MBOI TATA

Desde que os pés do Velho Mundo chegaram até as terras do que hoje é o nosso país, a questão da propriedade e do direito ao uso do chão se tornou uma guerra não declarada, onde muito sangue foi e é ainda derramado, os sonhos são desfeitos, e os justos interesses que deveriam ser preservados, muitas vezes são colocados de lado, por diversas questões.

Entretanto, mesmo entre os justos, existem aqueles que se infiltram com o objetivo de obter vantagens pessoais em detrimento às necessidades alheias. Não muito tempo atrás, uma enorme área, a princípio destinada ao assentamento de várias famílias, fora, pela ação de fatores, os quais estamos mais do que familiarizados, vendida para um grupo de capital estrangeiro, com um braço “laranja” infiltrado em vários ramos de nossa economia.

As terras ficavam localizadas no Alto Amazonas, terra rica e de vegetação abundante. O objetivo principal seria a exploração irregular do ouro vegetal, a madeira nobre das diferentes espécies de árvores. Mas, além dessa prioridade, os estrangeiros que estavam fixados nas terras, ficaram interessados, e por que não dizer, entusiasmados, com a descoberta de um veio de ouro, numa das inúmeras grutas que se espalhavam pela região, agora dominada por eles.

A dança frenética das toras seculares que eram tombadas e traficadas, atravessando estradas clandestinas na caçamba de imensas carretas, não parava. E a ganância pela busca incessante dos lucros também. Naquela noite especialmente quente, sim, porque as noites são extremamente abafadas naquela região, mas aquela passava dos limites, a ambição estava prestes a extrapolar o seu próprio padrão. Geralmente é na escuridão que os negócios ilícitos são realizados, pois o manto da noite pode ocultar tais ações, ou pelo menos deveriam...

O tempo em que estavam aqui, e a necessidade de interagir com os habitantes locais, fizeram com que eles se habituassem ao nosso idioma. Eles desciam o caminho de pedras que levava até a velha gruta, a trilha não era fácil, mas ao menos se mantinha bem conservada, devido ao recente fluxo intenso e à manutenção constante.

No interior da caverna, as paredes se apresentavam recortadas. Sulcos e fendas produziam desenhos estranhos e variados nas rochas. As pessoas que lá trabalhavam, os locais obviamente, eram vigiados de perto pelos estrangeiros, que se revezavam em turnos. Michael e Stephen chegavam naquele momento para um nova jornada.

Ao redor do lago que ali se localizava, estavam espalhados ossos, que seriam de mamíferos de médio porte, abatidos por um provável predador natural, uma onça talvez. Os homens, pouca ou nenhuma importância davam a esse fato, nada que os rifles não pudessem resolver.

Os explosivos estavam posicionados, em breve teriam mais espaço e possibilidades para obter o pagamento por terem de suportar os mosquitos e a falta de conforto. Logo, um estrondo gigantesco fora ouvido, mas os resultados não foram os que esperavam. Além da energia que alimentava as lâmpadas, produzida pelos geradores, ter sido cortada pelos destroços. A entrada da caverna fora parcialmente bloqueada por um desmoronamento.

Vários feixes de luz, emitidos pelas lanternas, se cruzavam, e rostos assustados surgiam iluminados por eles. Um ruído horrendo ecoou, e pareceu aumentado pela acústica local, não era o som de uma nova detonação de explosivos, ou do desmoronamento. Era algo diferente, inexplicável e perturbador.

Uma luz azulada brotou no centro da lagoa, quase ao mesmo tempo em que a terra tremeu sob seus pés, os ribeirinhos iniciaram um grito coletivo, a luz serpenteava sob o espelho d’água.

- Quietos! – bradava Stephen com sotaque carregado, enquanto disparava para o alto.

- Isso é fogo fátuo – argumentava Carlos, um dos “laranjas” , referindo-se à inflamação espontânea causada pela decomposição orgânica.

- Não ter medo, não correr – gesticulava Michael, encoberto pela penumbra, e com um português pior do que o do amigo.

Eles não sabiam que estavam tão errados, o medo seria um sentimento genuíno naquela situação, e eles descobririam da pior forma possível.

A luminosidade aumentava intensamente, era como se milhares de pessoas tirassem fotografias ao mesmo tempo, inundando o ambiente com um mar de flashes. A luz veemente, que queimava em brasas azuis, cegava a todos, fazendo com que perdessem completamente a noção de espaço.

O calor era insuportável, muitos caíram na água, pois estavam desorientados, seus corpos foram cozidos nas águas escaldantes. Os gritos se multiplicavam, um dos trabalhadores tentou correr à própria sorte, algo o derrubou, viu um clarão, mas fora a última coisa, pois seus olhos foram sugados das órbitas. O mesmo aconteceu com vários outros, tiveram os olhos arrancados por alguma coisa que se movimentava com a velocidade do vento. Os buracos abertos na face das vítimas foram preenchidos por um jato viscoso e fervente, e como um ácido corrosivo, este líquido derreteu os tecidos internos e os órgãos, reduzindo-os a uma massa pastosa.

As águas se agitavam, como se algo realmente grande estivesse se locomovendo ali, o som característico de mergulhos era ouvido, e fazia concorrência com o ruído perturbador de ossos sendo partidos. Partes de corpos voavam pela gruta, embora fosse impossível enxergar algo. Um pequeno grupo conseguira se afastar do lago, e quase ao acaso, os homens sentiram um leve frescor, causado pelo ar que escapava pela fresta entre os escombros. Por mais incrível que possa parecer, o vão escuro se destacava em meio àquele inferno de luz azul, e servia como objetivo a ser alcançado.

Entre os que seguiam na direção da estreita abertura, estavam os estrangeiros, e o intermediário local. Corriam. As armas ficaram pelo meio do caminho. Um silvo extremamente agudo e sibilante precedeu um estrondo que fez a terra tremer novamente. A luminosidade diminuía ao mesmo tempo em que mudava de cor, um tom mesclado de amarelo, laranja e vermelho se aproximava com movimentos sinuosos, levantando algumas pedras do chão e fazendo outras desabarem, oriundas do teto da caverna. Um retardatário tropeçou, e ao virar para trás não teve tempo de se desesperar mediante a ameaça que surgia. Um rocha imensa selou seu destino.

O que seguia logo à frente, fora acometido por uma sorte diferente, mas igualmente dolorosa, seus olhos puderam visualizar todo o horror contido naquele ser. O calor que emanava de seu corpo fez o homem perder a vontade de fugir. Naquele momento, ele percebeu que seria inútil. Ao menos gritar ele podia, e assim o fez, ao sentir seus glóbulos oculares saltarem para a enorme língua bifurcada. Não teve tempo de sentir muita dor, pois a morte promovida pelas chamas e abraço fatal, fora instantânea. Seu corpo carbonizado e de ossos triturados, fora atirado para o lado, como muitos outros naquela noite.

Ele não estava satisfeito, queria o sangue daqueles que profanavam seus domínios. As rocha que despencavam e matavam os fugitivos, eram removidas de seu caminho como se fossem meros adereços em um cenário produzido para sua atuação.

Michael e Stephen já estavam fora da gruta, Carlos ainda se esgueirava pela estreita abertura. Apenas a metade de seu obeso corpo havia vencido a fenda. De uma forma até surpreendente, os estrangeiros tentavam puxar o desesperado homem pelos braços. Carlos sentia um crescente calor se aproximar de suas pernas.

- Puxem, puxem pelo amor de Deus! Não me deixem aqui! Não me deixem! Ahhhhhhhhh!!!

A dor que originou aquele grito deve ter sido algo sem precedentes. Esse foi o pensamento dos forasteiros, pois nunca na sua terra natal, no Missouri, nem em suas andanças pelo mundo, nem mesmo em seus pesadelos, eles jamais viram uma expressão como aquela que marcava o rosto do homem.

Os dois foram ao chão, a resistência causada pelo obstáculo desaparecera, ainda seguravam os braços de Carlos, mas ao olharem para ele, perceberam que este não mais possuía pernas. Seu corpo fora partido na altura da cintura. Vísceras e sangue se espalhavam.

Tomados pelo pânico, iniciaram uma corrida desabalada pela selva. Não ousaram olhar para trás, mas se o tivessem feito, notariam um imenso rastro de fogo vivo seguindo em seu encalço.

O desespero e a pressa são fatores que não combinam, e os tombos e cortes causados pela vegetação eram as provas disso. As chamas estavam em todas as direções, para onde olhassem, não percebiam mais o verde característico, apenas as labaredas que ardiam e tomavam tudo de uma forma veloz, tão rápido quanto um rastro de gasolina ao contato com um palito de fósforo aceso.

Um círculo imenso de fogo ao redor da dupla. Não havia para onde fugir. Talvez eles nunca tivessem imaginado morrer daquela forma, incinerados numa floresta tropical, um local que eles escolheram para explorar até a última gota.

O círculo se convertia em um espiral, o ser incandescente serpenteava rapidamente, fechava o cerco, eles estavam sendo cozidos vivos, desejavam uma morte rápida, mas esta não vinha, imploravam para que tudo acabassem, mas ele queria prolongar o sofrimento e a agonia de suas vítimas, esse seria o preço a ser pago pelos seus pecados.

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A rede de televisão transmitia ao vivo, com imagens geradas a partir da câmera operada de dentro de um helicóptero. O incêndio iniciado na madrugada, de forma repentina, destruía a imensa propriedade, que havia, de forma ilegal, invadido áreas de preservação ambiental. A repórter achou que seus olhos lhe pregavam um peça, pois ela poderia jurar ter visto um imenso rastro de fogo serpentear e desaparecer no meio da floresta.

Não muito distante de onde o fogo ardia, um indígena falava para um pequeno curumim:

- “Mboi Tata”.

Este conto foi concebido por sugestão do escritor e meu amigo, aqui do Recanto, Victor Meloni.

O folclore brasileiro é rico em estórias e lendas que se enquadram perfeitamente na literatura do terror. Basta apenas olharmos com um pouco mais de atenção para eles.

Tenho outros contos, publicados aqui, que são baseados nesse seres, caso se interessem, não deixem de ler:

"SUZANA" ; "A ACUSAÇÃO"; "O DEMÔNIO DO REDEMOINHO"; "ORIGEM DO MAL"; "MARCAS NO CHÃO, GRITOS NO AR"; "A CANÇÃO PROIBIDA"; "INOCÊNCIA ROUBADA" e "UM ROSTO ENTRE AS CHAMAS".

Um abraço a todos,

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 04/03/2009
Reeditado em 03/11/2009
Código do texto: T1468615
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