O ESTRANHO BRILHO DO OBJETO

Como tantos outros nesse país, ele também estava mergulhado em dívidas. Já havia feito empréstimos junto a diferentes instituições financeiras e bancárias, todos para pagar outros empréstimos adquiridos anteriormente. De fato, não haveria mais o que fazer, a indenização do emprego do qual fora destituído, também se perdera, bem como a auxílio, o qual retirara a última parcela há tempos. As contas não paravam de chegar, brotavam por baixo da porta, como ervas daninhas que crescem e consomem uma plantação inteira. Pelo menos ainda existia uma porta, assim pensava, uma porta que resguardava um lar, o seu lar, embora não soubesse por quanto tempo mais teria um, afinal, como todos os outros compromissos, o aluguel também estava pendente, e o despejo era iminente.

Naquela noite em particular, caminhava pelas areias da praia, sem um pensamento fixo, apenas andava, sem um destino certo. Chegou até uma barreira de pedras, as quais se amontoavam umas sobre as outras, onde ondas fortes se chocavam, espalhando uma espuma branca sobre os rochedos que se estendiam até o mar. Subiu até a parte mais alta e de lá ficou olhando o conflito entre as águas e as pedras, o ritmo cadenciado do som produzido deixava-o quase que hipnotizado, não havia mais ninguém por perto, somente ele, o mar, o rochedo e o céu de uma noite escura.

Talvez esse fato, a escuridão, tenha proporcionado que um ponto metálico se destacasse numa das inúmeras fendas produzidas pelo encontro das rocha, de início achou que poderia ser um pequeno peixe, que ficara preso naquela pequenina poça, mas não, definitivamente não era nada disso. Decidiu caminhar por sobre as pedras na direção do ponto cintilante, tomou todo o cuidado possível para não escorregar na superfície repleta de limo.

Ao chegar no local de onde provinha o brilho, esticou a mão por entre a fenda a fim de agarrar o objeto, ou seja lá o que fosse. A princípio, o objeto teimava em não sair, estava preso nas paredes das pedras, parecia até que alguém o agarrava, e esse impasse começou a deixá-lo mais irritado do que o de costume, e já estava quase perdendo a paciência quando fora surpreendido por uma onda que se chocou contra as suas costas. O choque das águas geladas o jogou de encontro às placas duras e afiadas das pedras, o resultado produzido fora um corte no queixo e os dois joelhos esfolados, no entanto, o objeto misteriosamente se soltara, e uma vez de posse do mesmo, decidira abandonar o local rapidamente.

Mal abandonou o rochedo e chegou às areias, resolveu analisar o objeto que despertava tamanha curiosidade e aflição, ele sentia algo diferente, um misto de inquietação e receio. A pouca luminosidade não o impedira de chegar a conclusão de que se tratava de um objeto antigo, bastante antigo, e se parecia com uma câmera, uma câmera fotográfica. Mas, o mais surpreendente ainda estava por vir, ele puxou uma portinhola, de onde provinha o brilho metálico, e uma placa se mostrou, uma placa fina, luminosa, onde caracteres indecifráveis circulavam. Como poderia uma coisa tão velha possuir uma tecnologia aparentemente tão avançada?

Ele não tinha respostas para essa pergunta, mas de uma coisa tinha certeza, aquele não era o local mais apropriado para manusear um objeto que sugeria tanto valor. Colocou-o sob a camisa molhada e tratou de correr de volta para casa. Durante a sua corrida pelo terreno arenoso, pensou ainda, como a câmera poderia estar funcionando se estava imersa na água salgada? Ele precisava descobrir.

Já em sua “ainda” casa, o objeto causava mais surpresa e fascinação, pois ganhava a cada minuto mais e mais aspectos modernos. A placa luminosa não mais emitia sinais sem sentido, agora ela começava a formar palavras, no começo sem lógica, mas que pouco a pouco produziu uma mensagem clara e direta para a pessoa que a manuseava:

- Você quer mudar de vida? – Em seguida surgiram duas teclas na tela, onde ele deveria escolher: sim ou não. Rapidamente ele tratou de tocar com a ponta do dedo indicador a opção “sim”. Em seguida a câmera continuou com as instruções:

- Então é muito simples, basta você apontar para o que você deseja e clicar o botão para gravar a imagem. Logo, o que você escolheu será seu. No entanto, você deve tomar alguns cuidados, não fotografe pessoas ou qualquer outro ser vivo, você não pode possuir algo que tenha vida, apenas coisas inanimadas serão dadas a você. E o mais importante, nunca mencione sobre a câmera para ninguém e nunca permita que você mesmo seja fotografado por ela. De acordo?

Novamente surgiram as opções, sim ou não, e ainda que descrente sobre o que acabara de ler, ele apertou “sim”, e o máquina lhe escreveu:

- Aproveite!

Ele ficou pensando durante todo o resto da noite, e já com o dia claro resolveu sair e verificar até onde iria aquela loucura. Caminhou pela calçada e visualizou no outro lado da rua uma lanchonete, na sua atual situação não possuía dinheiro nem para se alimentar, e com isso, teria uma oportunidade perfeita para teste. De onde estava, retirou o objeto do bolso da parte interna da jaqueta, a essa altura este já se parecia com uma câmera digital de última geração. Surpreendeu-se com a capacidade da máquina, a resolução era indescritível e com um simples toque na tela, conseguiu focalizar com riqueza de detalhes o sanduíche natural que se encontrava no balcão de vidro da lanchonete, apesar da distância imensa.

Suspirou e apertou o botão para capturar a imagem, e para sua surpresa, instantes depois, o pão estava em sua mão. Um sorriso brotou de seus lábios com tamanha felicidade, ele só não pôde perceber que os demais sanduíches do balcão foram tomados pelos bolores da decomposição no mesmo instante.

Após saciar sua fome, decidiu experimentar novas possibilidades, não foi difícil encontrar um carro forte que fazia a retirada de valores em caixas automáticos de um banco vinte e quatro horas, posicionou novamente sua câmera no malote de dinheiro, clicou e em instantes o pacote surgiu em suas mãos, simultaneamente, um veículo parou próximo ao do transporte de valores e dois homens saltaram e começaram a disparar contra os guardas, o que estava com o malote que desapareceu foi alvejado por dois projéteis e caiu. Os bandidos recolheram os outros malotes e saíram em disparada no veículo que deixou as marcas de pneus no asfalto.

O rapaz da câmera colocou-se a correr das proximidades, estava confuso e desesperado, entrou em casa ofegante e suando frio, olhou para o visor e leu:

- Tudo tem um preço. Está disposto a pagar?

E novamente as opções, sim ou não. Ele teve um momento de inquietação e dúvida, nunca fora uma pessoa sem escrúpulos, mas como poderia rejeitar uma propostas dessa? Talvez se estivesse numa situação melhor. Não estava. E provavelmente estaria acabado sem ela. Mas, e as outras pessoas? Elas não poderiam pagar pelos problemas dele, ou poderiam? Sim, afinal quem se importava com ele? Seus antigos empregadores que o demitiram? O governo que não cria oportunidades? Os banqueiros que exploram seu desespero? O dono da casa onde mora, que quer colocá-lo na rua? As pessoas que lhe viram o rosto? Não, olhou para os maços de dinheiro, ele também não se importaria com ninguém, ele agora tinha uma boa escolha e não a desperdiçaria.

No dia seguinte, já havia quitado todas as suas dívidas com o dinheiro obtido, também já estava bem alimentado e ostentava roupas novas e finas, mas não se daria por satisfeito, precisaria de mais, pois ele merecia tudo do melhor, ele mais do que ninguém merecia um bom lugar ao sol, assim pensou. Deslocou-se ao melhor bairro da cidade e pôs-se a procurar pela casa mais luxuosa dentre todas, logo viu-se diante de uma mansão que não ficava devendo nada no que se referia a riqueza e ostentação.

- É aqui que eu vou morar – falou para si mesmo. Em seguida posicionou seu precioso objeto na direção da residência e mais uma vez apertou o botão. Num piscar de olhos estava dentro da casa, sobre uma mesa estava a escritura da propriedade, em seu nome. Enquanto vibrava de felicidade, ainda pôde ver toda a família, e mais os funcionários da casa, serem tragados pelo solo, com os braços erguidos, em um típico gesto de quem suplica por ajuda, não esboçou reação, não sentiu nenhum remorso ou coisa do tipo, estava ficando cada vez mais frio.

- Uma pessoa refinada como eu precisa de um bom carro – justificava para si, já antevendo o próximo ato. Percorreu seu novo bairro, pois ali mesmo encontraria o que procurava. Não tardou a deparar-se com o mais atraente veículo da vizinhança, neste se encontrava um homem de idade avançada ao volante. Então, mais uma vez preparou o seu ritual, o carro desejado ficou sem controle e se chocou violentamente contra uma árvore, ficou completamente destruído, e o motorista não ficou em melhor estado. Instantaneamente um veículo igual estava ao seu lado, no porta luvas toda a documentação em seu nome. Ele pouco ligou para as pessoas que gritavam e choravam perto dali, mediante tão terrível acidente, afinal, agora ele estava começando a ter a vida que sempre mereceu. A única coisa que o incomodou um pouco, foi o fato de sua imagem refletida no retrovisor do carro, começar a lhe causar desconforto, na verdade já não conseguia encarar o seu próprio rosto.

Conforme o tempo foi passando, mais e mais objetos, coisas e bens conseguia para si próprio, sempre usando a câmera para roubar-lhes a imagem e sempre a custa do sangue e sofrimento alheios. Certo dia, estava pensando sobre a sua situação, pois embora já possuísse tudo o que o dinheiro pudesse comprar, se sentia só, apesar de toda a riqueza, ninguém se aproximava dele. Estava muito tentado a roubar a imagem de alguém e assim ser dono de uma bela moça, quem sabe? Não, ele sentia muito medo também, afinal a placa luminosa do objeto fora bem clara com ele, era proibido fotografar pessoas, e ele não tinha motivos para duvidar de tal advertência. E agora, o que ele poderia fazer?

Foi quando teve uma idéia, revirou entre as várias revistas que estavam depositadas no compartimento lateral da confortável poltrona onde estava sentado, achou uma de moda e começou a folheá-la, deparou-se com uma modelo cuja beleza lhe chamara a atenção, sua idéia consistia em roubar-lhe a imagem através da fotografia impressa na revista, com isso, de acordo com seu pensamento, não estaria quebrando a regra do objeto mágico e com um pouco de sorte, teria domínio real sobre a moça. Feito o ritual, esperou mais tempo do que o de hábito, mas ainda assim, surgiu diante dele a mesma mulher que estava estampada nas páginas da revista.

- Onde estou? – Ela quis saber.

- No melhor lugar que há.

- E quem sou eu? Qual é o meu nome?

- Não importa – ele respondeu – aqui você poderá ser quem você quiser.

O tempo passou sem que nenhum problema surgisse na vida do rapaz, para falar a verdade, tudo estava perfeito, e ele julgava que nada mais poderia dar errado, nem mesmo quando a moça descobriu sua câmera.

- Que máquina é essa, meu senhor? Eu nunca a vi antes.

- Bom, ela tem possibilidades que você nunca sonhou.

- Como assim?

- Venha aqui fora que lhe mostro.

Caminharam pelo quintal até a divisória da residência vizinha, olhou para as inúmeras árvores frutíferas que se exibiam no outro quintal.

- Vê aquele frondoso abacateiro?

- O que tem ele?

- Preste atenção.

Apontou para a árvore com a câmera e apertou o botão, logo após o brilho do flash, um abacateiro rigorosamente igual surgiu próximo de onde estavam, para espanto total da moça. Em seguida todas as demais árvores vizinhas foram ao chão, destruindo o que estava pela frente. Voltaram para a casa, e naquela mesma noite, após o rapaz cair no sono, a moça se apoderou do objeto e começou a examiná-lo, subitamente a placa metálica começou a piscar e uma mensagem surgiu:

- Você já sabe a fonte da riqueza dele. Quer ter a sua própria, também? Sim ou Não.

Ela não hesitou um minuto e apertou “sim”.

- Então siga as instruções, segure firmemente a câmera e tire uma fotografia dele, assim a energia que proporciona riqueza a ele, será compartilhada com você. Sim ou não.

Mais uma vez seu dedo indicador pousou sobre a opção “sim”. Em seguida ergueu a máquina e enquadrou todo o corpo do rapaz no visor, segurou-a firmemente e apertou o botão do disparo. Uma fumaça esbranquiçada e um cheiro forte de enxofre tomou todo o ambiente onde antes estavam a moça e o rapaz, estavam, pois ambos haviam desaparecido, e uma terceira figura havia surgido, era um homem, o qual a pele inicialmente avermelhada, teve a tonalidade lentamente modificada até quase a normalidade, de sua boca uma única palavra surgiu:

- Livre!

O rapaz acordou, mas não estava mais em sua cama, onde adormecera tranqüilamente, estava numa sala enorme, não conseguia determinar onde seria o fim, tudo era metálico e sombrio, uma fina névoa cobria todo o chão, até a altura de seus tornozelos, e o cheiro de enxofre também ali se fazia presente, nada fazia sentido, sua pele tornava-se mais e mais vermelha, como se estivesse cozida, protuberâncias surgiam em sua testa, seu corpo encurvava-se contra a sua vontade.

Na sua frente estava uma imensa tela, onde era possível visualizar o céu de uma noite escura, logo uma série de caracteres começaram a descer pela tela em forma de cascata, eram símbolos desconhecidos para ele, mas que estranhamente ele conseguia ler, a mensagem lhe dizia:

- Você foi aprisionado na cela da caixa que rouba almas, e a sua só será libertada quando, e se, você conseguir outro para substituí-lo. Mas, para isso, deverá seguir a lei: você nunca poderá mentir para a sua vítima, poderá manipulá-la, persuadi-la, iludi-la, levá-la a quebrar as regras, as quais você deve mencionar de forma direta e objetiva, tal qual foi dita a você, caso consiga, estará livre, mas até lá, ficará aqui na caixa e pagará por tudo o que lhe foi dado no lado de fora, mas não se engane, aqui não aceitamos dinheiro, o único pagamento que queremos é o seu sangue, sofrimento e dor durante a sua estadia, a qual desejamos que seja bem longa.

Em seguida, a tela voltou a exibir o céu escuro, e no corpo avermelhado do rapaz começou a surgiu uma série de fungos típicos de alimentos em decomposição, que queimavam imensamente a sua pele, e sentiu também ferroadas e esmagamentos como se fosse um petisco sendo triturado por dentes, na boca de um faminto. E para o seu desespero, esse era só o início.

- Nããããããooooo!!!!!!! – Gritava, mas não teria ajuda.

No lado de fora, um brilho tímido chamou a atenção de uma garota sem esperanças na vida, que caminhava por uma calçada quebrada, ela ajoelhou-se e esticou o braço, fazendo força para puxar o objeto que emitia a luz. De onde estava não podia enxergar que as mãos de um esqueleto enterrado, vestido com as roupas de uma antiga modelo de revistas, seguravam firmemente o motivo de sua cobiça, ela desconhecia que só sairia dali de posse dele, e que daquele momento em diante seria escrava de seus próprios desejos, e para o seu azar, essa seria a melhor das hipóteses.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 10/02/2009
Reeditado em 28/10/2009
Código do texto: T1431868
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