O ANTIQUÁRIO E O PESCADOR
Fazia um mês que o antiquário havia retornado da viagem à França, esta revelara-se muito proveitosa, pois objetos de inestimável importância haviam retornado com ele. Uma peça em especial havia se tornado a sua predileta, dentre todas as aquisições. Tratava-se de uma estatueta de pedra, uma gárgula na verdade, com coisa de um metro e trinta de altura. Era uma figura grotesca, moldada de forma que se apresentava agachada, grandes olhos estampavam o seu rosto, lembravam muito os de um felino, dois chifres enormes e retorcidos saíam de sua testa. A boca, permanentemente aberta, ostentava dentes curtos, afiados e simétricos, uma imensa língua se projetava dela, a água da chuva deveria escorrer por ali. Do tronco, pouco se podia notar, visto que as pernas dobradas e abraçadas pelos braços longos, impediam uma melhor análise. Um par de asas semelhantes as de um morcego, e uma cauda terminando em ponta de seta, davam contornos finais e demoníacos à escultura.
O colecionador colocara seu objeto preferido sobre a marquise da fachada de sua casa, a qual era enfeitada por pedras decorativas, em um estilo gótico, ficando o resultado bastante satisfatório. Naquela noite, há exatos trinta dias desde que fora colocada ali, a estatueta começou a apresentar sinais estranhos, a luz da lua cheia incidia diretamente sobre a bizarra figura, fazendo a pele de pedra começar a rachar e cair.
Cerca de dois minutos se passaram e todo o antigo revestimento da figura havia desaparecido, e em seu lugar surgira uma cobertura de escamas, placas duras e ovaladas, de coloração negra, com leves reflexos azulados, podia-se dizer que era bem próxima a de um lagarto. A gárgula ensaiou um bater de asas tímido, mas que em alguns instantes se provara confiável para que alçasse vôo.
Sobrevoou a região, tinha um objetivo em mente, conseguir o sustento para que seu corpo permanecesse nesse mundo, o nosso mundo, logo avistou o que queria, um casal que apreciava a quietude da noite, no banco de uma praça. Não tiveram tempo de reação, a gárgula agarrou-os, cada um com uma das patas traseiras, elevou-se a uma grande altitude, os gritos do casal não alcançariam socorro, foram largados, o impacto contra o solo deixou-os preparados para o que a criatura queria, imóveis, ela fez uso das garras curvas de suas patas para abrir-lhes o abdome e devorar-lhe os órgãos internos.
A figura alada continuou seu ritual de matança durante toda aquela noite, e antes do sol raiar já estava posicionada na marquise da casa do antiquário, no entanto, a onda de carnificina não pararia ali. Durante todo aquele mês, mortes estranhas e violentas começaram a acontecer na cidade, corpos sem as vísceras eram achados em diferentes pontos, e sem a menor pista para as autoridades.
Os policiais que cuidavam das investigações estavam tão desesperados que chegaram a seguir uma pista, a qual, em uma situação normal, seria inimaginável. Chegou até eles a informação de que um homem, de um bairro distante, fora expulso da comunidade em que vivia pela suspeita de ser, nada mais, nada menos que um lobisomem! Não que a polícia acreditasse na existência de semelhante fera, mas que alguém alucinado o bastante poderia se passar por um e com isso cometer tais atrocidades, seria possível.
Seguiram as informações e chegaram até o local onde o suspeito vivia no momento: um velho barco pesqueiro. Fizeram sinal para o homem que amarrava algumas cordas na embarcação, o homem veio até eles. Tratava-se de um sujeito que deveria estar na faixa dos cinqüenta, cinqüenta e cinco anos, era alto, extremamente magro, seus braços eram desproporcionais em relação ao tronco, exibia costas largas, não trajava uma camisa, o que permitia notar o tronco extremamente peludo, seus cabelos grisalhos cresciam ondulados até os ombros, um chapéu estilo Panamá lhe cobria a cabeça, fumava um cigarro de palha, jogava a fumaça acizentada na frente do rosto, no qual era possível notar a barba por fazer, e as marcantes olheiras, que sugeriam noites mal dormidas. Em resumo, parecia uma personagem saída de um filme de terror. O sujeito olhou para os homens da lei e disse com sua voz grave:
-Em que posso ajudar-lhes, cavalheiros?
-O senhor é o Tião? - Perguntou-lhe um dos policiais.
-As pessoas assim me chamam...Tião, Tião Pescador.
-O senhor sabe do que o acusam?
-Sim.
É culpado?
O homem olhou friamente para os policiais.
-Vivo minha vida sossegado, cavalheiros, e tenho uma regra rígida para isso. Preciso só do suficiente para viver, e para tal, retiro da natureza o meu sustento, e nada além disso. Há algum mal em viver assim?
-Não pescador, não há mal nenhum em retirar da natureza o seu sustento.
-Então cavalheiros, se me dão licença...
Os policias deixaram o velho e seguiram as investigações, estavam até um pouco constrangidos por terem levado em consideração a possibilidade de...imagina!
Naquela noite receberam um envelope lacrado, cujo conteúdo fez com que corressem, entrassem no carro e disparassem na direção do endereço escrito no bilhete, ficava distante umas três horas dali, era um bairro isolado. Chegando no local marcado, não puderam acreditar no que viram, a carcaça de uma espécie de demônio decapitado, o sangue negro manchava o chão em frente àquela residência, a qual morava um renomado antiquário, ficaram perplexos quando entenderam o que ligava a cena ao bilhete, uma frase dizia: “Retiro da natureza o meu sustento, e nada além disso. E não gosto de concorrência!”
Um uivo aterrador fora ouvido.
No dia seguinte, no local, foram encontrados mortos e parcialmente devorados, uma dupla de policiais e um homem que trabalhava com peças antigas.
E no cais da cidade, um velho barco pesqueiro havia partido.