UM ROSTO ENTRE AS CHAMAS

Os hematomas nos pulsos, causados pelo atrito do ferro dos grilhões, demonstrava claramente a dimensão da dor que acometia a jovem . Seus braços erguidos já não suportavam mais o peso do próprio corpo, o torpor era absoluto, dobrava as pernas, mas seus joelhos não tocavam o chão. O sangue que escorria de seus ferimentos, se mesclava ao suor e às lágrimas.

O calor naquele maldito cômodo de tortura era sufocante. Com esforço ergueu o pescoço e olhou para o lado esquerdo, o rapaz não estava em melhores condições. Sob seus pés uma poça de sangue se formava. Pelo menos, haviam dado uma pausa no castigo, a dupla acorrentada lutava para trazer um pouco de ar para os pulmões, a garota tentou falar alguma coisa, mas apenas gemidos saíram de sua boca.

A pesada porta de madeira se abriu com um rangido irritante, três indivíduos passaram por ela, dois homens e uma mulher, esta carregava uma vara de ferro, típica de marcar gado, que ostentava a letra "eme" em uma das extremidades.

Soltaram o rapaz das amarras de ferro, seu corpo despencou, não possuía mais forças, estava totalmente entregue. Prenderam-no novamente, mas dessa vez pelas pernas, fazendo com que ficasse de cabeça para baixo, logo, os homens começaram a executar golpes com ripas de madeira contra seu tronco, enquanto a mulher atirava-lhe algo que supostamente seria água benta, várias costelas foram quebradas. No lado de fora, uma multidão se juntava, havia se espalhado o boato de que os culpados pelas atrocidades haviam sido capturados, e estavam, naquele momento, sendo castigados.

- Blasfemo! Impuro! – Gritava a mulher, dirigindo-se ao rapaz suspenso. Em seguida, virou-se para a jovem e começou a atacá-la, verbal e fisicamente.

- Você não gosta de unhas? – Perguntava de forma acusadora – Olhe bem para as minhas! Não tenho medo de você, aberração!

Movida pelo ódio, a mulher arranhava-lhe o rosto com as longas e sujas unhas – olhe para os meus dentes – mostrava o sorriso amarelado e incompleto – você não é tão valente agora, não é?

A menina não reagia, era banhada por água benta enquanto açoitada. O toque final viera com o ferro em brasas. Sem a menor hesitação ou piedade perante os olhos desesperados da garota amarrada, a mulher marcou-lhe a testa, a letra para sempre ali ficaria estampada, como um símbolo de culpa. A dor fez com que a menina gritasse, e seu grito ecoou longe e para surpresa do trio de torturadores, se juntou a outros, e estes vinham do lado de fora, eram muitos e junto deles, também havia um outro som, e este era macabro e perturbador, uma sinfonia composta no inferno.

Eles sabiam o que significava, mas não ousaram olhar para conferir, não precisava, por instantes o silêncio se fez presente, mas em seguida o som de cascos fora ouvido, pausado, como se estivesse se aproximando, e a cada batida o pavor assaltava-lhes a alma. De súbito, a porta veio a baixo, e a figura que se apresentou diante deles era a própria essência do mal. Um dos homens tentou fugir, em vão, em instantes fora incinerado, e o fogo que o consumiu não o queimou apenas a pele, de algum modo inexplicável, ele sentira como se sua alma ardesse em chamas.

O outro não tivera melhor sorte, fora arremessado ao chão por um violento coice, que lhe deixou gravada as marcas dos cascos no peito, sua caixa torácica fora triturada, deixando a respiração difícil e dolorida, mas não iria precisar de ar por muito tempo, pois no instante seguinte, seu crânio fora esmagado por um novo golpe.

A mulher se acocorava no chão, tremia de forma incontrolável, a besta se aproximou dela, em seu relincho era possível distinguir um discreto soluçar. A garota amarrada agora gargalhava, ignorando a dor que lhe assolava o corpo, conseguia falar, e suas palavras eram direcionadas à sua algoz caída.

- Mostre as unhas agora! Onde estão seus dentes? Perdeu a coragem, covarde?!

Ela não respondia, procurava a todo custo esconder as mãos e o rosto do campo de visão da fera, e esta, ao invés de atacar a mulher caída, apenas contornou o seu corpo e seguiu até onde estava o moribundo rapaz. O jovem pároco, que cometera o imperdoável pecado de amar uma mulher, fez um grande esforço para olhar a fera quadrúpede, de pelagem negra, onde deveria estar a cabeça do animal, apenas chamas escarlates se exibiam.

O rapaz, através de sua turva visão, poderia jurar ter visto o rosto da mulher amada escondido entre as chamas, mesmo com toda a dor que sentia, conseguiu esticar o braço direito e acariciar o pêlo de uma das patas da besta, suspirou, e pôde, ao menos, ter a paz de morrer ao lado da mulher que tanto amara.

Diante da morte do jovem padre, a fera relinchou mais uma vez, de forma mais alta e perturbadora, galopou até a menina amarrada, e fazendo uso de suas chamas, derreteu o ferro das correntes, libertando-a. A garota se levantou, olhou para a besta, e entre lágrimas disse apenas uma palavra:

- Mãe!

Mesmo com todo o sofrimento e dor a que fora submetida naquela noite, mesmo acusada de ser a mulher amaldiçoada que havia se enamorado do pároco da cidade, mesmo com todas as lágrimas e sangue, ainda assim, conseguia encontrar conforto, pois sua mãe, apesar da maldição, havia encontrado mais uma vez o amor, após a morte do marido, seu pai, e esse amor, nada nem ninguém poderia lhe tomar.

A garota amarrou as pernas da mulher com uma corda, montou no dorso da mãe-fera, esta empinou as patas dianteiras e em seguida seguiu num galope desenfreado por entre os corpos sem vida, espalhados pelo chão de pedra. A torturadora não teria uma morte rápida, para ela estava destinado um fim pior, o qual se iniciara naquele momento, ao ser arrastada daquela maneira, ao sentir sua pele ser dilacerada. Ao ver seu sangue manchar a estrada, a mulher pôde imaginar que uma longa noite estava pela frente.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 12/02/2009
Reeditado em 29/10/2009
Código do texto: T1435659
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