A DAMA

Ele corre apressado, puxando com vontade o ar que teimava em não querer preencher os seus pulmões. Sua pressa tem razão de ser. Vez ou outra olha para trás, mas não ousa parar. Instantes antes, ele saltara sobre um precipício, uma fenda que surgira de repente à sua frente, e que a julgar pela visão, não exibia fim. Agarrara-se às raízes grossas das árvores ressequidas da outra extremidade, suplicara por um vestígio de energia para evitar a queda.

Sentia-se perseguido e acuado, e não haveria como lutar, não esta guerra, pois não teria como vencê-la. Como subjugar um adversário que ignora o tempo? Que despreza as eras? Sua algoz era implacável e certa, fria e sutil, poderia agir de forma longa e duradoura, extraindo o viço e torturando aos poucos, mas também saberia ser rápida e súbita, prática e definitiva quando queria.

Como era frio aquele lugar. Um manto escuro e esvoaçante se mesclava ao negrume da noite, a dama envolta por ele sorri mediante o desespero daquele que persegue. Do alto de sua montaria, ela espreita o ser indefeso e caído. Ela sabe que ninguém foge de seu toque, ninguém escapa de seus dedos longos e magros, era questão de tempo.

Tentar gritar era inútil, pois nenhum som escapava da garganta do caçado. Ele tentava pedir ajuda, tudo em vão, não lhe restava nada além de vislumbrar as órbitas vazias do rosto pálido e calcificado da dama.

Ela mais uma vez lhe sorri. Um sorriso debochado e cínico. Ele ainda consegue perceber o arco descrito no ar pela meia lua metalizada, incrustada no alto do cabo de madeira enegrecida, empunhado pela palma óssea da dama. Só teve tempo de rolar para o lado e mergulhar na queda sem fim, enquanto a lâmina se chocava contra o solo, onde antes ele estivera.

No espaço aberto, nada era proporcionado a ele, além de uma agonia tamanha, a qual nem um terrível pesadelo seria capaz de proporcionar. Ele nada enxergava, pois a escuridão era absoluta, a imensidão sem comparação, apenas um sentimento lhe dominava, ordenando que ao menos tentasse, lutasse, não desistisse. Sentiu uma muralha ser erguida, pois lentamente suas pálpebras venceram a inércia e um leve feixe de luz tomou-lhe de súbito, aos poucos paredes alvas foram reveladas ao seu redor, dispositivos que emitiam luzes e bipes ladeavam o seu leito, fios e tubos se acoplavam ao seu corpo.

Já não havia mais escuridão, ao invés do rosto pálido que lhe atormentava, recebeu o sorriso de boas vindas de uma moça vestida de branco, esta exibia uma face jovial e gentil, corada pela ação do sol da manhã, parecia feliz em vê-lo. Ele demorou a encaixar o raciocínio, mas aos poucos percebeu que, pelo menos por hora, havia conseguido se desvencilhar do abraço gélido da dama da foice.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 05/02/2009
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T1423619
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