O INFERNO DO SOLDADO

No alto daquela guarita o frio beirava o insuportável, aquela chuva fina, que caía a noite toda, começava a apertar, e somada ao vento cortante, que chegava lateralmente vindo mar, só dificultava ainda mais a sua situação. Não era para estar ali, estava de folga, mas as duras condições do dia a dia fizeram com que ficasse em serviço no lugar de um colega, o pagamento seria de cinqüenta reais, era pouco, mas seria melhor que nada.

A situação estava tão incômoda que nem dormir ele conseguia, era impossível, seu queixo batia de forma incontrolável, o vapor que era expelido pela sua boca dava a impressão de que fumava sem parar, era evidente que não o fazia, embora estivesse com muita vontade.

Aquela era a única torre de vigilância daquele lado da ilha, as ondas da maré alta quebravam logo abaixo dela, nunca acontecia nada de anormal, mas parece que naquela madrugada o destino resolvera lhe pregar uma peça. Talvez se estivesse dormindo, aquele fato teria passado despercebido, mas não estava, e ele, como soldado, deveria cumprir o seu dever.

O pequeno barco se aproximava, três ou quatro ocupantes, não dava para precisar, mas uma coisa era certa, deveriam ser todos loucos. Estar no mar naquelas condições? Com aquela tempestade? Não deveriam ser normais, a não ser que...tivessem um bom motivo! Sim, havia um bom motivo. Do outro lado da baía, uma região assolada pelo tráfico de drogas, de certo seriam traficantes trazendo algum carregamento, e que devido às condições do mar foram arrastados até ali...seria possível, mas tinha de ser naquele turno?!? No meu turno?!? Assim pensou.

Virou a luz do holofote na direção da pequena embarcação, estava certo, três ocupantes. A regra para esse tipo de situação dizia que um aviso precisava ser feito, com um megafone disse:

- Atenção embarcação, vocês estão em uma área militar, recuem imediatamente. Nada.

- Atenção embarcação, identifique-se, é o último aviso. Nada.

- Droga – falou para si mesmo.

Pegou o rádio de comunicação para avisar a central de comando, ficariam furiosos de serem acordados no meio da noite, mas, ele não tinha opção.

- Droga – falou novamente para si – só estática, o que está havendo? Deve ser essa maldita chuva.

Precisava seguir o protocolo, um disparo para o alto. Nada. A situação começava a se complicar, mas o que é que eles estão fazendo? Antes que pudesse ter uma resposta para a pergunta que fizera em pensamento, uma saraivada de tiros fora efetuada contra a guarita. O soldado se abaixou e começou a se perguntar se cinqüenta reais valeriam a pena por tudo aquilo.

Deixou de lado as indagações e decidiu agir. Posicionou o fuzil no beiral da torre e começou a disparar incessantemente, o barulho certamente vai chamar a atenção do quartel, pensou, recebeu o troco na mesma moeda, parecia que chovia mais chumbo do que água naquele momento. Os disparos dos invasores estilhaçaram o concreto da torre, as armações de madeira às suas costas e o atingiram no tórax, o impacto o derrubou da guarita, de uma altura de dez metros, seria o seu fim. Não foi.

Caído naquele chão de terra batida, com as gotas da chuva despencando sobre ele, sentiu o sangue encher a sua boca, era impossível se mexer, viu o vulto de uma figura se formar diante dele, nesse instante começou a achar que já estava delirando, que a morte já batia à sua porta.

- Você vai morrer – falou a figura postada a seu lado, trajava um terno branco impecável, não dava para visualizar o seu rosto, o soldado não entendia a razão do sujeito não se molhar, apesar do céu estar desabando em água.

- Que-quem é vo-você? – Suas palavras eram ditas com dificuldade, interrompidas pelas tosse, que jorrava mais sangue sobre o seu corpo.

- Um amigo. Olhe, você não tem muito tempo, tenho uma proposta para lhe fazer, mas você precisa ser breve, tenho muitos afazeres.

- ...

- É o seguinte – disse o estranho – eu salvo a sua vida e em troca você me serve por treze anos, e durante esse período eu garanto que nada lhe faltará, e após esse tempo, não mais peço os seus serviços, o que me diz?

De certo, muitos o criticariam o soldado pelo simples fato de cogitar a possibilidade de aceitar tal proposta, feita por tão sinistra figura, mas é verdade também que, poucos de nós já experimentamos uma situação como a que ele passava, convenhamos, sentir seu sangue esvair em profusão, sentir a dor extrema e a sensação de estar indefeso, tudo isso somado ao medo, ao medo mais primitivo que acomete a humanidade desde o início, o mais profundo dos medos, a morte. Ali, clara, iminente, palpável, provável. Diante disso, como poderíamos condená-lo? Mesmo que viesse a se arrepender, naquele momento, naqueles breves segundos, ele cedeu...

- Aceito! A-aceito...

O ser vestido de branco pousou a mão sobre o corpo do rapaz caído, um calor imenso tomou o espaço entre os dois, o chumbo incrustado nos órgãos e músculos do soldado começou a se elevar, os projéteis se fundiram em uma massa maleável e incandescente, obedecendo a vontade do estranho, a massa começou a tomar a forma de um pequeno e aparentemente afiado punhal. O rapaz já não sentia mais dor, muito pelo contrário, nunca se sentira tão bem em sua vida, colocou-se de pé, o estranho olhou para ele e apontou para o fuzil caído e disse:

- Mate todos!

O soldado não pensou duas vezes, agarrou a arma e começou a atirar. Com raiva! Com vontade! Uma fúria inigualável, logo, os três invasores estavam mortos, e no barco, a droga traficada. O estranho que gargalhava enquanto seu soldado fuzilava os homens, olhou em seus olhos, esticou o punhal e mais uma vez falou:

- Arranque o coração de um deles!

O rapaz, já com a respiração mais calma, parecia não ter entendido o que o outro dissera.

- É isso mesmo rapaz! Eu quero o coração de um deles, aliás, de agora em diante, eu quero um coração por ano, e você os trará para mim, sempre os de quem eu determinar.

- Mas...

- Não tem “mas”, você aceitou trabalhar para mim, mas não se preocupe, você será recompensado...

O soldado olhou para os homens mortos...

- Não se preocupe com eles, você mesmo sabe que não passam de traficantes, eles levariam essa droga para as crianças na escola...você tem pena deles? Tem?

A fala da sombria figura era extremamente convincente, e para o soldado, aquele discurso parecia fazer o maior dos sentidos. Novamente uma pontada de raiva invadiu sua alma, ele tomou o punhal que lhe era oferecido e abriu o peito de um dos cadáveres, retirando o seu coração. Manchado pelo sangue e sentindo uma aflição que lhe dava vontade de rir, de chorar, tudo ao mesmo tempo, o rapaz entregou o coração para o estranho, por uns breves instantes teve a impressão de que este havia pulsado.

- Muito bom, soldado – falou o estranho – não se preocupe com nada, seus amigos logo estarão aqui, e eles entenderão tudo, verão que você fez uma coisa muito boa, você será recompensado, sua vida mudará, meu amigo, sua vida mudará...

Da mesma forma que surgira, a figura desaparecera, e um odor de enxofre se espalhou por todo o ambiente, e tal como dissera, vários soldados surgiram, e sem que o rapaz precisasse abrir a boca para dizer uma só palavra, parecia que todos já possuíam uma explicação em suas mentes, nem o fato de um dos homens mortos estar sem o coração, porque de uma forma inexplicável, a abertura feita pelo punhal do soldado havia desaparecido, apenas as perfurações feitas pelos disparos estavam lá. Tudo se resolvera, a bravura e a fibra do soldado foram decantadas aos quatro ventos, e este fora tomado por todas as honras que lhe cabiam, sua carreira iniciaria, naquele momento, uma ascensão considerável.

Nos anos que se seguiram, sua vida não poderia ser melhor, embora a cada ano, sem uma data específica e sem um aviso prévio, a sinistra figura surgia, e como fora acordado, exigia os serviços do soldado, queria sangue, queria mortes, queria um coração. No início os alvos escolhidos, como no caso dos traficantes, eram seres que, segundo as artimanhas do estranho, não fariam a menor falta ao mundo e, ainda segundo ele, a sociedade estaria melhor sem eles. O soldado escorava-se nessas palavras para tentar justificar para si mesmo os seus atos, mas lá no fundo de seu ser, mesmo que negasse, sentia uma satisfação por estar fazendo aquilo, e a sensação que tinha quando aquela fúria indomável lhe tomava o corpo, era sem igual.

Mas, os alvos que se seguiram, escolhidos pelo estranho, passaram a ser pessoas comuns, pessoas que trabalhavam, estudavam e que contribuíam para um mundo melhor, talvez a intenção do ser fosse justamente essa, aflorar o que o rapaz, e consequentemente, a humanidade, havia de pior, e estava conseguindo, a repulsa inicial demonstrada por ele pouco a pouco foi cedendo, pois a cobiça gerada pelo retorno que recebia, em seu entender, valia a pena.

No décimo terceiro ano, desde o primeiro encontro com o misterioso ser, o soldado já possuía tudo o que uma pessoa poderia querer na vida. Uma bela casa, com todo o conforto que a tecnologia poderia proporcionar, automóveis, conhecera todos os lugares que quis, e o mais importante, a pessoa que mais amava no mundo estava ali, ao seu lado, sentia-se feliz com tudo, mesmo tendo feitos coisas que envergonhariam o mais deplorável dos seres.

Bastava apenas mais um serviço e estaria livre, poderia seguir sua vida como bem quisesse, sem dever mais nada para ninguém. Estava ansioso para se livrar de uma vez de todo aquele peso, não que matar o estivesse incomodando, já não se importava tanto, o que não gostava era da sensação de ter uma dívida em aberto, afinal, hoje, ele poderia pagar por praticamente tudo, e aquela dívida era a única coisa que tirava o seu sono.

Naquela noite aconteceu uma coisa até então inédita, a sinistra figura apareceu para cobrar o último serviço, mas não surgiu somente para ele como de costume, apareceu para o casal, e desta vez, ela mostrou o rosto e disse:

- Meu soldado, venho cobrar o derradeiro serviço – a mulher ao lado do rapaz estava horrorizada com a visão diante dela – o que foi soldado? Você nunca falou de seu amigo para ela?

Silêncio.

- Não importa – continuou – hoje eu vou querer o último dos corações meu soldado, hoje eu vou querer o seu.

Uma onda de desespero tomou conta do rapaz. Não, não era justo, como isso pode acontecer? Logo agora que minha vida estava tão boa? Logo agora! Não, não, não! Falava para si mesmo, enquanto andava de um lado para o outro, enquanto o ser apenas observava e sua esposa não emitia a menor reação, estava atônita.

O rapaz se sentou e começou a pensar sobre as pessoas as quais tirara a vida. Será que estavam felizes? Será que atravessavam uma fase tão promissora quanto a minha? Foi justo o que fiz? Meu Deus! O que foi que eu fiz? Suspirou, se sentia a pior das pessoas, só havia uma coisa a fazer, pagaria por seus pecados com a própria vida.

Apenas uma coisa o confortava naquele momento, sua esposa, sua amada mulher poderia viver uma vida compatível com o que sempre desejara para ela, e isso lhe dava forças para continuar e aceitar o seu destino.

- Muito bem – disse – me dê o punhal. Você quer o meu coração, você terá o meu coração.

Pegou o objeto, sua mão tremia, posicionou a lâmina na pele do seu próprio peito e fez força, mas, não conseguia, a lâmina não obedecia a sua vontade, e o que era pior, seus braços agiam contra o seu desejo, sua mão não conseguia largar o cabo da faca, suas pernas seguiam em outra direção, seus braços buscavam sua mulher.

- Não!! – Ele gritava – você quer o meu coração, o meu coração, não o dela, pare, pare.

A mulher permanecia parada, com lágrimas nos olhos, enquanto seu marido seguia em sua direção, o ser gargalhava. Com um só golpe, o homem perfurou o abdome da esposa e subiu com a lâmina, o sangue jorrava, arrancou o seu coração e o entregou ao estranho. Em prantos o soldado perguntava:

- Por quê? Por quê? Era o meu coração que você queria...

O estranho apenas sorriu e apontou para a parede, então, uma névoa surgiu e em seguida uma cena onde o casal trocava juras de amor, a mulher dizia para o soldado:

- Ontem, hoje e sempre, o meu coração será o seu...

Agradeço a força e o apoio dos meus amigos Victor Meloni, "a voz dos pampas" e Danilo, o inabalável "licantropo".

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 18/02/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1445598
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