Apenas Um Negócio

Apenas um Negócio

Meu nome é Victor Salazar Sanderson, sou médico e trabalho no hospital público de Raven Claws, uma pequena cidade britânica com clima frio e nublado, repleta de lendas urbanas e monumentos históricos, onde os prédios em sua maioria têm influência gótica ou neogótica. O que pretendo relatar aqui é uma pequena mostra do que venho fazendo já a alguns anos. Nós seres humanos, somos capitalistas, e a ordem natural das coisas sempre foi a mesma. O mais forte devora o mais fraco. Eu como doutor, tenho a responsabilidade de zelar pela imundice que é a humanidade, da qual eu também faço parte. Sempre acreditei que os fins justificam os meios, mas minha fé de que estou fazendo a coisa certa foi abalada, e sinto que não posso prosseguir a viver com o fardo da culpa que carrego. E é por isso que vou me matar. Agora mesmo, tenho em minhas mãos um frasco de extrato de dedaleira, uma droga usada para tratar problemas cardíacos, que se for ingerida em grande quantidade causa um ataque cardíaco. Essa substância não deixa vestígios no organismo, entretanto, poupo o legista de um diagnóstico revelando minha causa morte. Abreviei minha história em duas partes. Como comecei com minha série de homicídios e como elas chegaram ao fim, assim espero. Pulei o desenrolar para não me tornar repetitivo.

Precisa-se de Um Coração

Na época, era um jovem esperançoso que acreditava que as pessoas realmente faziam as coisas de bom grado uma para com as outras, sem interesse. Talvez se não fosse tão ingênuo nunca tivesse começado com tudo isso. Era um dia normal, como qualquer segunda feira. Não me recordo exatamente da data, mas a época de natal estava próxima. Estávamos no ano de 1.988, eu já trabalhava no hospital a dois anos, mais ou menos, mas ainda não havia me conformado com a dor das famílias e das próprias crianças que estavam na lista de espera de órgãos, devido ao fato de ter perdido minha irmã na fila de espera por um rim.

Passava por aquele corredor da UTI com pressa, justamente para evitar o contato com os familiares, mas fui pego de surpresa por aquela mãe desesperada cuja filha tinha o prazo de uma semana de vida caso não encontrasse um coração para o transplante. Ela chora e implorava pela sua filha, perguntava se não havia um jeito de passá-la na frente de outras pessoas para conseguir o órgão. Ofereceu-me dinheiro. Eu sabia que isso era ilegal, mas para aliviar o sofrimento da mulher, disse que poderia arrumar um coração novo para sua filha. O desespero em seu olhar me tocou, e eu era muito sensível a essa dor, pelo motivo o qual expliquei. No entanto, não sabia como conseguir o coração para a garota. A mulher me passou o telefone e disse para eu ligar se precisa-se de qualquer coisa.

Aquele dia eu fiquei maquinando. Crianças têm mais dificuldade para achar um órgão do que os adultos, afinal estes se preparam para morrer, planejam uma doação. No caso das crianças, a morte é súbita, e as famílias muitas vezes abominam a idéia da extração. Esperei por cinco longos dias aparecer um doador para a garotinha, e ninguém apareceu. Tomei uma resolução. Fui até o necrotério e subornei um legista para alterar a causa da morte de uma garotinha de rua para hemorragia devido a corte no peito. Na ficha, constava que todos os órgãos da pobre garota haviam sido removidos. O legista estranhou, mas concordou em ficar calado em troca duma certa quantia de dinheiro. Eu concordei.

Em seguida voltei para casa e preparei o porão para a chegada da minha paciente. Improvisei uma mesa de cirurgia, peguei o material de cirurgia que havia furtado do hospital e preparei uma caixa de isopor com gelo dentro. Em seguida, fui até a cozinha e preparei um gostoso e sedutor hambúrguer, e peguei uma lata de coca-cola, e enchi os dois de anestésico. É fato sabido que um órgão de alguém que acabou de morrer demora cerca de duas horas pra começar a se decompor. Quanto mais rápido for removido, melhor é a chance de aceitação do paciente. Fui até a periferia da cidade e procurei uma garota com características físicas parecidas com a da falecida que alterei a ficha. Logo encontrei uma que servia. Indaguei-lhe por família, ela respondeu que não tinha ninguém. Dei-lhe o lanche e ela não demorou a cair no sono. Levei-a até meu carro e nele a levei para minha casa.

Carregando-a com cuidado, levei-a até o sótão e apliquei uma dose de anestesia. Queria me certificar de que aquela menina não ia sofrer. Tirei suas vestes e peguei o bisturi. Foi um corte limpo no peito. Utilizei a pinça cirúrgica para abri-la e com a tesoura, rapidamente cortei as artérias e aortas. O sangue espirrou em todo o aposento. Eu usei a pinça para completar a extração e depositei o coração palpitante na caixa térmica arranjada. Eu apliquei um coagulante para interromper o sangramento e levei o container para o freezer. Em seguida, mandei o legista que me ajudou a adulterar a ficha deixar uma maca no térreo. Ele estranhou mas eu o subornei mais uma vez. Ele aceitou mas exigiu uma explicação que seria dada mais tarde.

Fui até o banheiro, e me lavei para tirar o sangue. Fiquei com o chuveiro ligado por muito tempo. Eu não me lembro muito bem quanto, mas entrei no meio da tarde e só fui sair umas oito horas. Precisava me sentir limpo. É difícil de explicar, mas é como se o banho lava-se o crime que havia cometido. Eu me vesti e coloquei o uniforme. Coloquei a garota em dois sacos de lixo para evitar criar evidências de qualquer coisa. Também peguei o coração, que tinha me custado a integridade. Arrastei o saco até o porta-malas e dirigi até o hospital. Coloquei o corpo na maca que o legista havia preparado, e ambos levamos o corpo pro necrotério. Eu peguei também o coração e o depositei no banco de órgãos, sob uma ficha falsa, com a ajuda do abutre do meu comparsa. Expliquei-lhe toda história pelo caminho. Mostrei-lhe que eu na verdade, havia poupado a vítima de toda dor que os outros a causariam, salvei a vida de uma garotinha inocente e recuperei a felicidade de toda uma família e ainda podia tirar vantagem disso.

A princípio, ele ficou meio inseguro, mas eu novamente apelei para seu lado capitalista e ele resolveu me ajudar dali para frente em minha empreitada. Juntos, demos um jeito da garota passar as outras na fila de espera, trocamos as fichas das garotas mortas, para ninguém desconfiar do crime ao checar os casos, apesar deu duvidar que alguém daria pela falta de alguma. O crime perfeito. Voltei pra alma e limpei o porão repetidas vezes.

No dia seguinte, a pobre menina que eu havia salvado foi pra sala de operação. Ouve uma aceitação fora do comum no seu organismo, mas é claro que isso se deve ao tempo de decomposição quase nulo do órgão. Nem mesmo a família soube como eu consegui o coração. Eu apenas cobrei pelo trabalho sujo e acompanhei o caso nas primeiras semanas, até ter certeza de que iria sobreviver. Doei minha parte do dinheiro para uma instituição de caridade, na esperança de salvar minha alma...

Prelúdio do Fim

Efetuei muitas outras operações como essa, entretanto, com o passar do tempo, comecei a utilizar todos os órgãos da minha vítima, não apenas o coração. Depois de um tempo, comecei a aceitar dinheiro para realizá-las. Essa na verdade, sempre foi a verdadeira natureza do ser humano. Somos ambiciosos, e por mais que tentemos negar, tudo que fazemos é apenas para benefício próprio. Mesmo a caridade, é um meio de propagar seu nome e fazer com que os outros acreditem na nossa fachada de bondade. Para ser sincero, eu perdi a fé na humanidade e em mim mesmo. No fim, acabou sendo apenas um negócio para mim, embora não tenha começado dessa forma. As vezes quando me deito de noite, não sou capaz de dormir. Fico tentando recordar todos os rostos das minhas vítimas, que se apagaram na minha memória...

Rose

Isso ocorreu a exatamente duas semanas. Estava inspecionando as proximidades do parque da cidade em busca de uma garota de quatorze anos, que fosse moradora de rua, tivesse cabelos louros e feições delicadas, e estivesse desesperada o suficiente para aceitar lanches e refrigerante de um estranho.

O dia estava enevoado e frio, como a maioria dos dias nessa maldita cidade. Subitamente avistei uma vítima potencial. O seu nome, soube depois, era Rose. Ela havia sido abandonada e nunca soubera seu sobrenome. Eu me aproximei. Ela estava sentada na calçada daquele beco, sentada sobre uma manta rota e imunda. Ela vestia roupas remendadas, cuja verdadeira tonalidade era difícil identificar. Apesar dos cabelos louros estarem colados na cabeça com uma grande quantidade de suor e poeira, e a face estar visivelmente suja, a garota tinha uma beleza delicada em seus traços que me fascinou. Ao notar minha aproximação, ela sorriu e me disse algo que eu não ouvia a muito tempo:

- Bom dia!

Parei uns instantes e hesitei. Quase abandonei minha tarefa macabra ali mesmo. Ela continuou a sorrir, daquela maneira meiga de garota. Engoli minhas emoções e lhe perguntei:

- Está com fome?

Ela respondeu com voz de animação, como se não nada a abalasse, nem mesmo a privação de alimentos.

- Sim, mas não se preocupe... Eu consigo me virar, sabe?

Olhei intrigado. Apesar de não possuir absolutamente nada, ela parecia ser uma garota muito feliz. Perguntei:

- Quer vir comigo comer um lanche ou dois e beber um refrigerante?

Ela sorriu novamente, se levantou e afirmou:

- Seria ótimo! O senhor é um homem gentil! Meu nome é Rose!

Eu a peguei pela mão e a conduzi até uma mesinha no parque. Nós nos sentamos e eu lhe entreguei a comida. Ela comeu depressa. Entretanto, o narcótico demorou a surtir efeito. Ela perguntou:

- Obrigada! A propósito, eu não sei a quem agradecer... Qual é seu nome?

Eu me surpreendi com seu linguajar. Respondi e em seguida perguntei:

- Meu nome é Victor, Victor Salazar Sanderson... Onde você aprendeu a falar assim tão bem?

Ela sorriu novamente. Respondeu minha pergunta, após me agradecer:

- Bem, obrigado Victor! Eu estou me esforçando pára freqüentar a escola... Eu vou todos os dias para assistir as aulas e ler algum livro interessante na biblioteca... Eu quero ser uma médica um dia! Salvar vidas, não deve haver sensação mais gratificante...

Era para o sonífero começar a fazer efeito. Entretanto, Rose tinha uma resistência maior a medicamentos, demorou até que aquele se começa a agir. Tentei ganhar tempo:

- Então, estou diante duma futura companheira de profissão? Como devo chamá-la doutora Rose de...?

Ela apenas disse sorrindo:

- Eu não tenho um sobrenome... Era muito pequena pra lembrar quando fui abandonada... Deveria ter uns três anos... No entanto, agradeço todos os dias da minha vida por estar viva! Por poder aproveitar as coisas simples dela... Porque por pior que tudo esteja, eu sei que eu posso mudar isso...

Nesse momento, senti uma agulhada de culpa no peito. Estrangulei esse sentimento ruim e voltei a me focar no que era importante. Salvar a vida de sete pessoas que estavam muito mais aptas para a vida. Além disso, os pagamentos haviam sido feitos adiantados e se o remédio agisse e eu não se leva o corpo, a policia podia encontrar seu corpo e ela contaria sobre mim. Não podia correr esse risco. Minha cabeça estava muito confusa, pensava em vários motivos para deixar a garota viver e um tanto igual de outros, no mínimo equivalentes, para matá-la. Conversamos a respeito de um futuro ao qual, eu sabia, ela não teria chances de alcançar. A sensação era esmagadora.

Após trinta minutos, o sonífero fez com que a garota adormecesse. Peguei-a no colo e a levei parra o carro, tal qual um pai faria para uma filha que pegou no sono após uma noite inteira acordada. A coloquei gentilmente nos bancos de trás. Qualquer um pensaria que a garota estava apenas dormindo. Peguei trânsito durante a volta para casa e me atrasei. Demorei uma hora e meia para chegar em casa.

Estacionei o carro na garagem, abri a porta de entrada e peguei Rose no colo e a levei para dentro, em direção ao sótão. Depositei a garota na mesa improvisada e amarrei suas pernas e braços, e a prendi a superfície de tábua através de um velho cinto de couro. Olhei mais uma vez para sua face, que parecia tomada por uma intensa serenidade.

A primeira coisa que extrai foi um dos rins, mas como já mencionei, Rose era resistente ao medicamento, e ainda estava na metade do procedimento quando ela despertou gritando de dor. Eu nada podia fazer além de terminar seu sofrimento o mais rápido possível. A garota me indagava em meio a gritos de dor, choro, soluços e tentavas de se soltar o motivo daquilo tudo. Ela perguntava o que tinha feito de mal para mim, e chegava a pedir desculpas. Pedia pelo amor de Deus, para eu poupar a vida dela e dizia que eu não precisava fazer aquilo, dizia que eu era uma pessoa boa, um médico que salvava vidas. Lágrimas quentes corriam pelos meus olhos. Repeti para mim mesmo, “É apenas um negócio, como outro qualquer. Sete vidas por uma, dinheiro por ajudar alguém, sem sentimentalismo.”

Executei a operação de remoção de rim. Depositei-o naquela caixa de isopor, que usei diversas e diversas vezes, e fui terminar com o sofrimento da garota que foi capaz de tocar meu coração com sua doçura e determinação. Peguei um bisturi e abri seu peito. Utilizei as pinças para abrir espaço e depois, com uma tesoura cortei as artérias e aortas, utilizei novamente a pinça cirúrgica e prendi com firmeza no órgão pulsante. Logo tudo estaria acabado. Puxei com força e seu sangue espirrou para todos os lados. Em seguida, depositei o órgão al lado do rim, na caixa de papelão.

Prossegui silencioso a operação, e removi o outro rim, o fígado, os pulmões, e todos os outros órgãos. Arranquei seus olhos outrora tão vivos e brilhantes, da cavidade das órbitas, deformando o rosto daquela jovem de forma assustadora. Senti outra agulhada de remorso. Meu estômago dava diversas voltas em meu estômago. Eu ainda podia ouvir as palavras daquela garota em meus ouvidos. Sua voz não saia da minha cabeça, entrei em desespero. Peguei o bisturi e cortei-lhe a face, uma, duas, quatro, oito, diversas vezes. Eu não queria ver aquilo. Queria que isso tudo terminasse.

Corri para o banheiro e vomitei. Vomitei três ou quatro vezes. Meu estômago estava vazio, mas a contração continuava, como se meu estômago fosse sair pela boca. Tomei outro banho demorado, tal e qual a primeira vez que fiz isso. Senti essa necessidade de me limpar apenas duas vezes. Ouvi o meu celular tocando, mas ignorei. Sabia que era o carniceiro, indagando pelos órgãos e pelo corpo. Calculo que fiquei mais de cinco horas tomando banho. Ao sair do banho, senti repulsa de mim mesmo. Odiava aquele rosto, de todo meu coração. Peguei o bisturi e fiz dois cortes limpos que iam da linha da abertura da boca até a metade da bochecha. Precisava mudar. Conservo essas cicatrizes, e devo dizer, não me arrependo de tê-las feito.

Peguei o cadáver e olhei para aquele rosto mais uma vez. Embrulhei o corpo em um lençol e levei te o porta mala forrado de sacos de lixo. Peguei a caixa e fui até o hospital. Meu cúmplice esperava preparado. Rapidamente, ele pegou o cadáver de Rose e o levou até o necrotério. Eu não o acompanhei. Voltei para o carro e dirigi até em casa.

Notas Finais

Desde esse dia, não consigo dormir, não consigo comer, não consigo parar de pensar nela e em tudo isso, um segundo se quer. Estou enlouquecendo, não agüento mais. Eu gostaria de pedir desculpa, queria que fosse um sonho, queria que acabasse. A voz dela não sai da minha cabeça. Isso precisa parar. Eu sou ela gritando, ouço seu choro, ouço as indagações gentis. Lembro-me da sua face, que ficou marcada em minha memória e me lembro do que fiz com aquele belo rosto. Não suporto a idéia de ter feito o que eu fiz. Suas palavras a respeito de suas ambições e o fato deu não ter dado a oportunidade dela realizá-las é insuportável. Não posso mas agüentar, todos aqueles rostos de noite, rostos que eu nem sei se existiram, e o pior, eu sei que há rostos que ficaram esquecidos. Eu quero morrer. Eu quero acabar com tudo. Agora mesmo, já bebi todo o vidro de remédio, espero que o beijo frio da morte venha tocar meus lábios e me liberte desse sofrimento interminável...

(Julio Cesar Rodrigues Mantovani Filho)