Castigo

As luzes daquela movimentada avenida contrastavam com a escuridão fria, cruel e implacável, daquela noite sem luar, sem estrelas, sem esperança, as trevas reinavam no céu noturno, embora fosse apenas nove horas.

Havia um pequeno bar, escondido por entre as vitrines bem arrumadas e prédios comerciais. Ao lado da porta de entrada do bar podia-se ler em uma lousa pequena, sem armação, as palavras “As Garras do Corvo”, escrito grotescamente em giz branco. A fachada do lugar não era muito convidativa, apesar disso, havia uma movimentação constante no bar, pessoas entravam e saiam com regularidade. O ambiente interno era sujo, mal cheiroso, pequeno e apertado. Em alguns cantos viam-se enormes teias de aranha, onde quase sempre se podiam ver moscas presas se debatendo, lutando, em vão, contra seu destino. Havia lixo jogado pelo chão, eram copos plásticos, latinhas, guardanapos sujos, restos de comida, e uma ou outra seringa e embalagens de preservativos. O balcão estava ensebado e gorduroso, a sua frente, meia dúzia de bancos de espuma rasgados e mal colocados. Uma garçonete vestindo uma roupa ridícula atendia os clientes com má vontade.

Em meio a pessoas esfarrapadas, góticos, punks, marginais e sabe-se lá mais o que, havia uma figura que não se encaixava na multidão distorcida. Eduardo Morais Lima era um rapaz forte e saudável, de porte europeu. Sua expressão era ao mesmo tempo tranqüila, misteriosa, indiferente e agressiva. Os cabelos louros, lisos, com um corte bem arrumado, eram brilhantes e bem tratados. Uma mexa longa e fina do cabelo lhe caia sobre os olhos, de um azul safira profundo, sombrio, e perturbador. As sobrancelhas eram finas, porém bem definidas e masculinas, realçando o olhar forte. O nariz era retilíneo, como o dos gregos, a boca era fina e possuía dentes brancos e perfeitos, e exalava menta. O queixo era ligeiramente saliente, dando um toque peculiar para o rosto, sem com tudo, afetar de forma geral negativamente a aparência do rapaz.

Eduardo usava uma jaqueta azul escura sobre uma blusa de lã preta, uma calça jeans azul marinha e sapatos sociais. Quem olhasse para ele não poderia imaginar que se tratava de um bandido barato e inescrupuloso. Ele tomava uma cerveja, e se preparava para seu próximo assalto no farol, quando um calafrio lhe percorreu a espinha. Uma moça lhe chamou a atenção. Ela era belíssima. Cabelos negros como ébano, longos, sedosos, brilhantes, lhe caiam sobre as costas, realçando a fragilidade da pele pálida, perfumada e macia. Seus olhos eram de um azul gelo, cuja expressão era insondável. Os lábios vermelhos e carnudos se abriram num sorriso, branco, perfeito e convidativo, quando aqueles olhos azuis pousaram sobre ele. A garota aparentava uns vinte e dois anos, e usava uma roupa casual, mas ela estava muito bem vestida. Camisa branca, jaqueta jeans, combinando com a calça bordada. Os sapatos cor de rosa davam-lhe um ar jovial e descontraído. Seus olhares se cruzaram por um momento. Ele não pode sustentar os olhos dela, desviando-os para o copo de cerveja. Ela estava esperando.

Ele criou coragem e mirou novamente seu rosto perfeito, mas sua atenção foi de súbito retirada pelo celular que alertou da chegada de uma mensagem. Ele lê aquela mensagem, sem com tudo decifrar do seu significado. Na tela do celular a frase atormentava-o sem ele saber exatamente a razão para isso. “Por que?”. Ele não fazia idéia de quem lhe mandara a mensagem de texto, mas procura se recompor e tenta esquecer o ocorrido. Seus olhos tocaram mais uma vez o rosto da garota. Uma lembrança emergia das sombras de sua memória. Seria possível? Não... Não poderia ser... Mas a semelhança era tanta... A garota se levanta e sai do bar. Sem se dar conta do que estava fazendo ele sai do bar, correndo em seu encalço. Mas a misteriosa donzela desapareceu.

O celular toca novamente. Ele pega o aparelho e lê a nova mensagem. “A meia noite, como da ultima vez. Dália.”. Ele já começava a perder o controle de si mesmo. Pouco a pouco o nome Dália despertava algo em sua mente, já confusa e desorientada, como a de uma presa preste a morrer nas garras do predador, momentos antes do bote. Ele está com medo. Desesperado, olha para o relógio. 11:03. Ele decide atacar numa rua vizinha. Anda silencioso, com passos curtos e rápidos, como os dos gatos. Ele anda por um tempo. As ruas são como um pesadelo insólito, um misto entre a realidade e as ilusões daquela mente perturbada e amedrontada. As luzes amareladas do poste lhe ofereceram um certo conforto naquela ruazinha deserta, porém, sem conseguir desfazer o temor que havia penetrado em seu coração. Ele sorri, percebendo quão ridícula era a situação. Eu estou com medo de que afinal? Normalmente as pessoas ficam com medo de gente como eu. Ele aguarda um pouco esperando pela sua vítima.

Um mercedes bens cruza a pequena ruazinha. Ela para no farol do cruzamento. Rápido, Eduardo prepara-se para o assalto. Tudo terminaria em poucos segundos. A vitima levanta o vidro com insufilme. Ele enfia a arma na janela do carro, para sua surpresa, ao volante do carro está a garota do bar. Seu sorriso e seu olhar exprimem uma certa ironia, sadismo e sarcasmo. Aquela expressão parecia penetrar nos seus pensamentos, cortando sua alma como a foice gélida da morte. Ele recua, desviando o olhar, mas já era tarde, aqueles olhos e aquele sorriso foram gravados no mais intimo de seu coração, e ele soube que, daquele momento em diante, jamais teria paz, por um momento que fosse. As luzes da rua se apagaram, Eduardo, sem poder enxergar, tropeça na sarjeta e cai de bunda no chão. As luzes se acendem novamente. Já não há mais carro e nem garota. Ele percebe que seus dedos tocaram algo macio. Ele segura o objeto e observa quando uma angustia consome seu coração. É uma dália. Uma dália negra.

Ele fica em estado de choque por alguns instantes. Olha o relógio. 11:39. Ele percebe estar a dois quarteirões da sua casa. Ele resolve esquecer de assaltos por hora. Caminha para casa. Tem a impressão de ouvir passos. TAC, TAC, TAC. Acelera o passo. O suar escorre pelo seu corpo. TAC, TAC, TAC. Ele sente algo frio, como uma respiração atrás de si, instintivamente começa a correr. Decide não olhar para trás. TAC, TAC, TAC. Ele entra no prédio onde ele mora pulando a grade, pois o porteiro não estava na portaria, como alias, era seu costume de sábados á noite, se esforça para não perder o passo. TAC, TAC, TAC. Já dentro do prédio, se decide por pegar a escada. Ele não vai parar de correr. TAC, TAC, TAC. Ele chega ao corredor do terceiro andar. Corre o mais rápido que pode. TAC, TAC, TAC. Abre a porta passa e tranca-a. Ele está ofegante. O coração acelerado. O corpo coberto de suor.

Ele tira a jaqueta á blusa e os sapatos, Ficando com sua camisa regata e as meias. Sua atenção para em um objeto delicado, negro, perfumado, que estava caído à frente da porta. Ele não precisou se aproximar para descobrir que se tratava de uma dália. O celular toca. Tremendo, ele pega o celular, e lê a mensagem de texto. “Eu estava te esperando... Quase que perdeu o horário do nosso encontro...” Ele pega as chaves, mas estas escorregam de seus dedos suados, e atravessam a fenda da porta, prendendo-o. Os móveis da sala começam a oscilar ameaçadoramente. O pânico toma conta de sua alma. Ele atravessa o corredor correndo, em direção a seu quarto. A porta está trancada. Ele tenta derrubar a porta, batendo com seu ombro, repetidas vezes na superfície de madeira. A porta se escancara. Ele olha o relógio. 11:56.

O quarto não era muito chamativo e tinha um ambiente relaxante e agradável. A cama era de casal, e como todos os moveis daquele quarto, era de mogno, as cobertas eram de um belo azul escuro. As paredes eram brancas, de gesso, e o carpete azul médio. Era um lugar pequeno, mas bem arrumado. Ao lado da cama tinha um criado mudo com um abajur e um despertador. Do outro lado havia um guarda roupa, também em mogno, uma peça antiga e pesada. Havia também uma escrivaninha, onde ficava o computador.

Ele sente um perfume doce em seu quarto, e se dá conta que não está sozinho. Uma garota seminua está sobre sua cama. Ele não pode deixar de sentir uma certa excitação pela figura feminina, ainda que misturado com medo. Lá estava ela, com um roupão de seda curto, negro, semitransparente, a pele pálida, as formas perfeitas, as unhas negras, afiadas, cabelos pretos lhe caiam sobre os ombros, os olhos azuis, como gelo, emitiam uma luz sinistra e agourenta. Ele se vira para a porta, mas essa se fecha sozinha. Num momento de desespero ele deixou escapar uma frase, na esperança de entender o que se passava.

-Por que?

De súbito, a lembrança invadiu-lhe a mente como um relâmpago, clara, forte e breve.

Aquela noite estava escura, sem lua, sem estrelas e sem esperança. Era mais ou menos meia noite, ele viu um mercedes bens se aproximando. O carro parou no sinal, a moça que o pilotava abriu a janela. Cabelos pretos, olhos de um azul gelo, lábios carnudos e vermelhos, pele pálida. Ela usava uma jaqueta jeans, combinando com a calça bordada, sobre uma camisa branca. Ele se aproximou sorrateiro. Ela não percebeu, pois falava num celular.

- Estou no caminho de casa mamãe! Desculpe o atraso, mas já estou chegando. Tchau. Eu te amo.

De súbito, ela percebe algo errado e olha para o lado. Ele empunha uma arma para a garota, e a manda passar a carteira. Ela obedece, e lhe entrega a carteira. Ele vê de relance a carta de motorista da garota, Dália Lushenberry. Lágrimas escorrem do rosto da jovem, que está assustada.

- Por que?

A pergunta o pegou de surpresa. Por que? Por que? E um súbito ódio contra a inocência da jovem o fez atirar. Ele correu, e não levou nada, salvo a carteira, a qual ele jogou no esgoto com seu conteúdo completo. A pergunta permaneceu em sua mente por muito tempo, mas acabou por diluir-se. Tantos rostos... Tantas vitimas... Ele já não se recordava.

Os olhos da garota se tornaram vermelho sangue. Um sorriso perverso estava estampado em seus lábios. De súbito, sua aparência se transfigurou, a pele murchou e acinzentou, secou como a de um cadáver, e desprendia um odor putrefato, os dentes outrora brancos, agora estavam afiados e amarelados, como os dentes de um predador. As unhas se tornaram em garras curvas, e um buraco se abriu em sua testa. Um som estridente foi ouvido por Eduardo. O som fez com que ele tapasse os ouvidos com as mãos. Inútil. O som estava dentro da sua cabeça. Ele percebeu que não era apenas um som á medida que a altura aumentava. Eram vários. Ele só queria que o som parasse, não importa como. Ele percebeu se tratarem de gritos. Ele então percebeu. Eram os gritos de suas vitimas. Eram gritos de homens e mulheres, jovens e idosos, culpados e inocentes, bons e maus. Todos sentiam a mesma dor, a mesma revolta, a mesma agonia e o mesmo desespero. Ele forçava ainda mais os ouvidos, cravando as unhas nas temperas até verterem sangue. Caiu de joelhos. As lágrimas lhe corriam pelo rosto. A dor era insuportável. E a melodia da morte prosseguiu, com seu coral de vozes fantasmagóricas e sem corpo, prosseguindo na canção da angustia dos lamentos e da dor. Nesse momento a jovem começou a cantar, e sua voz se juntou ao uníssono dos gritos, que perfuravam a mente de Eduardo, fatiando sua alma como uma foice fria e implacável, feita das vozes dos sofredores, e arrebatando sua vida débil e frágil.

Ele sentiu suas veias estourarem uma a uma, com a vibração sônica que lhe perfurava o corpo, a partir dos ouvidos, em seguida o pulmão, o estômago, e o baço o fígado, ele vomitava sangue. Finalmente o coração cedeu a pressão. Tudo estava acabado.

Seu corpo caiu num baque surdo. Um filete de sangue corria pelo lado da boca. Ela depositou uma dália negra ao lado do corpo de Eduardo. Olhou para o celular ainda nas mãos do rapaz. 12:00. Ela desapareceu por entre as sombras, se juntando aos seus companheiros sofredores, e uma nova voz se uniu as outras. Eduardo agora cantaria para sempre a melodia dos que se perderam na escuridão.

(Julio Cesar R. M. Filho)