TAÍS E A MÁSCARA

Correr. Correr sem parar. Era o máximo que poderia fazer naquela situação. Ela não conseguia entender a inércia de seus pais. Por que eles ficaram ali parados, sem fazer nada para impedir? Por que deixaram que a escolhessem? Não adiantaria ficar pensando sobre questões sem respostas. Pois, em seu encalço estavam eles, os emissários da morte.

Suas vestes traduziam o tom de suas almas: eram negros como uma noite sem lua ou estrelas. Os rostos ocultos mantinham as expressões indefinidas, embora as intenções estivessem transparentes como a água de uma nascente. Eram oito, e cada um trazia nas mãos um cajado adornado por uma lâmina afiada em uma das extremidades.

Os estranhos carregavam um caixão, cujo interior estava reservado para ela. Entoavam palavras de ordem enquanto corriam, seus gritos eram acompanhados pela histeria da multidão espalhada por todo o local. As pessoas pulavam, aplaudiam e gargalhavam, enquanto o grupo de negro perseguia a garota. E esta nunca sentira tanto medo, aliás, medo não, raiva. Era raiva o que sentia. Raiva por estar naquela situação.

Continuava a correr, não tinha outra opção. Descia a ladeira de paralelepípedos impulsionada pela velocidade que a juventude lhe permitia. No entanto, seus perseguidores eram mais rápidos. E, além disso, contra ela, estavam as demais pessoas, e foi justamente uma dessas pessoas que a agarrou.

-Me solte! Me solte! – suplicava a menina, enquanto a mulher que ela conhecia de vista, apertava seus pulsos.

-Aqui! Consegui pegá-la! Consegui! Consegui!

Os oito monstros se aproximavam com as lâminas erguidas. A garota, com os olhos arregalados, já sabia o que viria a seguir. Sentiu inúmeros braços a colocarem no caixão. Os malditos permaneceram completamente indiferentes ao seu protesto. Em seguida, posicionaram a tampa e selaram a caixa. No interior escuro, ela vertia sua dor em lágrimas. O desespero a levava a espancar e arranhar a tampa do ataúde. Seus atos, nenhum efeito produziam. Sentia que estava sendo transportada, já imaginava para onde, e isso a deixava ainda mais agoniada.

De súbito, pararam. A tampa lentamente foi removida, e a luz artificial inundou a escuridão, fazendo com que espremesse os olhos. Quando os abriu novamente, eles estavam lá. Seus pais, sorrindo e com os braços estendidos.

-Venha, Taís. Saia daí. – Falou o pai, oferecendo-lhe uma das mãos.

-Você precisa aprender a relaxar – dizia a mãe, enquanto sorria.

A menina fora colocada de pé, seus olhos irradiavam irritação. No alto de um palanque, a banda não parava de tocar marchas carnavalescas. Para todo lado que olhasse, havia gente pulando, cantando e sorrindo. Confetes e serpentinas voavam pelo ar. Crianças se divertiam soltando uma espuma branca através de latas. As pessoas mais próximas batiam palmas para ela. Fantasias de todos os tipos, para todos os gostos, como as daquele grupo de “carrascos” que a arrastaram na brincadeira de gosto duvidoso, minutos atrás.

Taís detestava aquela época. Em sua opinião, havia algo de errado naquilo tudo, algo que sentia em seu interior, algo que a pedia para se mantivesse afastada daquela festa. Embora fosse de uma família de foliões inveterados, não encontrava sentido naquela alegria gratuita, e não se sentia nem um pouco à vontade naquele tipo de lugar.

Achava tudo uma perda de tempo, aquelas pessoas enlouquecidas nas ruas. Apenas uma coisa a confortava: em sua cabeça se passava a idéia de que, como estava com treze anos, logo não seria mais obrigada a acompanhar os pais em jornadas como aquela. Já não era nenhuma criança, para ela, essa seria a última vez. O último carnaval na folia das ruas.

Seus pensamentos foram interrompidos pela cena que visualizou de repente. Próximo de onde estava, os emissários da morte atacavam novamente, e desta vez, a vítima era um garoto vestido com uma roupa larga e colorida. Ele usava uma máscara, e ao notar que a menina o encarava, acenou para ela. De forma diferente, e que não conseguia entender, o garoto estava se divertindo ao ser colocado no mesmo caixão. Taís nem percebeu o seu próprio ato, e quando se deu conta, estava retribuindo o aceno e sorrindo.

A mãe, ao notar a cena, sorriu para ela e disse:

-Viu filha, é tudo máscara. Tudo máscara.

As palavras soaram estranhas para a menina. Os pais nunca percebem que crescemos. Será que ela acha que estou com medo das máscaras? Que pensamento...

Pensamento estranho a parte, esta fora a primeira vez em que havia sentido uma pontada de bem estar, e, dessa forma, conseguiu levar o restante da noite sem maiores complicações. Em alguns momentos chegou, até mesmo, a experimentar uma certa euforia.

Seus pais caminhavam de volta para casa, e bem atrás, seguia Taís, com um colar de havaiana nas mãos. Já na esquina da residência, encontrou o garoto de roupas coloridas sentado na calçada. Com um impulso irresistível, a menina se viu levada até ele.

-Anda Taís – gritava de longe a mãe.

Ignorando o chamado, a garota de aproximou. A essa altura a irritação não mais tomava conta de seu coração. Ela chegou bem próximo, o garoto trazia em uma das mãos um fio, no qual, na outra extremidade, estava fixada uma bola plástica. Uma daquelas que as crianças batem no chão na época do Carnaval. Em sua outra mão estava um pequeno martelo, também de plástico, cuja extremidade sanfonada emitia um apito engraçado quando pressionada.

Uma peruca metalizada em cor dourada enfeitava a cabeça do menino, e uma máscara de tela, colorida por purpurinas e paetês, lhe escondia o rosto. Porém, ainda assim, era possível notar através dela, uma sutil luz avermelhada. O brilho era bem diferente dos “leds” luminosos das máscaras dos emissários da morte. Era mais insinuante, mais perturbadora.

O mascarado ofereceu sua mão enluvada para ela. A menina, estranhamente, aceitou a oferta. O toque produziu um calor, que levou a um formigamento em toda a extensão de sua pele. Um arrepio na espinha finalizou a experiência. Ela sorriu. O estranho se levantou e começou a caminhar. Taís o acompanhou com o olhar e, em seguida, foi atrás dele. Ela estava feliz, era tudo máscara. As máscaras têm uma função, a verdade nem sempre é óbvia. Ela ignorou seus instintos, e nem percebeu que o garoto não mais usava sapatilhas. As máscaras caem. Taís não notou os estranhos pés caprinos. A farsa desmorona. A menina não se deu conta de que o estranho parecia crescer. Ilusões desfeitas. Se ela pudesse enxergar, notaria a razão pela qual sentia um incômodo nessa época do ano, na Festa Profana. Uma cauda sinuosa e com ponta de seta surgia sem cerimônia.

Taís não gostava do Carnaval, e talvez ela tivesse razão para isso. Talvez este fosse o seu destino, e em mais uma coisa estava certa: ela não teria de agüentar outro Carnaval, porque ela, Taís, nunca mais seria vista.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 27/02/2009
Reeditado em 12/09/2010
Código do texto: T1460200
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