A CANÇÃO PROIBIDA

Lá de baixo, era possível enxergar aquela luz tênue, a qual provinha do quarto no alto do sobrado, não se via muitas dessas construções na cidade, uma cidadezinha comum, como tantas outras no interior do nosso país. Para um pessoas simples, o acesso seria difícil, mas ela não era comum, a simplicidade passava longe do seu existir, de acordo com a sua análise, ela não encontraria maiores dificuldades para chegar até lá, afinal, não poderia recusar um chamado, ela precisava de ações como essa, vivia disso, e um convite tão bem elaborado, era merecedor de sua atenção.

Não havia muito tempo desde que a eletricidade se tornara um fato concreto no dia a dia local, era bastante restrita, e em apenas algumas casas se fazia presente, e nas ruas então, estava longe de tornar usual, o que para ela, era um fato muito bem vindo, embora não desfilasse pelas ruas com sua fisionomia real, não gostava de se fazer notar, e a iluminação precária facilitava muito as coisas.

Facilidade, essa foi a palavra que passou pela sua cabeça, ao notar a imensa amendoeira que se postava justamente ao lado da parede que levava ao sobrado, a distância entre elas era grande, mas como eu disse, ela não era limitada, onde havia dificuldade, ela enxergava oportunidade. Discrição e acesso, para ela, a combinação perfeita.

A escalada não fora difícil, vencera os obstáculos como se estivesse em seu habitat natural. A janela, levianamente deixada aberta, um passaporte para seus desejos. No quarto, o garoto, novato nos assuntos da adolescência, dormia tranqüilamente, pois detinha a certeza de que seu sono seria tranqüilo, diferente do irmão caçula, o qual perturbara com as insistentes narrativas que tornam o simples fato de dormir a mais difícil das tarefas.

Cada sombra, cada ruído, alguma coisa a espreita. Como essa coisa que estava agora ali, parada, defronte de seu próprio leito. Não foi medo o que sentiu, quando aquela mão gosmenta tapou-lhe a boca, tirando-o dos sonhos que circulavam em sua mente, aquela mão, coberta de escamas e placas, que o sufocava para evitar que gritasse, que vertesse em choro, não, ele não conseguiria chorar, nem que quisesse, não havia lágrimas em seus olhos, definitivamente não era medo o que sentia, era algo pior, era choque, choque de ver real, ali, na sua frente, uma coisa que já descrevera antes, mas que nem em seu pior pensamento se assemelhava àquela figura. Ela sabia que causava esse tipo de reação, e se deliciava com isso, ensaiava um sorriso bizarro, infernal.

Tal qual a entrada, a fuga fora bem executada, corria pelas ruas mal iluminadas com o garoto preso entre os braços, este parecia não possuir peso algum. Seu andar era peculiar, não dobrava os joelhos para executar o movimento das pernas, para tal, movimentava-as lateralmente, em semicírculos, era estranho, porém, eficiente. Dirigia-se para a margem do rio que corria através da mata fechada, mas sua jornada fora interrompida pela luz de dois faróis que se lançaram sobre ela. O que os ocupantes do veículo visualizaram não foi o mesmo visto pelo garoto, mas nem por isso foi menos perturbador, ali parada, estava uma mulher de idade avançada, mas que diante de seus olhos começou a rejuvenescer, sua pele se esticou até ficar saudável e exuberante, como a de um recém nascido, seus cabelos até então alvos e desgrenhados, haviam se tornado louros e radiantes, tiveram até a impressão de que estes se acenderam sob a luz do luar.

A mulher jogou o garoto de encontro ao capô do carro e correu, completamente nua, para dentro da mata. Como se acordasse de um transe, o menino se mostrava desnorteado, e colocou-se em um choro incontido, sofrido, comovente. O chamado coronel, que estava no veículo, ordenou que dois de seus homens seguissem com o garoto até a praça da cidade, onde nesse exato momento, uma turba se aglomerava, ele e mais dois seguiriam o rastro da mulher pela mata.

Chegando na praça, próximo ao coreto, uma mulher estava inconsolada, não se conformava por terem levado um de seus filhos, justo naquele breve intervalo, no qual, segundo ela, havia se ausentado. Com as mãos sobre seus ombros estava o pai, que acabara de chegar da lida. O carro adentrou pela praça chamando a atenção de todos pela maneira brusca com que o fizera. Os olhos lacrimosos da mãe agora eram de felicidade, mas esse alívio seria momentâneo, pois após o relato dos homens, todos apresentaram um misto de apreensão e revolta, e uma frente armada logo surgiu para dar suporte ao coronel e seus homens.

A essa altura, o trio armado com rifles da cano duplo corria por entre as árvores, pelo chão pantanoso, seguindo o curso do rio, atrás da estranha mulher. O caminho aberto pela fugitiva estranhamente começava a mudar de característica, uma vala mais rasteira e larga surgia, ao passo que os galhos mais altos ficavam intactos. De súbito, decidiram parar, pois o ruído que até então ouviam havia cessado. A luz de seus lampiões não conseguia alcançar uma boa distância, o homem que seguia mais à frente abaixou-se, a fim de iluminar melhor aquele estranho túnel aberto na vegetação, e antes de ter seu rosto dilacerado pelos dentes da mandíbula poderosa, ainda pode se perguntar, se eram cabelos aloirados o que via sobre a cabeça da fera que se preparava para atacar.

O homem que vinha logo atrás tratou de disparar o seu rifle, mas fora jogado ao chão pelo golpe preciso de uma longa cauda. Fora agarrado. Afiados dentes perfuraram o jeans de sua calça, abrindo a pele e os músculos de sua panturrilha, chegando até os ossos. Brutalmente fora arrastado para as águas do rio, estava sendo afogado pelos movimentos rotatórios da fera, que lhe mordia, rasgava, arrancava e devorava pedaços, o fazia perder sangue e a consciência, a fera não poderia se nutrir de sua carne, pois há muito esta já perdera as propriedades que a faziam especial, mas ela não ligava, pois o sabor permanecia o mesmo, e já que a haviam privado de seu sustento, ao menos ela iria se divertir às custas de sua vidas.

O coronel não sabia ao certo o que estava atacando e matando seus homens, mesmo sem enxergar muita coisa naquelas águas escuras, não hesitou em fazer uso de sua arma, os disparos acertavam a água, o corpo do capataz e as placas duras do dorso da fera, não era possível determinar até que ponto esta se ferira, pois naquele turbilhão que havia se tornado o rio, nada era garantido. A confusão diminuíra, mas não o ímpeto do homem em encontrar e acabar com o causador de tudo aquilo, já havia se esquecido completamente da mulher, porque, de acordo com o seu entender, aquilo não era humano. Seja lá o que fosse, não escaparia.

Ao notar algo se movendo veloz no sentido do curso do rio, o coronel colocou-se em disparada, tentando acompanhar o movimento, e nada poderia impedi-lo nessa empreitada, nem as pedras, a vegetação cerrada, e os galhos que o acertavam e cortavam sua pele, nem os tombos que o acometeram. Ele decidira que não tiraria, nem por um segundo, os olhos daquele ser que fugia. O rio terminava em uma pequena queda d'água, ao deparar-se com ela, o homem não questionou sobre a possibilidade de parar e se atirou, pois lá em baixo estaria o motivo daquela perseguição desabalada.

O pequeno lago formado no final da queda servia de entrada para uma gruta, o rio seguia através dela. O homem, apesar de apreensivo, decidiu seguir pela trilha de pedras que levava para o interior da caverna, o odor que circulava no ambiente beirava o insuportável, era pesado, nauseante, lembrava o covil de algum predador. Quanto mais se aprofundava naquele local, mais escuro ficava, lamentava pela perda do lampião no percurso. As gotas que caíam do alto, produziam um irritante e compassado ruído quando se encontravam com o solo úmido.

Caminhou por uns vinte metros, e quanto mais caminhava, a respiração se tornava mais difícil, parecia que o ar lhe faltava, não desistiu e continuou, tinha a impressão de que uma luminosidade surgia mais adiante. Estava certo, chegou até uma câmara, ali, o rio passava bem rente a uma das paredes, executando uma curva, na outra margem, onde estava, uma plataforma mais larga se apresentava.

O coronel ficou perplexo com a visão. Espalhados pelas reentrâncias rochosas nas paredes, estavam vários tocos de vela, e pelo chão, inúmeros ossos humanos, quebrados, roídos, explorados ao extremo. O homem estava horrorizado, o choque lhe tirara totalmente as forças, e talvez por isso, não pôde notar a enorme figura que surgia sorrateiramente às suas costas, pele esverdeada, olhos amarelos e esbugalhados, as fileiras de dentes afiados e enegrecidos, que enfeitavam sua boca escancarada, pareciam não ter fim, ou melhor, pareciam indicar um caminho, e este seria definitivo, dolorido, sem volta.

Ainda exibia as madeixas douradas na cabeça, mas seu rosto não era mais o mesmo, o qual, o coronel havia visto ainda na estrada. Ela era a própria essência do mal, desde que surgira, eras antes, muito antes do homem branco chegar nestas terras, ela sempre estivera ali, e sempre estará, ela se alimenta do medo, e este, sempre habitará a nossa alma.

A fera prendeu suas garras nas costelas do homem, e antes que um grito pudesse ecoar pela gruta, a imensa boca já havia acomodado o frágil pescoço do homem e pressionado com uma força imensurável. Um estalo, o sangue jorrava farto, manchando a pele escamosa da mulher. Naquele ritual macabro, nem as roupas do pobre homem sobraram...

A equipe de apoio perdeu o rastro um pouco antes da queda d'água, os cães ficaram desorientados. Um dos homens que levaram o garoto de volta, e que liderava a equipe, suspirou e se sentiu derrotado, não sabia o que fazer, nenhuma pista do coronel ou de seus funcionários. Naquele local, na beira daquele rio, apenas alguns jacarés se faziam presente, um em especial, o maior deles, deixou o homem um pouco incomodado, ele não sabia se era pelo jeito que este o encarava, ou se pelo fato deste parecer sorrir, o fato era que o animal o incomodava. Mas, antes que pudesse pensar em algo, os bichos mergulharam, e com eles se foram a desconfiança e o desconforto. Afinal, uma busca precisava continuar, e não seriam os animais simples e corriqueiros da região que teriam alguma influência, assim pensou.

Dias se passaram sem que qualquer vestígio dos desaparecidos surgisse, bem como a descoberta da gruta hedionda, que de alguma forma desconhecida, se mantinha oculta, o que nos leva a crer que não fora o coronel que a seguira, e sim, a mulher que o atraíra até lá.

Naquela noite, numa casinha simples, uma mãe acalentava sua filha, passava a mão sobre os cabelos finos e delicados da menina, se sentia grata por ter tão precioso tesouro, assim que ela dormisse, sairia para comprar algumas frutas e esperar o marido. Não tardaria, o sono sempre vinha quando a menina ouvia a voz da mãe, uma voz suave e calma, que cantava:

- "Nã-na-neném....

Perto dali, na beira do riacho, duas órbitas oculares surgiram de dentro d'água, e um sorriso sutil se formou, mais um chamado a ser atendido...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 16/02/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1442404
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