DIVÃ

Meus pensamentos voavam longe, eu tentava erguer a cabeça que estava recostada na confortável poltrona, mas, não conseguia, sentia todo o peso do mundo sobre meus ombros. Naquela posição, quase deitado, a única coisa que de fato ficava fácil, era escorregar cada vez mais no assento de couro. Sobre a palma de minha mão direita estava uma pistola PT100, que talvez fosse a solução imediata para os meus problemas.

Mas, além da falta de força, o desânimo era tanto, que até para erguer o braço, estava difícil. Na mesinha do meu lado esquerdo estava um copo vazio, da mesma forma que a garrafa de whisky. Eu nunca fui de beber, mas confesso que os últimos dias foram terríveis, pesados demais para suportar. Talvez se eu permanecesse embriagado durante todo o tempo, fosse mais fácil. Porém, nem isso eu conseguia, de uma forma estranha o maldito álcool não produzia o efeito que eu queria. O resultado? Ficava tão sóbrio quanto um monge.

Havia menos de um mês desde que a vi pela primeira vez, na verdade essa era a terceira, mas parecia que ela me conhecia há séculos, me conhecia por completo, de uma forma que ninguém seria capaz. Neste instante, ela está posicionada atrás de mim, eu imagino que as palavras que digo não são anotadas em um bloco, ou digitadas em um laptop, mas de alguma forma, são absorvidas por ela, e meus sentimentos são traduzidos de uma forma tão perfeita e direta, que faria inveja a Freud.

Talvez ela tenha desenvolvido um jeito próprio, sabe? Uma maneira particular de lidar com as pessoas que se encontram na mesma situação que estou agora. Como eu disse, os últimos dias não têm sido fáceis, mas nas vezes em que a encontrei, ou que ouvi a sua voz por telefone, eu consegui injetar um pouco mais de ânimo na minha vida, apesar de tudo, apesar da difícil realidade. Sua voz tem a capacidade de anestesiar as minhas inseguranças e faz com que eu enxergue as coisas por um outro ângulo. Mas, quando passa o efeito, tudo vem à tona novamente.

Agora estou aqui. Ela não faz nada para impedir que eu coloque o cano da arma em minha própria cabeça e aperte o gatilho. É uma opção. No entanto, ela faz questão de frisar que não é sempre que temos mais de uma escolha. E eu tenho duas. Uma mais cruel do que a outra. Minhas mãos suam frio, o brilho prateado sobre uma delas se mostra cada vez mais convidativo, encarar de vez ou fugir para sempre?

Tento fazer força para virar o rosto em sua direção, ela segura o meu queixo de forma branda, mas ao mesmo tempo firme, não sei explicar, e impede a minha intenção. A iluminação da sala é suave, a fim de sugerir um relaxamento, mas eu não conseguia relaxar, e ela percebia isso.

Sinto o toque sutil de suas mãos sobre o meu ombro, e aquela voz invadir a minha alma, ela pergunta de forma decisiva qual seria a minha escolha. Escolha? Eu não tinha escolha. Naquela hora eu só me lembro de ter balançado a cabeça de forma afirmativa, sem ao menos ter questionado a outra possibilidade. Abro a mão e deixo cair a pistola, quase que ao mesmo tempo, sinto um toque macio e úmido na pele do meu pescoço, em seguida o toque se tornou áspero, e deixou meu corpo entorpecido.

Um beijo, ou pelo menos foi o que senti, me fez recordar daquela sensação, a mesma que me acometeu nas duas vezes anteriores, mas agora era mais forte, mais...definitivo. Parecia que a minha alma se transferia para ela, não sentia dor, era uma espécie de aflição, agonia, as vezes anteriores foram apenas ensaios para o ato final, o ato que selaria de uma vez por todas a minha vida, o ato que me levaria até a morte. De repente, tudo escureceu.

Quando renasci, minhas dúvidas haviam desaparecido. Não havia medo, receio ou outros sentimentos. Não havia dor ou desespero. Só havia uma necessidade. Só existia aquele impulso que me movia num único objetivo. Feroz e cruel. Intenso e urgente.

Exatos trinta dias se passaram após a reviravolta em meu existir. Durante esse tempo, muitos cruzaram o meu caminho e serviram para aplacar as minhas necessidades, mas somente com uma, aquela sensação estranha, a qual a minha redentora havia falado, me tocou.

Após os dois encontros com ela, me vejo na exata situação em que estive dias atrás, no entanto, com papel invertido. Tento convencer minha escolhida a aceitar as possibilidades de uma nova vida, ela, como era de se esperar, se encontra tomada pelas dúvidas e receios.

Eu queria ter o dom da minha protetora, saber penetrar na alma alheia com tamanha desenvoltura e habilidade. Mas sabe de uma coisa? Nunca fui muito paciente.

Com a velocidade de um pensamento, salto sobre a garota na poltrona de couro e em segundos lhe tiro as dúvidas, os sonhos, a lucidez e todo o sangue. Ela não se tornará uma de nós, mas quem se importa? Há outros peixes no oceano, e eu, o maior dos predadores.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 01/03/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1463900
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