paradeiro de Paulo Veiga, mas este sumira da cidade. Em seu apartamento ninguém atendia ao telefone, e o porteiro informou que não o via há tempos. Na família também não havia informações. Alguns cogitavam que ele estivesse em uma fazenda no interior, mas nada fora confirmado. “Cate este homem Dona Isadora. Vou sair.”

Murtosa entrou na viatura e partiu. Mesmo sem mandado sua ida seria ao apartamento do tio do doador, cujos órgãos pareciam malditos aos seus receptores, já que a morte vinha lhes bater na porta. Mas Murtosa, além de cético, era um profissional tarimbado e sabia muito bem que coisas estranhas não acontecem por meio de seres obscuros ou mistérios do além, e sim pela mão fria dos humanos, uma raça destinada a se auto-extinguir.

A noite caía na cidade. As pessoas voltavam para casa, e o trânsito estava lento. Não era o melhor momento para se exigir paciência do delegado. A cada cinqüenta metros um farol lhe parava. Sozinho sua mente dava margens aos sussurros que lhe incomodava há dias. Era uma conversa que tomava sua cabeça, e ele não conseguia ficar sem ouvi-la. A voz penetrava em seu pensamento, sempre exigindo algo, o qual Murtosa não compreendia. Por dias se perguntou se pegara algo emprestado, e tais vozes partiriam de sua consciência. Ele conhecia sua natura desligada do mundo, e algumas vezes isto já acontecera. Toda esta sua dispersão somada ao trânsito caótico era uma mistura muito perigosa, e Murtosa veio a descobrir isso ao avançar o sinal, e ser colhido por um veículo pesado. Seu carro rodopiou na avenida até avançar sobre a calçada, parando apenas ao encontrar as paredes da biblioteca municipal. O necessário para mais um tumulto no já caótico cenário.

O delegado acordou com a batida. Embora não muito violenta, o suficiente para provocar um corte em sua testa, fazendo o sangue escorrer pelo seu rosto. Limpou com a manga da camisa, e antes que a polícia chegasse ao local, partiu. Sabia dos procedimentos, e não queria ir a um hospital por um simples corte, e sua obstinação pelo caso lhe dava a certeza que não havia tempo a perder. Pôs em seu bolso os papéis com endereço, e rumou para o prédio de Paulo que ficava há duas quadras do local.

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Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 16/12/2008
Reeditado em 11/01/2009
Código do texto: T1339159
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