A ACUSAÇÃO

O estrago feito no último ciclo fora imenso, e ainda doía no coração daquele vilarejo. E a dor estava prestes a se tornar maior, pelo menos para aquela mãe, a qual tentava impedir que o seu filho caçula se tornasse vítima da ação destemperada, movida pela superstição e aparente falta de informação do povo local.

Sua casa estava cercada por dezenas de pessoas armadas com foices, ancinhos, facões e alguns até com tochas, eles exigiam que a mulher entregasse o adolescente, pois segundo diziam, ele seria o responsável pela onda de carnificina que assolava a região. A teoria do povo seria de que o garoto em questão, sétimo filho da mulher, sofreria com uma maldição, e em noites como essa que se aproximava, quando a lua se exibia plena no céu, ele se tornaria uma fera primitiva, cujos instintos básicos a moveriam em busca de sangue e morte.

Obviamente a mulher protestava de todas as formas, negando todas as acusações, fazendo juras de que o rapaz permanecera ao seu lado na ocasião das mortes, e que portanto, seria impossível que ele fosse o responsável por tais atrocidades, a mãe dizia ainda que seu menino fora batizado pelo irmão mais velho, como rezava a tradição para essas situações, mas as pessoas que o ameaçavam não estavam levando o fato em consideração, para elas, um culpado deveria aparecer, e era mais do que certo que o rapaz, o único dos filhos que ainda permanecia na vila, pois todos os outros há muito haviam partido para a cidade grande, seria o culpado e que os apelos da mulher, desprovida de marido, e que tinha no garoto sua única companhia, não adiantariam.

- Pelo amor de Deus! Nos deixem em paz! – suplicava a desesperada mãe.

- Se não abrir esta porta, vamos colocá-la a baixo – ameaçava um dos revoltosos.

A mulher chorava e gritava, fazia preces aos céus, enquanto agarrava o filho, desejando que seus braços tivessem a força de mil grilhões, para que as pessoas enlouquecidas não fossem capaz de levá-lo. Não foram suficientes, fora arrastado dali tão logo a porta de madeira foi ao chão, diferentemente da mulher, o menino não derramava uma só lágrima, e apenas esticou os braços na direção da mãe no momento em que deixava a proteção de sua casa, nos braços dos vizinhos.

O mastro que ficava no centro do vilarejo, fora o local escolhido pela turba para comprovar a teoria da maldição. Amarraram o adolescente no que um dia foi o local onde os escravos desobedientes eram castigados em público ,e por obra do destino, a área estava plenamente iluminada pelo luar, fazendo a luz dos lampiões meros coadjuvantes na noite.

Um círculo se formou ao redor do mastro, praticamente todas as pessoas da vila estavam ali, todas queriam presenciar a transformação do rapaz. A mãe se agarrava nas pernas do filho. As horas foram passando sem que nenhum sinal estranho fosse notado, nenhum indício de que uma fera pudesse surgir, alguns se preparavam para voltar para suas casas quando um uivo terrivelmente perturbador fora ouvido, todos se viraram para o garoto amarrado, mas não era dele que provinha aquele ruído pavoroso, era da mata.

Não tiveram tempo de correr, uma gigantesca besta coberta de pêlos negros, espessos e espetados, cujas presas imensas e brancas se destacavam naquela luminosidade, os olhos eram grandes, apresentavam uma coloração âmbar, e intimidavam a todos que ousavam encará-los.

Não havia palavras para determinar o horror espalhado, a fera destroçava todos aqueles que estavam a seu alcance, seus dentes rasgavam a carne e trituravam os ossos, o líquido escarlate manchava seus pêlos e transformava o chão em uma lama, mesclada de terra e sangue. Após alguns minutos, que para o povo da vila pareceram uma eternidade, a matança cessou. Poucos sobraram e correram da melhor forma possível. A fera se alimentou, uivou para sua musa e se fartou, colocou-se em quatro patas e farejou o ar.

Seus olhos avistaram uma cena curiosa e até então inédita para ela. De forma geral, todos que se colocavam em seu caminho, ou morriam ou corriam, mas ali, diante dela, estavam uma mulher e um rapaz, ela o abraçava pelas pernas. A fera caminhou em direção a eles, a mulher tremia dos pés à cabeça, fazia uma prece, o garoto não esboçava reação, a besta aproximou a cabeça da dupla e inspirou fundo o ar que os rodeava, expirando em seguida um vapor quente, mesclado com um hálito fétido e gotas de sangue que se grudaram na pele do rosto da mulher. Seu pavor era total, e quando achava que a morte a alcançaria, a fera se virou, uivou novamente para o céu e correu.

A pobre mãe continuou a chorar, mas desta vez de alívio, agradecendo pelo fato de ter sido poupada, e de estar com seu filho. Mas ela não sabia que a misericórdia da fera teria uma explicação, uma linha tênue que ligava os três, talvez o instinto primitivo da besta tenha reconhecido neles o seu próprio sangue, pois aquela fera, na verdade, viera do seu próprio útero, sem que ela soubesse, o filho que agora abraçava, era irmão gêmeo da besta hedionda, o garoto no qual a maldição caiu, nasceu minutos antes desse que estava amarrado no mastro, e portanto seria o sétimo filho, e pagão, ele fora tirado dos braços da mãe e levado por um grupo de nômades. Para a mãe, foi dada uma explicação, a parteira, que usou o garoto como moeda de troca, apenas disse que este quando nasceu, já estava morto, e que ela mesma providenciaria o enterro, para poupar-lhe da dor. A época, os costumes, e as condições ajudaram na trama, e naquela noite, a mulher que roubou a criança, estava entre os que sucumbiram em sua boca. A fera havia voltado.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 10/02/2009
Reeditado em 28/10/2009
Código do texto: T1431588
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