A CHANCE

Ele caía lentamente, a sensação era de como se flutuasse. Suas pernas o puxavam para baixo, conseguia enxergar uma luz, que se distanciava cada vez mais, até desaparecer. Ele não entendia porque a dor não desaparecia, não compreendia o motivo de sentir seu peito apertado e a angústia não diminuir. Queria respirar, mas o ar não vinha.

Antes de perder a consciência, percebeu que se encontrava deitado na margem de um rio, este apresentava um curso de águas escuras, de onde se espalhava uma densa fumaça por toda a sua extensão, embora já não sentisse suas pernas pesando, não conseguia movê-las, assim como os seus braços. Quem examinasse o seu rosto, poderia notar sulcos, que seriam incompatíveis com a idade que deveria ter. As profundas olheiras que exibia davam a entender que o sono seria algo raro em sua rotina.

O rapaz lutava para se manter acordado, ou já estaria dormindo e tudo não passava de um sonho? Ele não sabia, e na verdade, pouco importava. Ele não ligava para mais nada, seus olhos avermelhados estudavam o ambiente, e nada do que ele via fazia sentido, não reconhecia nenhuma parte, nenhum detalhe lhe era familiar. Estranhou o fato de uma figura estar parada de costas para ele, completamente indiferente à sua presença. Mas como? Segundos atrás não estava ali.

A figura era alta e extremamente magra, permanecia imóvel, parecia fitar algo ou alguém diante dela, mas o rapaz não conseguia distinguir o que seria, pois não conseguia mover a cabeça. O campo de visão que seus olhos alcançavam permitia apenas que notasse o manto escuro e impecavelmente liso do estranho, o qual balançava como se estivesse exposto ao vento forte do litoral, mas ali, naquele lugar, nem ao menos uma leve brisa soprava.

A estranha figura ostentava um capuz, que lhe ocultava totalmente o rosto. Segurava uma espécie de cajado, cuja extremidade inferior era ornada por uma ponta de metal triangular. Continuava impávida, diante do pequeno ser que a desafiava, toda a sua atenção era dedicada a ela.

- Você não tem direitos sobre ele – esbravejou o pequeno ser, que exibia o tom dourado como padrão, sendo difícil definir se tal tonalidade provinha de suas vestes, ou da própria pele.

- Você é quem não tem direito de clamar por ele, pois as condições são conhecidas por todos, e, a bem da verdade, nem aqui você tem direito de estar, pois as águas que correm, não são compreendidas por seu território.

- Disso bem sei, Hospedeiro, mas ninguém pode me impedir de quebrar uma regra, se eu achar que vale a pena.

- Valer a pena? Vocês, Pescadores, acham que tudo se resume a valer a pena? Não seja ridículo, eu nunca abro mão de quem vem a mim de bom grado, e ele – apontava para o rapaz caído – veio assim, portanto se retire dos meus domínios, pois não há nada para suas redes aqui.

O ser dourado emitia faíscas dos olhos, sua raiva era evidente, mas sabia que nada poderia fazer se o homem de vestes escuras e voz gutural não deixasse. Essas eram as regras do jogo, e o rapaz estava prestes a perder.

- Tudo bem, Hospedeiro, tudo bem. Mas você sabe que precisa ter certeza de que é isso o que ele quer antes de preparar suas acomodações, não é mesmo?

- O desejo dele está mais do que claro, Pescador, não me venha com maquinações, meu mundo já está cheio delas.

- Então lhe faço uma proposta.

- Não permito barganha.

- Ouça primeiro. Eu abro a minha rede para os próximos cem voluntários, deixo o caminho livre para sua hospedagem, se eu não conseguir reverter a situação em três passos.

- Não seja tolo. Você já tentou diversas vezes evitar que ele chegasse a esse ponto e não adiantou, você sabe disso. Esqueça, Pescador, já é tarde demais.

- Não, não é. Aceite a minha proposta, você não tem nada a perder, pense bem, serão cem novos hóspedes para você, caso eu falhe. Cem novas oportunidades, sem a minha interferência, ou a dos meus.

A figura de rosto oculto fez um grande esforço para não demonstrar sua euforia. Ele tinha a certeza de que faria um excelente negócio, era improvável retornar do ponto em que o rapaz chegara, e ainda ganharia passe livre nas próximas cem jornadas.

- Está feito, pequeno. Temos um acordo. Você terá três atos para conseguir o impossível, nem que tivesse um milhão conseguiria.

- Combinado.

O ser dourado caminhou na direção do rapaz caído, este já estava totalmente inconsciente a essa altura, uma trilha brilhante acompanhava o ser durante o seu percurso. A figura de negro apenas observava. O Pescador se posicionou lateralmente ao corpo caído, entrelaçou os dedos e fechou os punhos, ergueu os braços acima de sua cabeça e em seguida golpeou o peito do rapaz.

- Não desista ainda, nada é definitivo, além de sua escolha.

Nenhuma reação fora obtida. A figura envolta no manto esfregava a palma das mãos. Um novo golpe fora emitido contra o tórax do ser em disputa.

-Reaja! Vamos! Lute por favor!

Nada. O Hospedeiro já não conseguia conter as risadas. Já sendo dominado pelo desespero, o ser brilhante se ajoelhou e apertou forte as mãos, lágrimas douradas escorriam de seu rosto, flexionou o corpo para trás e antes de golpear novamente, falou de forma pausada.

- Você...precisa...acordar. Você...deve....ter...uma...nova...

Golpeou com toda a força que possuía, e o rapaz soltou um leve suspiro...

...chance – ele teve a impressão de ter ouvido essa palavra. Abriu os olhos lentamente enquanto tossia e expelia água pela boca, seus olhos confusos vislumbraram três rostos estranhos diante deles.

Aos poucos, o rapaz começou a entender a situação. Ele lembrara que estava desesperançado com a vida, que subira naquela ponte com um intuito definido, amarrara a ponta de uma corda em ambas as pernas, e a outra em um haltere de peso considerável, que retirara do porta malas do automóvel estacionado no acostamento. Posicionara-se no beiral da ponte, e sem dar tempo para a dúvida, se atirara junto da peça rumo às águas, que lhe esperavam logo abaixo.

O que ele desconhecia, até então, era o fato de que num pequeno barco pesqueiro que passava pelas imediações, seus ocupantes puderam notar toda a movimentação, e que um dos homens se jogara nas águas com uma faca em punho, a qual fora usada para cortar a corda que o aprisionava. Apesar de todo o esforço empregado pelo homem, a certeza de sucesso no resgate não era total, visto que o tempo que decorrera fora mais do que suficiente para que o rapaz tivesse êxito em sua empreitada contra si mesmo. Ele fora levado ao barco e quando eles já não mais demonstravam esperança de salvar sua vida com técnicas para reanimá-lo, de súbito, seus olhos se abriram e um sopro de vida pôde ser notado.

Naquele entardecer, cercado pelas águas, no seu retorno à vida, o suicida ouvira de um dos homens que o retiraram do fundo do mar, palavras que ele teve a impressão de já ter ouvido antes, em um lugar diferente, por outra pessoa...

- ... chance, você teve outra chance, rapaz!

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 05/02/2009
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T1423640
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