OUTRA COISA NA ESTANTE
Os faróis do caminhão tentavam trazer um pouco de luz para a escuridão daquela rodovia federal, o caminhoneiro, embora tomado pelo cansaço das horas seguidas de viagem, não pensava em parar naquele momento, ainda precisava percorrer mais uns duzentos quilômetros até a capital da Bahia.
Nessa parte do trajeto, poucos veículos cruzavam por ele vindos do sentido contrário, e atrás dele, ninguém, nem ao menos um simples reflexo no espelho retrovisor.
Como sabemos, sob estas circunstâncias, a monotonia da estrada se torna quase hipnótica, a mesma vegetação, os postes, até as faixas no asfalto pareciam convidá-lo a relaxar, mesmo ele, um profissional experiente, vindo de uma família acostumada às artimanhas da boléia, estava suscetível a falhas, e nesse caso, a teimosia, que é peculiar a todos os autoconfiantes, se transforma numa armadilha fatal.
Um piscar de olhos! Um estrondo! O caminhão executou um
ziguezague perigoso e inesperado, justo nesse momento surgiu um veículo do lado oposto, e o choque só não ocorreu devido à perícia e aos braços do experiente motorista, que usou de todos os artifícios para evitar que a carreta tombasse.
Com muito custo conseguiu, e em seguida, encostou o veículo e se benzeu, tirou o suor do rosto, estava mais acordado do que nunca, só então se lembrou do estrondo. Com certeza atingira algo ou alguém, pensou, precisava ir até lá. Abriu o porta-luvas em busca da lanterna, recolheu-a, visualizou a arma. Não esperava precisar dela, mas, a hora e o local recomendavam que seria prudente levá-la.
Desceu da cabine e pôs-se a caminhar na direção de onde supunha estar o motivo do quase acidente sério. Jogava a luz da lanterna no asfalto negro; no céu, o brilho da lua ajudava um pouco, mas só um pouco. Após alguns passos notou algo que chamou a sua atenção, mas que também o apavorou, eram marcas de sangue, um rastro, e apontando a lanterna para frente percebeu o que parecia ser um grande animal caído.
Que espécie seria aquela? Daquele tamanho? Fazia perguntas para si mesmo, mas não deixava de seguir em frente, a curiosidade superava o receio naquele momento, chegou bem perto, parecia um cão, mas com as dimensões que se aproximavam às de um touro, era negro e exalava um odor forte. Permanecia imóvel, o caminhoneiro aproximou-se o máximo que pode da cabeça do animal, estava estupefato, a bocarra aberta exibia fileiras de dentes pontiagudos, com destaque para os incisivos e caninos, estava perplexo, e nesse estado cometemos um terrível pecado, ficamos desprevenidos, e quando estamos desprevenidos, podemos facilmente nos tornar o que aquele animal caído mais aprecia, podemos nos tornar sua presa.
E foi nisso que ele pensou quando abriu seus olhos, inspirou o ar, colocou-se de pé e rosnou. Diante dele estava seu alimento! O homem pensou em correr, não conseguiu, suas pernas perderam as forças, gritou, mas não havia ninguém ali para ajudá-lo, lembrou-se da arma, começou a disparar, os projéteis atingiam o gigante de mais de dois metros e de pêlos fartos e espetados, mas pouco ou nenhum efeito faziam. O caminhoneiro suspirou quando notou o clique seco da falta de munição, ele sabia o que estava diante dele, seu pai sempre contava a experiência que o avô passara uma vez com semelhante besta. Ele não estava preparado para tal duelo, lhe faltava o misticismo da prata, lhe faltava a coragem do avô.
A fera uivou para a lua e escancarou a boca, salivava de forma abundante, o homem olhou bem para ela e percebeu naquele instante o destino doloroso e terrível que o aguardava. Ele notou também um detalhe curioso, dentre os inúmeros dentes amarelos e ameaçadores, um em especial se destacava, um longo e afiado canino, emitia um brilho, parecia revestido por ouro.
Não havia coincidência, a fera estava ali por vingança, tempos atrás, um membro de sua alcatéia fora assassinado por um parente daquele homem, eles nunca esquecem, queria sangue, queria morte, e queria naquele momento. Descreveu um arco no ar com uma das poderosas patas, a esquiva do homem não fora suficiente para livrá-lo do golpe, as garras produziram quatro riscos escarlates em seu ombro, fora atirado longe, para sua sorte, caíra mais próximo do caminhão, a fera preparava-se para saltar sobre o ele, mas fora impelida pela luz forte que a cegou momentaneamente. Era um carro, que de forma desprevenida, cruzava a estrada, o caminhoneiro aproveitou a chance para correr, suas pernas ganharam novas forças com o imprevisto do animal.
A besta, inflamada pela ira, saltou sobre o capô do carro, estilhaçando com um só golpe o pára-brisas e arrancando o desafortunado motorista. O veículo, sem direção, se chocara contra um dos postes de iluminação elétrica, enquanto que o seu dono, agarrado pelo pescoço, sentia sua pele ser perfurada, e antes de desfalecer pela dor lancinante, a boca aberta do animal permitira que ele observasse, com detalhes, a garganta negra e fétida, onde em instantes, pedaços de seu corpo passariam, para saciar a fome sem fim e a fúria incontida da besta.
O caminhoneiro conseguira entrar na cabine do veículo e dar a partida, com uma rápida olhada pelo retrovisor, viu o gigante revestido de pêlos devorar o pobre viajante.
Saíra em disparada pela rodovia, estava sangrando e sentindo muita dor, mas a dor não era o maior de seus problemas, na verdade, ele precisava voltar sua atenção para aquele par de olhos amarelos vindo em seu encalço. Pisava forte no acelerador do caminhão, marcando com esporas todos os cavalos do motor, contra a potência do veículo, as patas da fera se mostraram frágeis, e os círculos amarelos foram ficando cada vez mais distantes.
No entanto, mais uma surpresa o destino reservava para ele naquela noite, ao olhar para o marcador do combustível, percebeu que o ponteiro baixava cada vez mais. Será que o maldito, de forma maquiavélica, rasgara o tanque no momento do impacto? Era possível. A dor aumentava cada vez mais, não havia escolha, precisava parar, foi quando se lembrou de algo importante, algo que poderia significar a sua salvação.
Ele tinha um amigo próximo dali, uma família amiga na verdade, desde os tempos do seu avô, desde a época em que a primeira fera surgira. Com o combustível quase no final, girou o volante do pesado veículo e adentrou pelas plantações de aipim que circundavam aquela estrada estreita, seguiu com dificuldades, se lembrava vagamente do caminho, avistou um vasto pasto e mais adiante o pequeno sítio, seu objetivo.
O motor morrera antes que chegasse até lá. Desceu e começou a caminhar, seu corpo estava em frangalhos, seu ferimento queimava, pelo menos o local já era provido pela eletricidade, bem diferente dos tempos em que os candeeiros e os lampiões ditavam as regras. Um uivo horrível e perturbador se fez ouvir. Maldição! Ele o havia seguido! Pensou. Apertava o passo, precisava achar o amigo antes que fosse achado, deixava um rastro de sangue pelo caminho. Mais um pouco, mais um pouco...de súbito, algo na sua frente, era ele, seu amigo.
- Da-Danilo, ainda bem que é vo-você – as palavras saíam entrecortadas, mas estava um tanto o quanto aliviado, diante dele, o amigo de pele negra e armado com um rifle lhe dava conforto.
- Ele está atrás de você não é?
- E-está!
- Não se preocupe, eu estava esperando por ele está noite. Vê? - Mostrava a arma – está carregada de prata.
Mal terminou a frase, a fera surgiu diante deles, apresentava-se nas quatro patas e rondava de um lado para outro, como se prevendo a intenção dos humanos diante dele. Danilo encarava os olhos da fera sem medo, o que para ela, era algo inusitado. O caminhoneiro permanecia na retaguarda do amigo, estava desarmado, mas ajudaria no que fosse possível. Embora fosse um capoeirista experimentado, Danilo não pretendia utilizar suas pernas naquele embate, a fera farejava o ar, então, engatilhou o rifle, apontou e disparou...para o ar! Descarregou todo o conteúdo da arma! A fera permanecera da mesma forma, inabalável, mas o caminhoneiro não pôde acreditar no que vira.
- O que você fez, Danilo?!? Vamos morrer!
- Lamento meu amigo, lamento mesmo.
O rapaz largou a arma e deixou o corpo cair, apoiou as mãos no chão e começou a se contorcer, espasmos terríveis tomaram o seu corpo, as roupas rasgaram, ou pêlos cresceram, gritava, o som de ossos estalando, ninguém nas ruas, o caminhoneiro pensou em fugir, fora repelido pela fera que cercava seu caminho.
Danilo não era mais humano, era uma máquina revestida de pêlos, armada com garras e dentes, e como o outro de sua espécie, exibia um das presas revestida em ouro. O caminhoneiro gritou e isso fora a última coisa que fizera na vida.
No dia seguinte, a carreta não estava mais ali, não havia corpo, não havia sangue no chão, ninguém comentou nada nas ruas, embora certamente os gritos e os uivos tivessem invadido seus lares, talvez fosse um assunto proibido no local.
No pequeno sítio, uma garotinha falava com Danilo:
- O que é aquilo ali? – Apontava para o alto da estante, onde um crânio reluzente, enfeitado por um boné, típico dos caminhoneiros estava posicionado.
- Nada de importante prima, só uma lembrança, nada de importante.
" Qualquer semelhança, NÃO é coincidência."