A FERA DA PRAIA

Não senhora, não vendemos medicamentos controlados sem receita médica – sentenciou do outro lado da linha a vendedora da farmácia.

Já era a terceira tentativa frustrada naquela manhã. Raquel tremia enquanto acendia mais um cigarro, ela não estava bem, não estava nos últimos três meses, uma licença médica a tirara do trabalho, estava mergulhada nos antidepressivos, antipsicóticos, toda sorte de comprimidos. Mas nada fazia efeito, sentia-se vazia, e a lembrança de satisfação plena era tão recente na sua memória, não se lembrava como, nem onde, mas sabia que já tivera o que estava buscando agora.

Ela suspirou e observou a fumaça de seu cigarro subir, um espiral acinzentado e triste. Na casa escura, sua melancolia ficava mais evidente, embora o céu lá fora estivesse azul e o sol brilhando, dentro de seu lar e de seu coração tudo era negro.

Já pensara em suicídio, porém não tinha coragem para isso, não tinha coragem para nada. Seu médico já não ajudava, desconfiava que os remédios que ele lhe dava não passavam de placebo, não conseguia novas receitas para comprar diretamente.

Não tinha ajuda, não sabia o que fazer, não tinha família na cidade, sem amigos, com exceção da Márcia, a única que restara e que se preocupava, era só ela.

Ela tinha a sensação de encontrar a paz em alguns momentos, quando foi isso mesmo? Será que estaria perdendo o juízo? Era difícil dizer, seu mundo era só aquele, não sabia distinguir com clareza o que era real ou não, raramente saía de casa, para ir ao banco pegar dinheiro, comprar comida e outros afazeres, era sempre a Márcia que se ocupava, ela só se preocupava mesmo em pegar os remédios, para mais o que? Não lembrava, sua memória era tão turva quanto a fumaça do cigarro que acabava em sua mão, tragou mais uma vez, pegou o copo de café que estava sobre a mesa, já estava frio, mas quem se importava? Ela não, acendeu outro cigarro, pegou o pote, abriu e despejou o conteúdo na palma da mão esquerda, ficou frustrada, três cápsulas apenas, pequenas, metade azul, metade branca, já nem sabia para que serviam, não importava, colocou-as na boca e as engoliu com a ajuda do café.

Precisava sair para encontrar o Dr. Hugo, ele teria de dar mais remédios para ela, por bem ou por mal. Levantou, caminhou até o banheiro, olhou-se no espelho do armário, quem era aquela? Ela não se reconhecia mais, os cabelos desgrenhados não combinavam com a mulher vaidosa que já fora, o pescoço arranhado denunciava os momentos de perda da razão, que eram freqüentes ultimamente.

Abriu a torneira e deixou a água fluir, ficou observando e refletindo, como era possível estar assim? Ela já teve várias pessoas sob sua orientação e supervisão, como não conseguia agora comandar a sua própria vida? Encheu as duas mãos com a água gelada e jogou em seu rosto na tentativa de acordar, ela estava decidida a fugir, não sabia o caminho a seguir, mas sabia o transporte, ela embarcaria no trem em forma de pílulas, que a levaria ao maravilhoso mundo alucinógeno, onde tudo era bom, tudo dava certo, sem preocupações, sem dúvidas e medos.

Ela veria o Dr. Hugo. Correu até a sala, pegou sua bolsa e atravessou a porta sem se preocupar em fechá-la, cruzou o pequeno quintal como se o mundo fosse acabar, na entrada do portão encontrou Márcia, que chegava com uma sacola na mão.

- Raquel, você está indo para onde? Já tomou café? Passei rapidinho na feira, trouxe umas frutas...

- Agora não posso, Márcia, tenho que correr...

- Vai ao médico de novo, né?

- Preciso ir.

- Não precisa não, Raquel, mas não conseguirei te impedir mesmo, vou deixar suas frutas lá dentro, vê se come alguma coisa, se precisar de mim liga para o meu trabalho, deixarei o número junto das frutas caso você tenha esquecido, se cuida.

Raquel atravessou o portão e ganhou a rua sem olhar para trás, enquanto sua amiga, única amiga, suspirou e caminhou até a porta de entrada, deixou as frutas sobre a mesa, e um cartão com um número de telefone fixo e um de celular. Antes de sair, ela não pôde deixar de notar a completa desordem na qual a casa da amiga estava mergulhada, ela precisava combinar com a diarista de dar uma passada lá para dar um jeito na situação, pelo menos Raquel tinha uma pessoa que se preocupava com ela.

Márcia administrava os gastos da amiga, que recebia um bom dinheiro do trabalho, apesar de estar afastada, e se não fosse Márcia a zelar de forma honesta por ela, o caos seria ainda maior. Márcia cruzou a porta e assegurou de trancá-la. Foi para o trabalho.

A essa altura Raquel já estava distante, andava depressa, já havia contornado a orla e alcançava a praça principal, local de vários bares e lanchonetes, algumas pessoas saiam, era estranho numa manhã de dia útil ver alguém saindo de um bar, provavelmente não teriam algo importante para fazer, ela teria, uma missão importantíssima, teria de pegar o trem, precisava viajar o mais rápido possível, e o bilhete estava na mão do Dr. Hugo.

Enquanto Raquel passava, um homem era carregado para fora de um dos bares, ela olhou rapidamente e não deu importância, ela não sabia, mas aquele homem estava numa situação tão difícil quanto à dela. Ele fora colocado em um dos bancos da praça, seu pescoço tombava para trás, fazendo com que visse o mundo de cabeça para baixo, pessoas andando apressadas, ônibus cheios, carros buzinando, estava completamente embriagado, situação comum nos últimos meses, sem emprego, a esposa e os filhos haviam partido. Quem passava por ele expressava um misto de asco e pena.

Ao fundo dessa cena, observando a mulher, estava um estranho homem. Trajava uma calça jeans e uma camiseta preta, em cada mão segurava uma alça que se conectava até as coleiras de dois cães enormes da raça fila. Os animais permaneciam sentados, completamente imóveis, como que aguardando algum comando de seu dono, por trás de seus óculos escuros o homem captara todos os passos de Raquel desde que ela havia saído de casa a caminho da clínica.

Agora, permanecia impassível enquanto a mulher ganhava a entrada do edifício. A atenção dos cães fora quebrada pelo movimento desconcertado do homem despejado no banco da praça, este havia executado um esforço tremendo para se levantar, ensaiou uns desajeitados passos e colocou-se a caminhar, parou em frente à rua e continuou em seguida, sem se importar com o semáforo, os veículos foram obrigados a parar bruscamente para não jogar o homem pelos ares, este, como se estivesse na mais completa razão ainda reclamou com os contrariados motoristas.

Chegando ao outro lado da pista, ele foi obrigado a passar em frente ao estranho observador, os cães iniciaram um rosnado, atitude que surpreendeu o dono dos animais, pois isso não era comum aos treinados filas, curioso ele movimentou lentamente a cabeça na direção do embriagado homem que continuava sua jornada em direção ao lar usando as paredes como escora.

Com dois leves puxões nas coleiras, os bichos imediatamente foram contidos e retornaram à posição habitual. O bêbado seguiu seu caminho, mas fora reparado em cada detalhe pelo observador, altura e peso aproximados, roupas, cabelos e tom da pele, a fisionomia fora registrada como em uma fotografia pelo cérebro do estranho homem. Logo que perdeu o interesse pelo sujeito, o observador voltou toda a sua atenção para o prédio em frente, o motivo da sua vigília ainda estava lá.

Raquel havia passado pelo hall de entrada do edifício como uma bala, o porteiro apenas acompanhou com um olhar a passagem da apressada mulher. Ele já sabia para onde ela se encaminhava. Ignorando o elevador, ela tratou de subir as escadas o mais rápido que pôde, seriam três andares, fáceis de serem vencidos, chegando ao terceiro piso dobrou a direita, a sala 302 era seu destino, chegou à porta e tocou a campainha, do outro lado, uma jovem levantou-se da mesa de recepção e olhou pelo visor, ficou desanimada, era tudo o que não queria numa manhã de segunda-feira, suspirou e abriu a porta.

- Bom dia Dona Ana Raquel – cumprimentou a jovem com um sorriso mais que forçado.

- Preciso falar com o Dr. Hugo...- retrucou de forma ríspida.

- Ele está atendendo uma paciente com HORA MARCADA.

- Juliana, eu sei muito bem que não tenho hora marcada, mas o doutor me atende assim mesmo, é uma emergência.

- Entendo, mas a senhora terá de esperar...

- Você pode avisá-lo que estou aqui? – perguntou de forma agressiva e impaciente.

- Tudo bem, mas a senhora sabe que não pode fumar aqui dentro - advertiu a recepcionista quando percebeu que Raquel preparava-se para acender um cigarro.

- Você não sabe como estou, não sabe o que estou passando, me faz esperar e ainda não me deixa aliviar a tensão?? Escute aqui Juliana você já está me aborrecendo...

- Faz o seguinte Dona Ana Raquel, eu deixo a senhora ficar ali fora na varanda para fumar, está bem assim? Também não pode, mas como não tem mais ninguém aqui podemos dar um jeito. Que tal?

- Está bem, então.

As duas caminharam até uma porta dupla de vidro, Raquel entrou na pequena varanda com vista para a praça, finalmente acendeu o cigarro e tentou se acalmar enquanto aguardava o Dr. Hugo. Juliana suspirou novamente e voltou para sua mesa, pensou consigo mesma que não ganhava o suficiente para aturar esse tipo de situação, não era sua atribuição, comentaria com o doutor que precisava de um aumento. Apertou uma tecla vermelha no telefone.

- Dr. Hugo, a senhora Ana Raquel está aqui para vê-lo, ela está bastante nervosa.

- Ok Juliana, assim que eu terminar aqui, mande-a entrar imediatamente.

Sem ter consciência de que estava sendo observada, a transtornada mulher tragava seu cigarro como se a fumaça que entrava em seus pulmões fosse a essência que a mantinha viva. Abaixo, próximo a uma banca de jornal, um homem e dois cães mantinham a atenção para a sacada do terceiro andar. Raquel já se imaginava longe das angústias e aproveitando a viagem para a terra das maravilhas. Fora interrompida subitamente...

- Dona Ana Raquel, a senhora já pode entrar.

Raquel esboçou um raro sorriso ao ouvir as palavras da recepcionista, jogou o cigarro pela sacada e entrou pela porta de vidro.

- Muito bem, Raquel, o que está acontecendo dessa vez? – perguntou o médico, um senhor de uns sessenta e poucos anos, cabelos e barba grisalhos, expressão carrancuda por trás dos óculos de armação de metal, a impressão era logo desfeita quando o doutor começava a falar, o modo suave com o qual emitia as palavras contrastava com a aparência do velho.

- Doutor – começou Raquel – o senhor sabe muito bem que esses últimos medicamentos não estão fazendo o efeito que deveriam, o que andei tomando de verdade? Eu não estou bem...

- Você tomou o remédio que deveria tomar, e a essa altura já deveria, inclusive, estar livre deles.

- Eu não acho, quase não tenho encontrado o que busco, tenho medo de fazer alguma besteira por causa disso...

O médico, de fato, sabia o fundamento de tudo.

- Muito bem, Raquel, você me dá um minuto? Já volto...- falando isso o médico se levantou e dirigiu-se a uma parte reservada do consultório, apertou uma tecla no aparelho telefônico que estava sobre uma pequena mesa.

- Juliana, por favor, me ligue com a matriz...- a recepcionista teclou uma seqüência de números, completou a ligação e transferiu-a em seguida.

- Alô... doutor? Aqui é o Hugo, sim está tudo bem...estou ligando para falar sobre a paciente Ana Raquel Medeiros, ela está sofrendo os efeitos colaterais...sim, com esse intervalo o organismo dela está sentindo falta...temo pelo pior, aconselho a retomada dos medicamentos...pode ser de uma forma mais controlada. Claro...anoto a escala sim...ok...sem problemas, aguardo o envio hoje sim...pessoalmente, com certeza...obrigado, até logo.

Finalizada a conversa com a matriz, o médico retornou para sua mesa onde uma impaciente Raquel o aguardava, apertando a parte de trás do pescoço, de forma que chegava a marcar com suas longas unhas.

- Muito bem, Raquel, façamos o seguinte, você iniciará uma forma mais intensa no tratamento, de forma que para garantir o cumprimento à risca dos horários, você receberá o medicamento aqui mesmo no consultório, ao invés de tomá-lo por conta própria, com isso você deve estar aqui pontualmente às dezoito horas hoje, certo?

- Mas, doutor, eu preciso do remédio agora, eu não agüento mais...

- Agüenta sim, não tem jeito, é isso ou nada. Você volta para casa, passa o dia quieta lá, e volta mais tarde, você quer um calmante enquanto isso para ajudá-la a esperar?

- Não tenho escolha, tenho?- retrucou indignada a mulher.

Após receber diretamente na veia uma dose do medicamento, Raquel rejeitou um táxi e preferiu ir andando para casa, ela julgava que não faria efeito, obviamente. Desceu as escadas, não olhou para o porteiro e tomou o rumo de casa.

O homem dos cães acompanhou de longe os passos velozes da moça, que desta vez não seria seguida.

Em casa...

- Raquel, Raquel...você está bem? – a voz de Márcia entrava pelos seus ouvidos, mas ela achava que estava sonhando...

- Hei, menina, acorde, o que está havendo?

Raquel como despertando de um transe, abriu os olhos e ergueu o tronco...

- Puxa, já estava preocupada com você? Não é de dormir, ainda mais a essa hora...

- Que horas são, Márcia? – O tom da voz na pergunta, soou para Márcia de uma forma límpida, como há muito ela não escutava.

- São quinze para a meia-noite, passei pela sua porta e a vi aberta, fiquei com medo e vim aqui te ver...está tudo bem?

- Está sim, Márcia, quando retornei da segunda visita ao doutor Hugo, me deu um sono terrível, mas estou melhor agora, aliás, estou ótima, meu corpo está meio elétrico...

- Está sob efeito de remédio de novo não é?

- Sim, mas está diferente, estou meio eufórica, preciso sair...

- Como assim “sair”? Não é bom você sozinha a essa hora na rua, está louca? As ruas estão perigosas, sabia? Eu morro de medo, pode sossegar aí no seu canto...

- Nada disso, Márcia, preciso sair, há muito tempo não me sinto tão bem, quero andar, ver a praia, respirar um pouco, eu sinto aqui dentro de mim, aqui na minha cabeça, eu preciso ir, feche a porta para mim quando sair, tchau.

Sem esperar uma resposta e sem pegar sequer a bolsa, Raquel saiu, deixando Márcia com uma expressão de quem não sabia o que pensar, era perigoso de fato sair sozinha àquela hora, mas não via a amiga assim, tão lúcida, desde o incidente no trabalho, e o que era mais impressionante, ela pediu para fechar a porta. Rindo sozinha, Márcia saiu, colocando as chaves no jarro de plantas, antigo esconderijo, tomara que ela lembre, pensou.

Raquel caminhava pelas areias da praia, o vento batia em seu rosto, fazendo seus cabelos desgrenhados balançarem, aos poucos, bem aos poucos, foi sentindo sua consciência deixar seu corpo, a sensação que experimentava era de que podia observar-se como se não estivesse em seu próprio corpo, cada passo que dava era executado de forma mecânica. Que raio de remédio era esse? Pensou. Suas mãos estavam dormentes, sua mente nas nuvens, ajoelhou-se nas areias úmidas, deixando a água poluída da praia tocar seu corpo, estava tudo tão pesado...jogou a água salgada em seu rosto, tentando acordar.

Duas Raquéis, sim estava claro para ela, uma feliz que observava a outra tentando se manter acordada, era uma luta. A feliz venceu. Raquel colocou-se de pé e gritou, estava de volta ao mundo.

As ruas estavam quase vazias, quase porque o grito chamou a atenção de um homem e dois cães, que estavam em uma pick up estacionada na orla. O estranho visualizou aquela mulher na praia, ele a conhecia, a seguira naquela manhã, a bem da verdade. O que ela fazia ali? Pensou. Mas a resposta para essa pergunta ficaria para depois, porque uma figura aproximava-se da mulher, que alheia ao fato, continuava a falar consigo mesma, os quiosques da orla estavam fechados, ninguém para alertá-la, as lâmpadas da praia queimadas, para variar, o breu era um convite a assaltos, mas a figura que se ocultava nas sombras não era uma assaltante, era uma outra coisa, e o observador sabia o que era, já tinha visto aquilo antes.

O mais rápido que pôde, abriu a porta, agarrou um fuzil e uma espada, que ficava embainhada e presa a uma alça e colocou-a nas costas, abriu a porta traseira e ordenou:

- Bóris, Dóris, ataquem! – Os cães filas saíram em disparada, a moça percebeu a corrida dos animais e virou o rosto, e o que viu fez seu sangue gelar, uma figura grande e escura aproximava-se dela, os dentes grandes e brilhantes destacavam-se na escuridão.

Sem pensar duas vezes, Raquel colocou-se a correr, e de uma forma bem ágil, a julgar pelo fato de tratar-se de uma pessoa debilitada, a fera abaixou-se com as quatro patas no chão e iniciou a perseguição, a moça ganhara uma boa distância, mas a besta ganhava velocidade, saltou apontando suas garras em direção às costas da mulher, porém antes que pudesse alcançar o alvo, fora atingido no pescoço por uma mordida feroz. Bóris, o enorme fila cravou os dentes na fera enquanto Dóris a jogou no chão, fazendo uso de suas patas, que foram projetadas através de um salto e atingiram a besta no tórax.

Pouco se via na escuridão da praia, com exceção de dois pontos que brilhavam em dourado. Os olhos do ser expressavam fúria. Uma mão poderosa e provida de garras afiadas agarrou o pescoço do cão e o atirou para longe. O animal bateu com o dorso das areias úmidas da praia. A cadela não se intimidou com o ataque proferido pela fera a seu companheiro, ela latia e rosnava de forma raivosa enquanto o ser bestial permanecia plantado à sua frente, balançando os longos braços de forma desafiadora.

Dóris, com as patas dianteiras um pouco mais baixas, executava pequenos saltos para frente, como ameaçando um ataque, seus pêlos estavam eriçados, os dentes à mostra exibiam um brilho metálico quando banhados pela luz do luar. Paralelo a isso, o homem chegava próximo ao local onde o combate se realizava, seu caminhar era difícil nas areias, Raquel já se distanciara bastante dali.

Finalmente ficou frente a frente com a besta, o som emitido pelo ser era perturbador, atrás da fera, Bóris já estava de pé novamente, o que não passou despercebido por ela. Agora ela estava cercada, o homem e os dois cães colocavam-na no centro. A besta ameaçou um ataque, porém teve como resposta um tiro certeiro no peito, emitido pela arma do homem, o impacto a fez cair no chão arenoso, no entanto antes que algo mais acontecesse, ela já estava de pé novamente, como se nada tivesse acontecido, a não ser pelo fato de estar mais furiosa.

Os cães saltaram simultaneamente, cada um agarrando com as mandíbulas um dos braços do ser, jogando-o novamente ao chão. Aproveitando-se da oportunidade, o homem disparou várias vezes contra o ser caído, atingindo-o no tórax, pescoço, cabeça, disparou até ouvir o clique da falta de munição. Poucos danos foram causados, os cães voaram pelo ar, a fera pôs-se de pé, o homem sacou a lâmina afiada, o braço esquerdo da besta girou no ar, as garras passaram raspando a cabeça do homem que providencialmente desviara do ataque, porém não teve a mesma velocidade para esquivar-se do ataque proferido pelo outro braço, as garras arranharam-no levemente o peito, mas de forma suficiente para jogá-lo às areias, abrindo quatro valas em seu tórax, logo as feridas verteram o líquido vermelho.

Apesar do golpe bem executado, a fera desistira de atacar o homem, saltando por cima dele e saindo em disparada através das areias. Mais uma vez, os valentes animais correram em seu encalço. O homem se levantou, recolheu a fuzil sem balas, colocou a espada de volta à bainha e correu em direção à pick up.

A fera cruzou rapidamente a faixa de areia, ganhando o asfalto da avenida que margeava a praia. Os cães, incansáveis, seguiam-no de perto, o homem aproximava-se do veículo, não havia mais visto a mulher vítima do ataque da fera, mas isso não importava agora, sabia que ela deveria estar escondida.

Subiu a pequena escada que dava acesso à calçada pulando os degraus de dois em dois, jogou a arma descarregada na caçamba do veículo, entrou e deu partida no motor. A essa altura a besta já chegava ao final da rua, a qual estendia-se num suave aclive e dobrava à direita, em direção a várias residências de classe média-alta.

Lugar errado e hora errada, essa frase poderia ser aplicada com perfeição à situação experimentada pelo casal que descia a rua em um automóvel ao encontrar-se com aquele ser monstruoso galopando em sua direção. A reação automática de pisar do pedal do freio não impediu o choque, a fera fora jogada ao ar, mas ao cair, o fez sobre as quatro patas, diante do danificado veículo.

O casal envolvido pelo duplo airbag, não tinha a menor noção do que era aquilo. O ser caminhou sobre duas patas ao lado da porta do motorista, quebrou o vidro e agarrou o pescoço do pobre rapaz, puxando-o em seguida através da janela quebrada. O monstro ergueu o homem usando para isso apenas um dos braços, as pernas do rapaz debatiam-se no ar, a fera rugiu e com um golpe poderoso e preciso, fez uso de suas afiadíssimas garras para separar a cabeça do pescoço do desafortunado homem.

A moça, ainda no interior do veículo, chorava desesperadamente assistindo à bizarra cena e sentindo seu fim iminente. A porta fora arrancada e a mulher agarrada e puxada para fora, diferentemente da praia, o local era privilegiado pela luz elétrica, fato que seria lamentado pela moça, visto que seus olhos puderam testemunhar o horror personificado, era possível notar que três pares de uma espécie de estrutura óssea projetavam-se das costas do ser bestial, seguindo paralelas, a partir das omoplatas até a cintura.

Para infelicidade da mulher, a fera fez uso desses espinhos para prender-lhe às suas costas, as lanças ósseas foram manipuladas para cravarem-se nos braços, quadris e pernas da moça, deixando-a totalmente atada à retaguarda da besta. Após prender a jovem, o demônio colocou-se novamente a correr, no exato momento em que os cães saltavam para alcançá-lo.

Frustrados na investida, os cachorros continuaram a perseguir o ser, que agora carregava uma mulher como se fosse uma mochila.

Mais abaixo, uma pick up negra rasgava o asfalto em alta velocidade. A besta contornou à direita, saltando sobre quatro patas em direção às casas de luxo, o veículo fez uma meia parada e o cachorros pularam para dentro da caçamba, acelerou em seguida.

A estrada era longa, cercada de árvores frondosas em um lado , apesar da força do motor, o veículo não conseguiu acompanhar os passos da fera, que fazendo uso do caminho entre a vegetação, simplesmente desapareceu.

Mas, com uma coisa o estranho poderia sempre contar, com a ajuda de seus fiéis amigos. E já com a arma recarregada, se embrenhou na mata, seguindo os cães que farejavam o odor forte e característico do fugitivo.

Desceram por um barranco que terminava justamente nas areias do lado oposto da praia.

Oculta pela vegetação fechada, estava uma construção de dois andares, provavelmente pertencia a algum ricaço que poderia bancar uma residência naquele local privilegiado, sim, porque do lado urbanizado da orla era praticamente impossível visualizar a casa.

O estranho seguiu com passos moderados, o faro dos animais o guiara diretamente para a mansão, tudo parecia muito quieto. Não havia nenhum tipo de vigilância ou segurança, como se a própria existência do local fosse algo a desestimular uma visita.

O homem ordenou que os cães permanecessem onde estavam, e fazendo uso de sua perspicácia, conseguira aventurar-se nas dependências da casa. Atravessou um longo corredor e chegou até um amplo salão, oculto em um canto, ele buscou um melhor ângulo de visão, e o que viu o deixou chocado. Ele havia dedicado muito tempo de sua vida naquela investigação, mas jamais imaginara que fossem tantas.

Várias feras, como a que enfrentara, estavam espalhadas pelo ambiente. No centro, vários corpos, como o da moça capturada, serviam de refeição para elas. Em um canto, várias pessoas desacordadas recebiam um líquido nas veias, entre elas o estranho reconheceu o alcoólatra que encontrara mais cedo. Não sabia ainda, mas todas aquelas pessoas possuíam algo em comum, atravessavam algum tipo de dificuldade na vida, e por um motivo ou outro, procuraram ajuda no lugar errado, e agora serviam de cobaias para um experimento terrível e perigoso.

Estava viajando em pensamentos sombrios, quando fora retirado do transe pelo som de ganidos, os cães!

Virou-se e antes que pudesse pensar em sair, Raquel, a moça transtornada, estava diante dele. Mas ela já não era mais a mesma mulher que seguira nas últimas semanas. A ausência da droga a deixara em estado “normal” naquele período, fazendo com que ele a descartasse como suspeita.

Mas, naquele momento, ele percebeu o quanto estava errado. A fera na praia não a atacaria, longe disso, provavelmente ela escoltaria a mulher até um local comum a ambos: a toca. Isso porque Raquel não era mais humana, Raquel começava a apresentar uma pele escamosa e rígida. Longas protuberâncias ósseas projetavam-se de suas costas. Garras saltavam de suas, agora, patas.

Raquel olhava para o homem, e seus olhos só transmitiam raiva, sua boca queria sangue, o sangue dele. Do alto de torres, homens vestidos de branco olhavam orgulhosos para as feras que cercavam o invasor.

Ele nunca fora um homem de muita fé, mas acreditava em milagres, e naquela noite ele precisaria de um.

*Esta é a primeira parte da história que será concluída pela minha amiga e escritora, Thannyth Carneiro. Não deixem de conferir!

Um abraço a todos,

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 19/03/2009
Reeditado em 04/11/2009
Código do texto: T1493983
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