A GAROTA PERDIDA NA CHUVA

Girou o registro e deixou cair a água do chuveiro sobre seu rosto. Ela escorria fria pela sua pele, mas mesmo assim, sentia a temperatura diferente, bem mais quente, talvez devido à memória recente do estranho pesadelo que ainda martelava em sua cabeça. Como poderia ter sido tão real? Como poderia ter sentido a angústia vivida por aquela mulher?

Precisava esquecer, mas estava difícil. O banho que deveria trazer o relaxamento necessário para encarar a jornada noturna no trabalho fazia justamente o contrário, o transportava para dentro daquele carro, para perto daquele inferno.

A mulher dirigia por uma estrada cercada de muros altos, uma chuva fina começou a cair de forma repentina, pois o sol brilhava até minutos atrás. Poucos veículos a acompanhavam naquele trajeto.

De forma ainda mais surpreendente, as gotas da garoa tornaram-se espessas, o céu se fechava, transformando em noite fechada aquele final de tarde. O som produzido na lataria do carro já superava o do rádio, justo no momento em que este simplesmente parara de funcionar.

As lâmpadas dos postes estouraram, uma a uma, como uma fila de dominós tombando. A estrada se tornara um breu completo, as luzes dos faróis pareciam perder a força, o volume de água derramada sobre o pára-brisa era imenso. Àquela altura, já guiava às cegas. O asfalto se convertia em rio, ela já não conseguia visualizar as curvas, buscava se orientar pelo único carro que seguia à sua frente, mas até nisso encontrava dificuldades, a luminosidade das lanternas na traseira do veículo, pouco a pouco se tornava mais opaca, e foi fraquejando até desaparecer por completo. Estava só, ninguém atrás dela, ninguém à frente.

Para seu desespero, o inevitável aconteceu, o motor do carro parou de funcionar, e o que era pior, a água começava a invadir o interior do veículo. Ela gritava, buscou o aparelho celular, inútil, nenhum sinal. Não havia escolha, ela precisava sair, ficar ali significaria morrer. Abriu o vidro, pois a força da correnteza impedia que abrisse a porta. Com muito esforço, e agradecendo por ser esbelta, conseguira chegar até o teto do veículo.

A chuva caía sem piedade, chegando a machucar a sua pele, o odor que alcançava suas narinas era forte, pesado, lembrava amônia, e a água era quente, estranhamente quente.

O nível subia mais e mais, sentia-se numa ilha preste a desaparecer, sobrepujada pela poder do oceano. Suas lágrimas se mesclavam àquela água fétida, seus olhos nada enxergavam até aquilo surgir. Ela esfregou as mãos sobre o rosto a fim de tirar o excesso do líquido, e, talvez, se certificar de que não estava tendo uma alucinação.

Como se surgisse do interior da terra, naquele caso, de dentro d`água, uma estranha figura caminhava em sua direção. Conforme a criatura se movimentava, ondas surgiam, produzidas pelos seus passos. Ela não sabia o que era aquele ser, mas de uma coisa tinha certeza, fornecer ajuda não era o seu objetivo.

Quanto mais a figura se aproximava, mais o pânico tomava conta da mulher. E no ápice deste pânico, ela decidira tomar uma atitude drástica e desesperada. Se tivesse que morrer, não seria pelas mãos daquilo. Pulou na direção das águas, na esperança de que a correnteza pudesse arrastá-la dali e fornecer-lhe uma morte menos sofrida da que imaginava ter sob o jugo daquela criatura.

Sentia seu corpo subir e descer, estava à mercê da força das águas, sua pele dilacerava pelo contato com o asfalto, batia a cabeça em pedras e nos galhos derrubados pela chuva. Engolia água e tentava se agarrar em suportes que não existiam. Perder a consciência seria questão de tempo, mas algo a trouxe de volta a realidade.

Puxou com vontade o ar para os pulmões e abriu os olhos. A visão lhe causou náuseas e desânimo. A criatura a segurava. Sua pele era úmida, mas não pelo fato de estar chovendo, ela apresentava uma característica pegajosa e repulsiva. Seus olhos eram brancos, sugerindo a cegueira. Não localizava um nariz naquele rosto, apenas dois orifícios. Apresentava ainda uma boca perfeitamente redonda, desprovida de lábios, onde um sorriso permanente de dentes afiados e curtos era mostrado. Não possuía um só fio de cabelo, e foi justamente por este quesito, os cabelos, que ela fora arrastava pelas águas.

Olhava para o céu que começava a abrir, teve a impressão de ter visto uma estrela, antes de encontrar a escuridão e começar a ouvir o bipe, o som do despertador que o acordara.

Ainda pensava sobre o terrível pesadelo enquanto dirigia para o trabalho noturno. Trabalhar nesse horário tinha suas vantagens e desvantagens, pensava ele, e um dos inconvenientes era viver na contramão da maioria das pessoas. E contramão era o que surgia diante dele, pois um guarda o orientava a seguir por uma rota alternativa, porque o seu caminho rotineiro estava interditado para obras emergências, tudo para amenizar os estragos que a chuva costumava fazer. Que coincidência infeliz!

Dois quilômetros à frente encontrou outro obstáculo, um caminhão do corpo de bombeiros e várias viaturas policiais estavam bloqueando a estrada, e uma estranha sensação de dèjavu o atingiu no mesmo instante em que os trovões e relâmpagos se faziam acontecer.

Desceu do carro e sentiu as primeiras gotas da chuva. Avistou ao longe um acidente entre três veículos. Viu também um poste tombado. A chuva apertava e uma força o ordenava, ele precisava correr, e assim o fez. Disparou para o meio da turba, ouvia uma voz enquanto a água quente e fétida queimava a sua pele. Girava a cabeça em todas as direções, chamando com isso a atenção de todos. Ele precisava achar, precisava mais do que tudo.

Deparou-se com um bueiro cuja tampa estava entreaberta. Com toda a força de seus músculos retirou a tampa, que lhe pareceu desproporcionalmente pesada. Enfiou a cabeça pelo vão, enquanto as pessoas o cercavam. Achou o que procurava. Dois braços erguidos pareciam suplicar por ajuda. Fazendo uso de mais força ainda puxou a mulher pelos braços, depositando-a no chão.

Estava exausto, passou a mão direita sobre o rosto e se espantou, estava seco.

Assustado olhava para tudo e para todos. Não chovia. As estrelas brilhavam no céu. Procurou a mulher no chão, e ela estava lá. Morta. Não havia olhos em seu rosto, apenas as órbitas vazias e negras.

Os outros motoristas, os passageiros, os bombeiros, os policias, no rosto de todas as pessoas ele enxergava apenas uma coisa: o tom da acusação.

Um dos homens da lei se aproximou, sacou a arma e lhe disse: Você está preso.

E desta forma ele foi levado dali, sem dizer uma frase que fizesse sentido, e isso era tudo o que precisava encontrar. Sentido. Pois existem coisas que não possuem explicação. Existem muitas coisas que a água não consegue lavar.

* Amigos, leiam também, "Imanente", do escritor e amigo, Victor Meloni. As histórias se encontram de uma maneira bastante interessante. Boa leitura, e um abraço a todos,

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 15/03/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1487198
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