UMA MÚSICA DIFERENTE

Ele já havia perdido a conta de quantas vezes aquele maldito pesadelo o acometera no meio da noite, acordando-o de súbito, encharcado de suor e trêmulo como se estivesse frente a frente com um carrasco. Ao menos sabia quando tudo começara, ele jamais esqueceria daquela noite.

Sozinho em seu apartamento, ele fazia o que mais gostava: arrancava acordes distorcidos de sua guitarra. Para ele, esse era o melhor momento do dia, ou no caso, da noite. Ele não se importava do quanto reclamassem devido ao incômodo barulho produzido naquele horário.

Dentre os reclamantes, havia um em especial: um senhor de idade avançada, seu vizinho de frente. Ele não ligava a mínima para o rabugento. As lamentações daquele velho eram os indícios de que sua estada nesse mundo já estava mais do que expirada. Mas naquela noite, naquela fatídica noite, as coisas saíram um pouco de controle, ou melhor, saíram totalmente.

- Eu já pedi mais de um milhão de vezes! Eu não agüento mais! - O idoso batia insistentemente na porta do rapaz, se fosse mais jovem, talvez conseguisse colocá-la a baixo, tamanha a força empregada na empreitada.

O guitarrista estava particularmente irritado e impaciente na ocasião. Talvez fosse pelo somatório das bebidas e drogas que consumira. Em seu insano pensamento, estava em um momento especial, e aquele velho insuportável insistia em importunar-lhe, mas ele não deixaria barato dessa vez, não mesmo.

- Maldito! Maldito! – Gritava para si mesmo, enquanto seguia ao encontro do homem que lhe incomodava, o ódio estava estampado em seus olhos, e em sua cabeça um propósito estava definido. Girou a maçaneta e puxou a porta com violência, não esperou que o velho dissesse mais uma só palavra, desferiu-lhe um soco no rosto e arrastou-o para dentro quando este fora ao chão. O velho estava desnorteado, mas sua tontura fora insuficiente para privar-lhe de ter a noção da situação.

Percebeu que se encontrava amarrado pelos braços a uma poltrona velha de couro sintético. Conseguia mover apenas as mãos, algo lhe espremia a cabeça, não conseguia ouvir nada, parecia que um revestimento de espuma lhe tapava as orelhas. O rapaz arruaceiro estava diante dele, porém a meia luz daquela saleta não permitia que ele definisse ao certo o que este fazia, apenas suspeitava que ele mexia em algo parecido com cabos ou fios. Pelo menos aquela música do inferno havia cessado, assim pensou.

No entanto, um ruído agudo e profundamente irritante começou a invadir seus ouvidos. Um som discreto no início, mas que aumentava gradativamente. O desespero acometeu o velho, era a maldita canção novamente, e agora ressoava de forma que parecia estar conectada diretamente a seu cérebro. Na sua frente, o jovem gargalhava de maneira insana, com a guitarra nos braços, dedilhando as cordas como se o mundo dependesse disso para existir.

O velho gritava e chorava, o sangue oriundo de seus ouvidos escorria por toda a extensão de seu pescoço e ombros. Sem pena alguma, o rapaz chutou seu tórax derrubando a poltrona no chão, com a sola grossa de sua bota, pressionava o pescoço do homem com toda a força de sua perna direita, enquanto aumentava o volume do amplificador que conduzia o som, o qual estourara seus tímpanos.

Quem olhasse a cena não conseguiria entender a razão pela qual o idoso balançava as mãos, os movimentos eram limitados afinal de contas...

O guitarrista, totalmente tomado por uma raiva que não se justificaria em qualquer ser humano, cruzou o olhar com o homem caído, rangeu os dentes e executou uma nota que parecia ter saído das profundezas da Terra, a nota foi mantida até que a corda arrebentasse, num estampido seco, alto e estranho.

Ele não se lembraria de mais nada daquele momento em diante. Apenas tinha essa lembrança, sempre que acordava do pesadelo recorrente. Levantou da cama e abriu a porta do banheiro, o que viu o deixou completamente apavorado e confuso. Estava novamente em seu pesadelo, ele não sabia que o estampido que ouvira se referia ao disparo do revólver que o velho trazia na cintura, o qual lutara bravamente para apanhar enquanto era torturado. O projétil acertara-lhe a cabeça, e agora estava morto, e sua sina nesta nova condição era esta que ele via, ficar preso em um eterno pesadelo.

- Não se acanhe meu rapaz - falava um ser de pele grossa, escamosa e avermelhada, cujos chifres retorcidos lhe davam uma aparência grotesca – tome seu lugar.

O ser estava sentado diante de um órgão, cujos teclados eram feitos de ossos humanos, ao seu redor estavam seres de aparência semelhante, cada qual com um instrumento musical bizarro.

Ao estalar de dedos do ser que falava, a guitarra fundiu-se ao corpo do rapaz, e independentemente de sua vontade, seus dedos começaram a pressionar as cordas, e a cada nota, o rapaz sentia a dor de mil lanças perfurando-lhe a carne, seu sangue escorria enquanto a banda tocava. Agora, ele teria toda a eternidade para se expressar, teria toda a eternidade para sentir sua alma queimar.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 07/02/2009
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T1425971
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