INOCENTE BRINCADEIRA

Um filete de suor escorria pelo rosto de Rodrigo. O rapaz fez uma careta e soltou o ar com vontade ao ouvir o clique seco, que significava alívio e segurança. O próximo seria Luís, e seus olhos expressaram toda a tensão ocasionada pela situação.

Virou de uma só vez o copo de vinho tinto que estava posicionado ao alcance de sua mão desde o início da rodada. Chupou o ar e emitiu um estalido com os lábios. Pegou o revólver calibre trinta e oito, colocou o cano na boca e apertou o gatilho, sem dar margem para hesitação. Tão logo o som do disparo se fez ouvir, o líquido vital e escarlate jorrou em profusão.

O jovem foi ao chão, os outros cinco que compunham a roda começaram a gritar.

As coisas saíram do controle. Como? Não era possível! Não deveria existir uma bala no tambor. Uma hábil manipulação deveria ter resolvido a questão. Era para existir apenas a ilusão da arma estar carregada. Teria sido um descuido? Fora proposital?

Um problema bem maior era jogado sobre eles naquele momento, um problema caído no chão,um problema que vertia sangue e costumava atender pelo nome de Luís. As dúvidas deveriam ficar para depois.

Leandro se abaixou e sentiu a respiração do colega.

- Ele está morto – sentenciou.

- E agora? O que vamos fazer? – Perguntava Rodrigo, visivelmente o mais abalado.

- Vamos ser presos! – Dizia Rômulo – Estamos perdidos!

- Calem a boca! – Bradou Jorge – Precisamos dar um jeito nisso.

- Concordo! – Interrompeu Fernanda, a única garota do grupo – Precisamos esconder o corpo!

- Claro – disse Jorge novamente – todos nós sabíamos dos riscos. Vamos enterrá-lo, esconder o corpo e não vamos mais falar nisso!

Um silêncio mórbido se fez notar.

Colocaram o corpo na caçamba da pick-up de cabine dupla e seguiram até o terreno baldio, que ladeava as ruínas da velha fábrica. Melhor local para a ocultação de um cadáver não encontrariam. O mato e as árvores se espalhavam por todos os lados, fornecendo ao local um tom de isolamento e estranha paz. E era disso que precisavam, para eles e para o colega morto.

- Rodrigo – falou Jorge – você cava.

- Por que eu? – Argumentou.

- Porque você é o calouro aqui – gritou.

- O Luís também era.

- Mas ele está morto, idiota – interrompeu Fernanda.

- Cava logo isso – disse Rômulo, atirando-lhe a pá.

Sabendo que não teria como vencer o debate, o garoto começou a cavar. Vinte minutos depois uma cova rasa havia surgido. O corpo envolto por plásticos pretos fora depositado, logo em seguida, no espaço que lhe era destinado. O tempo gasto para cobri-lo com terra fora bem menor. Todos juraram não falar mais no assunto, entraram no veículo e partiram.

- Não podemos fazer isso – disse Leandro, quebrando o juramento e o silêncio que imperava nos últimos cinqüenta minutos em que estavam reunidos, ao redor de uma mesa de pedra, próxima do estacionamento no campus.

- É, não podemos – acompanhou Rodrigo, não conseguindo conter o choro.

A dupla iniciou uma corrida desabalada até o carro de Rodrigo. Entraram e partiram. O restante do grupo seguiu atrás deles, na ânsia de tentar impedir seja lá o que estivessem pensando em fazer.

Mal chegaram ao terreno da velha fábrica, Leandro e Rodrigo trataram de encontrar o local exato em que haviam enterrado o amigo. E qual não foi a surpresa de ambos ao encontrar a cova vazia. Os outros chegaram e se mostraram tão surpresos quanto eles.

- Não, não, não – bradava Rodrigo – isso não está acontecendo.

Mal terminou de falar, fora acometido por uma surpresa maior ainda. Pois ali, na sua frente, estava ele, Luís, o amigo morto, coberto de sangue e...caminhando.

Luís empunhava uma foice, de seus olhos opacos transbordava o ódio da vingança.

- Você – apontava para Rodrigo – você é o culpado. Por sua causa fizeram a brincadeira. Você me matou e agora vai pagar por isso.

O rapaz tentou falar, mas as palavras não vieram, o morto se aproximava cada vez mais, sem que Rodrigo emitisse qualquer reação. Os braços do zumbi ergueram o cabo com a lâmina e foi justamente nesse momento que suas pernas resolveram obedecer, e Rodrigo correu. E naquele instante o vento não seria um oponente a altura. Ele gritava, chorava e não parava de correr.

O restante do grupo caiu na gargalhada. Fernanda filmava toda a cena.

- Espere Rodrigo – chamava Jorge – é uma brincadeira.

O rapaz não ouvia, seguia na direção da fábrica sem atentar para os risos que ficaram para trás.

Um trote. Era tudo um trote para o calouro do curso. Está certo que o Luís também era novato. Mas não havia outro com tamanha habilidade para o golpe.

Manusear a munição de festim, dissimular com o pequeno envelope de sangue falso no fundo do copo de vinho. E cuspir o conteúdo após colocá-lo na boca, depois do disparo? Coisa de gênio. Era uma ator perfeito. O plano que o novato Luís bolou para pegar o outro fora fantástico. Enquanto Rodrigo cavava a cova, Luís saía discretamente da caçamba, os outros fingiam embrulhar o corpo com plástico, quando na verdade já havia um manequim revestido por tal material. Tudo muito bem pensado.

Quando foram embora, Luís cavou novamente o buraco, retirou o boneco e se preparou para o retorno ensaiado. Agora era só exibir o filme, que fora discretamente produzido pela garota. Que trote! Perfeito!

Precisavam trazer a vítima de volta e curtir com a cara dele. Entraram na fábrica, Jorge liderava a fila indiana e Luís, o morto-vivo e mentor da brincadeira, a fechava.

- Rodrigo! Apareça cara!

- Foi uma brincadeira.

- Rodrigo!

Nada. Parecia que o rapaz havia desaparecido. Continuaram pelos escombros da gigantesca construção. Ouviram um ruído, um barulho impossível de identificar. Continuaram. Depararam-se com uma escadaria, as lanternas mal iluminavam o caminho. Fernanda continuava a filmar. Desciam as escadas e uma luz suave começou a surgir.

- Rodrigo! Apareça!

Chegaram até o fim da escadaria, era um pavimento subterrâneo da fábrica, e lá estavam reunidas inúmeras pessoas, todas vestidas de negro, com os rostos cobertos por capuzes.

Tentaram voltar, mas foram impedidos por Luís que apontava uma arma para eles.

- Esta está com munição de verdade, acreditem.

Rodrigo, já com as mesmas vestes negras do estranho grupo, se aproximou e disse:

- Bem-vindos ao meu trote! Estão vendo aqueles lugares – apontava para quatro cruzes que se distribuíam como os pontos cardeais em um círculo riscado no chão – estão reservados para vocês.

Começou a rir, enquanto os homens de negro levavam o quarteto, que se debatia, gritava e chorava.

- É – falou Luís – está cada vez mais difícil arrastar “voluntários” vivos para o sacrifício. Dá próxima vez, você será o morto.

- E você será a vítima indefesa – completou o outro.

Caminharam abraçados e gargalhando na direção do ritual.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 27/02/2009
Reeditado em 10/12/2009
Código do texto: T1460182
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.